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setembro #16

V.2 n.7 2017

Foto de João Rafael Neto

Por Igor de Albuquerque

SETE VOLTAS COM O BALÉ JOVEM DE SALVADOR

Sobre Solos Baianos do BJS

0.01

 

O jovem sai de algum lugar, percorre com vagar quatro linhas imaginárias, depois deita-se no chão do foyer. Estático, ele permanecerá ali com o abdômen retorcido na posição que serve de preâmbulo para seu trabalho e para o programa dos Solos Baianos apresentado no Espaço Xisto Bahia pelo Balé Jovem de Salvador. Quando se levanta, os movimentos iniciais preenchem apenas frações diminutas do espaço compreendido entre os limites do vão. São passos em pianíssimo executados como contraponto às intensas investidas seguintes cujo resultado quase vem carimbado no corpo do público ao redor (2ª lei de Newton considerando “mi” [força de impulsão nos membros inferiores] e “ra” [rotação partir do eixo abdominal] para obter “a” aceleração). Seria assim na terra, mas, sob a luz crua do foyer, Thor Galileo [sic] recalcula os riscos e desnudamentos da cena, como se apresentasse aos físicos presentes as novas leis fundamentais a que terão de se submeter.

           

2.01

 

Dentro do teatro, encontramos outra jovem também parada, na mesma pose final do seu antecessor: braços soltos, coluna meio reta, com o pescoço sustentando a cabeça inclinada em diagonal para o alto. O que há naquela direção? Ideias, supernovas, delírios, objetos voadores identificados e não-identificados? A pergunta avança veloz em direção a eras distantes. Então, Letícia Pereira começa a montar suas respostas sincopadas. Percebe-se um jogo implicado na construção do arquétipo modelo/deusa e nas quebras de ritmo marcadas pelos braços e quadris. Balé em glitches arcaicos metamodernos. A dançarina escreve seu tratado mais eloquente valendo-se de um experimento ótico: sinuosa, ela vem do fundo para a frente do palco iluminada por um feixe de luz que refrata sua presença esguia. Não é ocasional o continuum observado entre os dois primeiros trabalhos, dado que ambos levam a assinatura de Neemias Santana.

           

III.

 

No terceiro solo, que na verdade é um duo (Luana Fulô e Robson Ribeiro), a proposta é bem diversa. Estalos de dedos crepitam na base da fogueira a ser queimada, e então os bailarinos despertam para responder aos chamados do agogô. Explode o vocabulário corporal de matriz africana (samba de roda, samba de caboclo, maculelê, lundu, jongo), aliado ao fraseado da dança moderna. Há passos sincronizados, sim, mas na cadência do

É muito incômodo ouvir ruídos de cabos com mau contato, chiados, baques surdos seguidos pelas linhas de choques elétricos. Mas a vida em boa medida é assim: a rotina após o feriado, os encontros com nossos demônios nas calçadas, a derrota decisiva após uma série de conquistas. Ninguém está imune a soluços metafísicos

samba sempre sobra uma perna aqui e uma bunda ali de modo que o cálculo preciso nem sequer cabe no riscado. Nesse sentido, a coreografia de Inah Irenam compartilha com os músicos de choro e jazz aquela zona secreta do improviso que só pode ser alcançada após incontáveis horas de estudo. Um dos motivos mais pronunciados são as referências a Ogum – orixá da guerra –, que no final é esculpido em duas poses guerreiras contemporâneas: palosa com os braços cruzados, cara fechada, tronco jogado pra trás, e ameaçadora com um fuzil nas mãos. Se me permitem o jargão ludopédico, a dupla joga com a torcida, que vai ao delírio quando soa o apito final.

 

IV

 

Clara Boa Sorte dirigida por Danilo Queiroz constrói uma estância da loucura, em um manicômio, poderia-se dizer sem rodeios, mas é preciso deixar aberta a possibilidade do cenário como projeção da mente perturbada. A dança começa no chão presa por uma camisa, liberta-se, levanta-se, abre em 180º graus nas pernas da artista, bate com força no tablado, olha pra cima assustadiça, treme, convulsiona... Em suma, nota-se uma redução das complexidades da psiquê a um conjunto de signos cristalizados. A velha gramática da loucura estetizada aparece em cada segundo do solo, desde à iluminação e som reproduzindo ameaças de curto-circuito até a linha narrativa desenvolvida a partir de um surto. Talvez uma pesquisa mais diligente seja mesmo o grande desafio para os criadores que lidam com a esquizofrenia. Antes de enlouquecer, Nietzsche disse que quando se olha tempo demais para o abismo o abismo acaba olhando de volta.

          

V

 

Moto-contínuo sobre verde, azul, vermelho, e até mesmo dentro da escuridão. A performance de Igor Vogada acompanha o fluxo aquático da trilha sonora mostrando como pode ser complicado para um ser humano passar do estado sólido para o líquido. Não há pausas, todos os membros trabalham conjuntamente durante essa empresa de grande força física. No barulho da corrente, as marcas dos pulsos espasmódicos do corpo viram pontos luminosos.

           

VI

 

É muito incômodo ouvir ruídos de cabos com mau contato, chiados, baques surdos seguidos pelas linhas de choques elétricos. Mas a vida em boa medida é assim: a rotina após o feriado, os encontros com nossos demônios nas

calçadas, a derrota decisiva após uma série de conquistas. Ninguém está imune a soluços metafísicos. Próxima disso, a coreografia de Melissa Figueiredo baseia-se no “mal-function” que aparece vermelho na câmera subjetiva dos ciborgues. Flávia Rodrigues, a dançarina, deixa-se levar pelo amálgama corpo-som de uma rave comandada por Clara Boa Sorte – que também é DJ na vida real. A ideia é construir um simulador que põe em cena um estado de corpo alterado por substâncias estético-sintéticas em fase experimental. Bate onda.

           

VII

 

Michel de Montaigne tinha quase 50 anos quando escreveu um texto intrigante sobre a juventude. Segundo o francês, vivemos nosso melhor enquanto ainda conservamos a pele tesa. Aníbal e Cipião fizeram o que fizeram antes de completar 30 anos de idade, depois viveram às custas da glória adquirida no auge. Montaigne diz que ele próprio só fez piorar depois dos 30: “Quanto a mim, dou por certo que, desde essa idade, tanto meu espírito quanto meu corpo mais diminuíram que aumentaram e mais recuaram que avançaram. É possível que para os que empregam bem seu tempo, o saber e a experiência cresçam com a vida, mas a vivacidade, a presteza, a firmeza e outras qualidades bem mais nossas, mais importantes e essenciais, fenecem e enlanguescem (Tradução de Rosa Freire d'Aguiar)”. 

           

Ignoro se Montaigne tem razão, afinal de contas ele só publica seus ensaios depois dos 40, mas quando vejo o vigor e o talento do Balé Jovem de Salvador tendo a concordar com o argumento. Para além do bem, do mal e da razão, aproveitem meus jovens.

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