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REVERBERA Marco Lobo
Crítica - O ALENTO DA PEQUENA ISABELA
CRÍTICA DA CRÍTICA -ACHAQUES & QUIZILAS
ENCONTRO com Luana Serrat
Câmera automática
SELFIE - ERA UMA VEZ, NUM STAND-UP UMBANDISTA DE BRASÍLIA

outubro #17

V.2 n.8 2017

O alento  da pequena Isabela, por Isabela Silveira

EDITORIAL

O diretor teatral, integrante do coletivo COATO Marcus Lobo reverbera o espetáculo "A persistência das últimas coisas", dir. Celso Jr.

Bárbara Pessoa encontra a atriz circense Luana Serrat

Marco Lobo reverbera o espetáculo A persistência das últimas coisas

Achaques & quizilas, por Igor de albuquerque

Estação Joelma, por Alex Simões

Bárbara Pessoa  encontra Luana Serrat

Era uma vez, num stand-up umbandista de Brasílias, por Daniel Guerra

Rebate a Crítica O alento da pequena Isabela, por Guilherme Hunde

Câmera Automática, por Bárbara Pessoa

REBATE O ALENTO DA PEQUENA ISABELA

Por Guilherme Hunder

Primeiro quero parabenizar a revista por promover este espaço da crítica, tão importante para manutenção do nosso fazer artístico. Depois parabenizar Isabela pela crítica sensível e atenta ao espetáculo"ECA! QUANTA SUJEIRA", fruto de um intenso trabalho e da perseverança na convicção de que o teatro destinado à infância e juventude tem o mesmo grau de importância que o teatro adulto e que, sim, é uma obra de arte a qual precisamos nos atentar e buscar maneiras de fortalecer este fazer,  a fim de contribuir na formação da meninada de hoje, agentes modificadores de um futuro próximo. 

 

Quanto ao rebate, eu não acredito muito nesse espaço. Em meu ponto de vista, a crítica existe para levantar provocações e reflexões nos agentes criativos "responsáveis" pela obra. Logo, nesse aspecto, a crítica escrita por Isabela nos coloca neste lugar reflexão e inspirações quanto ao trabalho. 

Rebate - o alento da pequena isabela

Foto de Natália Nascimento

Por Isabela Silveira

O ALENTO DA PEQUENA ISABELA

Sobre o espetáculo infanto-juvenil “ECA! Quanta sujeira!”, de Guilherme Hunder

Nascida no ano das Diretas Já!, não seria de se estranhar que a Isabela criança se interessasse pelos temas da política e tudo que falasse das dinâmicas coletivas em geral. Afinal, “os rumos da sociedade brasileira” eram pauta das conversas das pessoas grandes na televisão, nos jornais, nos jantares, nos elevadores e nos cochichos no quarto ao lado, de modo que não ser autorizada a participar de um assunto que parecia tão relevante realmente me causava angústia. Por que não pediam minha opinião, não me deixavam ajudar ou não checavam se eu tinha alguma solução para o que tanto afligia as pessoas grandes? Vai que fosse eu quem tivesse A resposta...

 

Dentro de mim trazia essa mesma pequena Isabela quando fui assistir ECA – Quanta sujeira!, espetáculo infantil com direção de Guilherme Hunder, em cartaz no Teatro Martim Gonçalves. Seu criador vem trilhando uma carreira recente e bastante consistente, atento aos temas da infância com uma percepção sensível do que essa faixa etária tem interesse em ver e ouvir, e afirmou de maneira contundente seu interesse na infância ao escolher “Avesso” como peça de formatura em Direção Teatral.  Em uma sociedade adultocêntrica como a nossa, em que produtos culturais para a infância são considerados de menor importância, não deixa de ser uma atitude política, no sentido mais amplo do termo, graduar-se com uma montagem para crianças. E é justamente falar de política para elas a proposta deste novo espetáculo.

