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outubro #17

V.2 n.8 2017

Foto de Natália Nascimento

Por Isabela Silveira

O ALENTO DA PEQUENA ISABELA

Sobre o espetáculo infanto-juvenil “ECA! Quanta sujeira!”, de Guilherme Hunder

Nascida no ano das Diretas Já!, não seria de se estranhar que a Isabela criança se interessasse pelos temas da política e tudo que falasse das dinâmicas coletivas em geral. Afinal, “os rumos da sociedade brasileira” eram pauta das conversas das pessoas grandes na televisão, nos jornais, nos jantares, nos elevadores e nos cochichos no quarto ao lado, de modo que não ser autorizada a participar de um assunto que parecia tão relevante realmente me causava angústia. Por que não pediam minha opinião, não me deixavam ajudar ou não checavam se eu tinha alguma solução para o que tanto afligia as pessoas grandes? Vai que fosse eu quem tivesse A resposta...

 

Dentro de mim trazia essa mesma pequena Isabela quando fui assistir ECA – Quanta sujeira!, espetáculo infantil com direção de Guilherme Hunder, em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. Seu criador vem trilhando uma carreira recente e bastante consistente, atento aos temas da infância com uma percepção sensível do que essa faixa etária tem interesse em ver e ouvir, e afirmou de maneira contundente seu interesse na infância ao escolher “Avesso” como peça de formatura em Direção Teatral.  Em uma sociedade adultocêntrica como a nossa, em que produtos culturais para a infância são considerados de menor importância, não deixa de ser uma atitude política, no sentido mais amplo do termo, graduar-se com uma montagem para crianças. E é justamente falar de política para elas a proposta deste novo espetáculo.

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A história é ambientada em um depósito de lixo, e nos apresenta dois núcleos de personagens: de um lado Mosquildo e Baratildes, fiéis escudeiros de Ratíneo, os três em busca da ‘terra prometida’ que pensam ter finalmente encontrado ali, e, de outro, Caco de Vidro, Pet, Casca de Banana e o Pão Francês, esperando ansiosamente pela chance de mudar de vida por meio da reciclagem. A peripécia é deflagrada quando Ratíneo, numa manobra imprevista e autoritária, se autodeclara Presidente do Lixão e nomeia seus auxiliares como ministros. A partir daí, uma série de imposições passa a ser apresentada aos resíduos, sendo a mais controversa a suspensão da coleta seletiva. Isso gera indignação não apenas nos orgânicos e inorgânicos como igualmente na população do entorno, que passa a ver o depósito com maus olhos. Em meio à agitação e aos protestos, Latinha e Papel se unem aos resíduos e terminam arbitrariamente presos, fazendo eclodir novos conflitos. Com muita articulação coletiva, os resíduos então conseguem atrair Mosquildo e Baratildes para uma emboscada quando, acuados, revelam fotos comprometedoras do “presidente” e aceitam ajudar o grupo a atraí-lo para ali. Capturados e expulsos, o trio golpista termina fugindo para o 

Eca – quanta sujeira! seria um alento para a Isabela de outrora ao explicar de maneira lúdica e respeitosa o que afinal está acontecendo no panorama político brasileiro.

sul da Bahia, livrando assim os resíduos da opressão e permitindo que a ordem local voltasse à normalidade.

 

O que inicialmente despertou minha atenção foi o fato de atores e atrizes representarem personagens cujos gêneros não necessariamente coincidem com os seus, de modo que eles e elas se misturam em função de uma melhor composição daqueles sujeitos. Ainda que isso não tenha absolutamente importância no universo tratado, não deixa de ser relevante no atual contexto de histeria difundida por alguns setores da sociedade em torno do suposto caráter doutrinador das artes sobre as crianças. Quando aquele elenco desempenha com naturalidade e sem afetações personagens masculinos, femininos ou sem gênero definido, reforça-se a vocação dos produtos artísticos para ampliar subjetividades e dirimir preconceitos sem necessariamente ter isso como proposta explícita. Além disso, as diferentes personalidades são reforçadas pela composição dos figurinos e maquiagens, nos quais materiais, técnicas e tons se combinam de maneira criativa. Eu saí de lá desejando uma roupa de Caco de Vidro e um figurino de Baratildes, peças que, como as demais, tinham um conceito tão claro que poderiam ser vistas sobre uma passarela ou vitrines de lojas modernetes. Que as artes para infância podem (e devem) trazer referências atuais pode parecer óbvio, mas ainda surge como um refresco numa cadeia produtiva na qual há uma insistência em repetir modelos prontos e tratar a criança como um sujeito apartado da realidade.

 

O texto adota um referencial aristotélico e a montagem cênica linear se coaduna com essa escolha, demandando do espectador acompanhar cada acontecimento para entender como se chega ao desenlace. No entanto, o volume baixo em determinadas falas me fez pensar em que medida as crianças conseguiriam acompanhar a história, tendo em vista que elas não detêm ainda repertório simbólico e vocabulário para fazer inferências que completem as lacunas deixadas pelo texto que não foi escutado.  Assumindo que uma obra cênica é construída com vistas ao momento de sua fruição, conhecer as especificidades do público que se deseja alcançar é importante na medida em que o que pode ser irrelevante para alguns pode ser crucial para outros públicos conseguirem se engajar na recepção da obra.

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Acompanhei o espetáculo com alegria pela proposta que se aprofunda na discussão sobre direitos e deveres, participação social, moralidade e justiça, sem subestimar as crianças. No entanto, a resolução do conflito termina abrindo uma prerrogativa que merece análise: ao atribuir a opressão do tirano aos traumas de quando era um pequeno camundongo, perdido e afastado do lar, 

termina-se reforçando a ideia de que o indivíduo está acima do coletivo. Afinal, se essas dores individuais são tão profundas a ponto de levar os resíduos a não apenas perdoarem como também liberarem o trio golpista sem qualquer punição, fica a mensagem de que, ao demonstrarmos arrependimento, merecemos amplo e irrestrito perdão, não havendo necessidade de corrigir os efeitos nocivos gerados por nossas ações. Os vilões podem, sim, se safar ao final, mas creio que numa obra para crianças é importante munir os espectadores com ferramentas que os permitam relacionar o que assistem à realidade que vivenciam. Na peça isso não ocorre, gerando a leitura possível de que os políticos corruptos e tiranos carecem de nossa empatia, quase condescendência, porque afinal eles devem estar agindo desse modo não por se importarem somente com o próprio bem-estar mas por efeito dos seus sofrimentos psicológicos de outrora. Essa resolução do texto me causou desconforto, que se aprofundou com o grito coletivo ao final: “Somos lixo, sim!”, ou algo similar, evocado pelos resíduos já livres do opressor. Fiquei buscando algum uso da palavra ‘lixo’ que não fosse negativa, sem a encontrar. Ainda que eu entenda a proposição, já que está ali associada ao orgulho da coletividade, não se consegue passar ao largo de toda a carga semiológica que as palavras trazem a galope no seu uso cotidiano.

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Eca – quanta sujeira! seria um alento para a Isabela de outrora ao explicar de maneira lúdica e respeitosa o que afinal está acontecendo no panorama político brasileiro. Se presenciamos diariamente uma disputa narrativa pela construção de uma sociedade que dê voz aos quereres coletivos de tantos ou se curve aos caprichos individuais de alguns, as crianças não podem de forma alguma ficar fora disso. Nem tudo ainda foi convertido em um grande lixão a céu aberto, graças! Mas entre ser uma praga egoísta ou um resíduo justo é preciso deixar bem claro a qual grupo se unir neste mundo tão bagunçado pelas pessoas grandes.

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