A história é ambientada em um depósito de lixo, e nos apresenta dois núcleos de personagens: de um lado Mosquildo e Baratildes, fiéis escudeiros de Ratíneo, os três em busca da ‘terra prometida’ que pensam ter finalmente encontrado ali, e, de outro, Caco de Vidro, Pet, Casca de Banana e o Pão Francês, esperando ansiosamente pela chance de mudar de vida por meio da reciclagem. A peripécia é deflagrada quando Ratíneo, numa manobra imprevista e autoritária, se autodeclara Presidente do Lixão e nomeia seus auxiliares como ministros. A partir daí, uma série de imposições passa a ser apresentada aos resíduos, sendo a mais controversa a suspensão da coleta seletiva. Isso gera indignação não apenas nos orgânicos e inorgânicos como igualmente na população do entorno, que passa a ver o depósito com maus olhos. Em meio à agitação e aos protestos, Latinha e Papel se unem aos resíduos e terminam arbitrariamente presos, fazendo eclodir novos conflitos. Com muita articulação coletiva, os resíduos então conseguem atrair Mosquildo e Baratildes para uma emboscada quando, acuados, revelam fotos comprometedoras do “presidente” e aceitam ajudar o grupo a atraí-lo para ali. Capturados e expulsos, o trio golpista termina fugindo para o 

Eca – quanta sujeira! seria um alento para a Isabela de outrora ao explicar de maneira lúdica e respeitosa o que afinal está acontecendo no panorama político brasileiro.

sul da Bahia, livrando assim os resíduos da opressão e permitindo que a ordem local voltasse à normalidade.

 

O que inicialmente despertou minha atenção foi o fato de atores e atrizes representarem personagens cujos gêneros não necessariamente coincidem com os seus, de modo que eles e elas se misturam em função de uma melhor composição daqueles sujeitos. Ainda que isso não tenha absolutamente importância no universo tratado, não deixa de ser relevante no atual contexto de histeria difundida por alguns setores da sociedade em torno do suposto caráter doutrinador das artes sobre as crianças. Quando aquele elenco desempenha com naturalidade e sem afetações personagens masculinos, femininos ou sem gênero definido, reforça-se a vocação dos produtos artísticos para ampliar subjetividades e dirimir preconceitos sem necessariamente ter isso como proposta explícita. Além disso, as diferentes personalidades são reforçadas pela composição dos figurinos e maquiagens, nos quais materiais, técnicas e tons se combinam de maneira criativa. Eu saí de lá desejando uma roupa de Caco de Vidro e um figurino de Baratildes, peças que, como as demais, tinham um conceito tão claro que poderiam ser vistas sobre uma passarela ou vitrines de lojas modernetes. Que as artes para infância podem (e devem) trazer referências atuais pode parecer óbvio, mas ainda surge como um refresco numa cadeia produtiva na qual há uma insistência em repetir modelos prontos e tratar a criança como um sujeito apartado da realidade.

 

O texto adota um referencial aristotélico e a montagem cênica linear se coaduna com essa escolha, demandando do espectador acompanhar cada acontecimento para entender como se chega ao desenlace. No entanto, o volume baixo em determinadas falas me fez pensar em que medida as crianças conseguiriam acompanhar a história, tendo em vista que elas não detêm ainda repertório simbólico e vocabulário para fazer inferências que completem as lacunas deixadas pelo texto que não foi escutado.  Assumindo que uma obra cênica é construída com vistas ao momento de sua fruição, conhecer as especificidades do público que se deseja alcançar é importante na medida em que o que pode ser irrelevante para alguns pode ser crucial para outros públicos conseguirem se engajar na recepção da obra.

Acompanhei o espetáculo com alegria pela proposta que se aprofunda na discussão sobre direitos e deveres, participação social, moralidade e justiça, sem subestimar as crianças. No entanto, a resolução do conflito termina abrindo uma prerrogativa que merece análise: ao atribuir a opressão do tirano aos traumas de quando era um pequeno camundongo, perdido e afastado do lar, 

termina-se reforçando a ideia de que o indivíduo está acima do coletivo. Afinal, se essas dores individuais são tão profundas a ponto de levar os resíduos a não apenas perdoarem como também liberarem o trio golpista sem qualquer punição, fica a mensagem de que, ao demonstrarmos arrependimento, merecemos amplo e irrestrito perdão, não havendo necessidade de corrigir os efeitos nocivos gerados por nossas ações. Os vilões podem, sim, se safar ao final, mas creio que numa obra para crianças é importante munir os espectadores com ferramentas que os permitam relacionar o que assistem à realidade que vivenciam. Na peça isso não ocorre, gerando a leitura possível de que os políticos corruptos e tiranos carecem de nossa empatia, quase condescendência, porque afinal eles devem estar agindo desse modo não por se importarem somente com o próprio bem-estar mas por efeito dos seus sofrimentos psicológicos de outrora. Essa resolução do texto me causou desconforto, que se aprofundou com o grito coletivo ao final: “Somos lixo, sim!”, ou algo similar, evocado pelos resíduos já livres do opressor. Fiquei buscando algum uso da palavra ‘lixo’ que não fosse negativa, sem a encontrar. Ainda que eu entenda a proposição, já que está ali associada ao orgulho da coletividade, não se consegue passar ao largo de toda a carga semiológica que as palavras trazem a galope no seu uso cotidiano.

Eca – quanta sujeira! seria um alento para a Isabela de outrora ao explicar de maneira lúdica e respeitosa o que afinal está acontecendo no panorama político brasileiro. Se presenciamos diariamente uma disputa narrativa pela construção de uma sociedade que dê voz aos quereres coletivos de tantos ou se curve aos caprichos individuais de alguns, as crianças não podem de forma alguma ficar fora disso. Nem tudo ainda foi convertido em um grande lixão a céu aberto, graças! Mas entre ser uma praga egoísta ou um resíduo justo é preciso deixar bem claro a qual grupo se unir neste mundo tão bagunçado pelas pessoas grandes.

RIZOMA - Estação Joelma

ESTAÇÃO JOELMA

Rizoma de Joelma, espetáculo de Fábio Vidal e Edson Bastos,  inspirado na trilha de Luciano Simas e Ronei Jorge

Por Alex Simões

Foto de Heder Novaes

nos limites dos palcos de um bar onde a gente que é gente se entende – porque na galeria do amor é assim, tudo apertado, os aplausos escassos, emoções misturadas, como se embaralhassem os gêneros, masculino e feminino, todo o tempo. Joelma, uma estrela, verte-se em um corpo preparado para a cena, transmutando a dor de ser o que é nesse dom de iludir.   de qualquer maneira, que fique bem entendido que, se acaso me quiseres, Homem com H ou Tigresa, que seja, que eu seja, que você seja, que todo mundo seja. mais que um ombro amigo que preciso tanto, nestes tempos estupidamente difíceis que vivemos, o androginismo é um ato político e é preciso carnavalizar.   quem já nasceu com sorte,  não precisa levar canivete no cinto e pandeiro na mão. nosso consolo é saber que, aconteça o que acontecer, sempre a noite vai chegar, e por mais que eles imponham as trevas, nós tivemos de aprender a andar no escuro, pode crer.

Na era dos smartphones, a conhecida frase de Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, parece ser a legenda cult mais empregada nos vídeos publicados em redes sociais como Instagram e Facebook. A produção audiovisual barata, uma das ambições cobiçadas pelo cineasta da geração mapa, parece de alguma maneira se efetivar nos dias atuais, ainda que se localize mais imediatamente na criação de vídeos e não tanto de cinema em si.

Não por acaso, uma das atividades que mais cresceu nos últimos anos consiste em criar um canal no YouTube e ganhar dinheiro com a produção de algum conteúdo que interesse a determinado público. Jovens estudantes do ensino básico tem, cada vez mais, recorrido a esta plataforma para tirar suas dúvidas em química, física e matemática, por exemplo. Fato que, na manhã de hoje, levou os professores da escola onde trabalho a questionarem a própria metodologia e debaterem sobre a estrutura escolar como um todo: assuntos amplamente discutidos pelos pensadores da Educação ao longo das últimas décadas.

O largo acesso aos meios para produzir, sendo o celular certamente o predominante entre eles, faz com que sejam disponibilizados, em diferentes plataformas, um incalculável número de registros e inventos dos mais inusitados ou mesmo jamais imaginados; aqueles que fazem seu público (formado muitas vezes por apenas um indivíduo por vez) ajuizar: “como as pessoas são criativas!”

Se um cidadão comum posta em determinada plataforma algo que não desperte o ajuizamento citado em parágrafo anterior, fatalmente não será assistido, compartilhado ou comentado – meios que o tornariam, dentro da lógica da rede social, conhecido. É necessário que seja identificada alguma criatividade na produção, seja o conteúdo de humor, de yoga, de educação ou de game. Se a oferta de “câmeras na mão” se tornou grande, o que fará alguma diferença será a tal ideia na cabeça.

Presumivelmente, para um artista, a condição da criatividade seria sinônimo de convergência, afinal, seu ofício de criar consiste, segundo o filósofo, justamente em ter uma ideia. Este mesmo filósofo pós estruturalista é incisivo em sua fala: “se eu não tenho uma ideia, não me sento pra escrever.”

O leitor tem todo direito de argumentar que cada um se senta pra

CÂMERA AUTOMÁTICA

Por Bárbara Pessoa

escrever com a motivação que lhe couber e que a decisão definitiva do filósofo não deve servir de regra para ninguém. Entretanto, se concordarmos que o fazer artístico ainda corresponde ao ato de criar, o que restará numa construção, que se quer artística,  na qual se tem uma câmera na mão (ou uma ponta no pé, ou uma máscara no rosto), mas falta uma ideia na cabeça?

É bem provável que sobrem a câmera na mão, a ponta no pé, a máscara no rosto. É bem comum sobrar a trilha sonora escolhida. É presuntivo que restem elementos que não se encontram porque lhes falta aquilo que lhes daria algo em comum: a ideia. Aquilo que os faria, como em uma assembleia, dialogar sobre o motivo daquela reunião.

O que soa interessante é que os “leigos em arte” parecem ter mais preocupação com a tal ideia quando vão postar seus vídeos do que muitos artistas que se vê por aí. Um usuário do Youtube, muito provavelmente, não vai filmar um cachorro passando pela rua a não ser que este cachorro traga algo de particular, tampouco irá compartilhar um vídeo no qual performa, se nisto não houver algo inventado por ele ou, ao menos, executado por ele com alguma diferença. Entretanto, tem sido bastante recorrente encontrar produções de multiartistas que parecem crer que basta unir as diferentes habilidades que possuem para que se crie/experimente algo. Exemplo disso são muitos dos vídeos compartilhados na plataforma Vimeo, aquela auto intitulada como “o lar da alta qualidade para fazer, compartilhar e assistir vídeos.” e que, no entanto, serve também para escancarar a fragilidade de produções nas quais se tem tudo, exceto o exercício de algum pensamento.

Dançar não é ter uma ideia, filmar não é ter uma ideia, cantar não é ter uma ideia, fazer tudo isso ao mesmo tempo não é ter uma ideia. Pode ser, mas não necessariamente. Criar é ter uma ideia.

Ademais, se um indivíduo produz o que quer que seja sem pretensões estéticas, ele é um indivíduo produzindo alguma coisa sem pretensões estéticas (filmar um cachorro passando na rua ou ele performando do jeito que bem entender). O esvaziamento se torna protagonista numa produção pretensiosamente artística que não partiu de uma ideia. O que fez esse artista “sentar na cadeira pra escrever”?

Estava dirigindo e pensando sobre a escassez de agendas culturais dignas na cidade. A isso soma-se a visível retração da produção artística, o que deve ser resultado da dissolução estratégica das máquinas públicas e da ineficiência dos artistas em compreender o mercado. Este, aliás, é coisa recente. Antigamente você fazia um retrato de Jesus e garantia a feira do mês. Ou pintava o rei, a rainha e seus filhos. Hoje você tem que criticar a sociedade e ao mesmo tempo arrancar o dinheiro dela.

O vidro está sujo. Aciono o para-brisa e lá vem o jato d’água. “Mercado, Jesus”.

 

Eles devem existir. “Em algum lugar, eles devem existir”.

 

Ligo o ar-condicionado.

 

O calor treme no asfalto. Durante o engarrafamento uma imagem me sobe à cabeça. A de um cadáver atacado por urubus displicentes, daqueles que não precisam estar famintos para extirpar nacos de carne, deixando-os às moscas depois das bicadas. Se fosse um meme, nos urubus haveria uma seta dizendo “2017”, e no cadáver, “eu”, “você”, “Brasil” ou “mundo”. Estou na cena de abertura de Oito e Meio, de Fellini, e nem sou Marcello Mastroianni.

Tudo isso pode ser apenas uma sensação. Ou talvez sofra dos influxos da história. O ano mal começou e já chega ao fim. Dois mil e dezoito promete seus horrores. Dia desses presenciei uma amigo chorando na sarjeta. Ao redor, todos com suas bolas de cristal em riste; no horizonte, tribos, urban tribes. Na boca do progressismo uma pá de conceitos requentados dos eighties. A Dove e a Avon sacaram antes de nós. E O Boticário.

Não sei por que, mas penso em Okja, aquela variação tosca de Free Willy. “Meninos mimados não podem reger a nação”, canta na rádio um Criolo versão sambista.

Ou podem ser meus trinta anos.

 

O programa musical é interrompido por uma propaganda do Humor de Santo. “O primeiro stand-up umbandista do Brasil”.

 

O acaso nunca me deixa na mão! Chego em casa e vou direto à Internet. Descubro rapidamente que o comediante Paulo Mansur fará suas apresentações no ISBA. O ingresso custa 60 reais, o que calculo equivaler a seis cervejas de 600 ml (Skol, Brahma ou Antártica). Se, como já havia pretendido, eu não pisar num único bar durante todo o fim de semana, tudo ficará em paz, tanto no bolso quanto no espírito. Vou lá conferir esse achado.

Já no ISBA compro uma pipoca, enquanto espero a hora da entrada. O pipoqueiro começa a reclamar dos policiais (uma viatura ronda o quarteirão). Diz que deixou de trabalhar como ambulante no carnaval depois de ver o funcionário de um hotel ser confundido com um ladrão. Terminou caído no meio da rua, espancado e pisoteado. Eu deixo claro que também deploro a situação e pergunto se há uma lixeira onde jogar o saquinho de papel. Ele abre a portinha de ferro e arremesso o lixo lá dentro. Agradeço, trocamos sorrisos e passo à fila de entrada, depois de lavar as mãos sujas de manteiga.

Em cima do palco e em primeiro plano, um ebó. Um alguidar com pétalas de rosa acompanhado de uma garrafa de 51. O resto do palco está nu. As luzes, vermelhas e amarelas, raramente mudarão durante a performance.

Desce um pano de projeção. Põem um vídeo bastante tosco em que se relacionam músicas populares com orixás, assim como fazem com os signos do zodíaco. Iemanjá está representada na música Onda Onda (Olha a onda) e Ogum, numa música de Fagner. Os Erês baixam em Brincadeira de Criança, do Molejão, e Oxumaré dá as caras através de Xuxa Meneghel: “Vou pintar um arco-íris de energia/ Pra deixar o mundo cheio de alegria/ Se tá feio ou dividido/ Vai ficar tão colorido”.

 

A pequena plateia, comprimida nas fileiras do meio, começava a engatar o mecanismo das risadas quando eu decidi migrar para a parte vazia da direita, onde não incomodaria os espectadores de trás com a luminosidade do celular. Eu não costumo fazer anotações durante os eventos, mas ao perceber que deveria lembrar de coisas muito específicas decidi registrá-las, mesmo que fosse com a ajuda do portátil.

Por Daniel Guerra

ERA UMA VEZ, NUM STAND-UP UMBANDISTA DE BRASÍLIA

Sobre “Humor de Santo”, de Paulo Mansur

Segue-se então uma infindável apresentação das marcas apoiadoras, cada uma com um tempo generoso de permanência na tela. O mais impressionante são as reações das pessoas às marcas: "Nossa, que lugar é esse?", "Você já foi aí?", "Olha Lulu, um dia a gente tem que voltar lá, com tio Lauro e vovó Cida.

Ao fim, alguns bons minutos são dedicados a veicular todos os endereços virtuais do Humor de Santo, incluindo o canal do youtube, onde deveríamos inscrever-nos para acompanhar “esses e muitos outros vídeos”.

Sobem a tela de projeção.

 

Paulo Mansur, homem de trinta e poucos anos, branco, loiro e atarracado, entra no palco como quem acaba de saltar da cama. Passando a mão na frente da cara de cima a baixo - um tique constante -, começa a falar num tom situado entre a indiferença e a hiperatividade.

As piadas seguem o mesmo roteiro que vejo na maioria dos shows de stand-up, com a diferença que aqui o vocabulário migra de um cotidiano hegemônico (escritório, engarrafamento, relacionamento heterossexual, viagens de avião, manias, doenças) para os códigos específicos da umbanda (canções, toques, terreiros, filhos de santo, orixás, espíritos). Muitas vezes tive a impressão de que se trocássemos os orixás por signos do zodíaco, a diferença entre o stand-up umbandista e o comum seria um alguidar e uma garrafa de cachaça.

Mas Mansur descrevendo as distintas formas de incorporação é impagável. Entre as muitas possessões que elencou, consegui anotar as três melhores: tem a incorporação embaixadinha, cujo “cavalo” dá saltinhos para trás estendendo a perna como quem chuta repetidamente uma bola imaginária, tem a incorporação topada-no-dedo-mindinho-do-pé, que dispensa descrições e, finalmente, a incorporação galinha pintadinha, sobre a qual deixo ao leitor o prazer da imaginação.

Lembro-me da primeira vez que estive num terreiro de umbanda. Foi em São Paulo, no ano passado, levado por um casal de amigos. Acostumado à cultura candomblezeira de Salvador, foi-me estranho ter de subir os degraus de um pequeno prédio comercial até o terraço, para pegar uma senha e esperar o momento da consulta. Me senti numa espécie de dentista espiritual. Do lado de fora fazia frio, e nos longos bancos de madeira se aglomeravam dezenas de paulistas tristes e agasalhados. Dentro do terreiro e separados de nós por grades de alumínio e vidraças foscas, os médiuns executavam seus cantos e coreografias. Até que chamaram meu número. Um tanto desconfiado, fui lá ver o Exu-Mirim. O Exu, no caso, era uma senhora que fazia gestos infantis. Não sei se rolou muita química entre nós. Já cansado da minha cara de cu, o maroto me dispensou presenteando-me com alguns doces, uma barata de plástico e sementes de mamona enrolados numa trouxinha de folhas que mantive por meses na minha estante.

Depois voltamos pra casa e, como minha amiga era uma médium em desenvolvimento, começou a falar das presenças que começava a ver, escutar ou sentir constantemente na sua própria casa. Falei da saudade do meu avô, o que é comum quando estou bêbado. Ela foi no banheiro e, quando voltou, contou que viu um homem negro, alto e de cabelos brancos no corredor. Ele tinha mandado um recado pra mim. Que meu avô estava muito bem, obrigado. Me arrepiei umas trinta e cinco vezes naquela noite.

As luzes estouram na minha cara.

A plateia é revelada. O comediante olha pra cá e fala: “Olha aquele cara, sozinho lá atrás”.

Eu demoro um tempo pra entender. Dou um sorriso. Ele saca que eu saquei. Ele me achou. “Tem sempre um cara solitário no fundão. É desse tipo de gente que o médium mais tem medo. Vocês pensam que médium não tem medo? Tem pra caralho, mano! Tipo, vocês também tão vendo aquele cara ali atrás né? Ele tá ali mesmo, né?”. Sorrio para as pessoas ao redor, que me olham extasiadas. Com os olhos apertados, tento entender o que aquela voz distante insiste em me perguntar.

“Véio, tu é umbandista?”

Não.

“Tu tem religião?”

Também não.

Por Igor de Albuquerque

É Dona Calíope... sabemos que a situação não anda nada fácil aí em cima. Se é verdade que desde o surgimento da internet os louvores a ti só têm aumentado, tua popularidade inaudita não anula a assombrosa onda de ataques que tens sofrido. Continuas sendo essa mulher sensível, mas o mundo cresce em disparada dentro dos velhos limites. Quando fazemos algo bom, a despeito de todo esforço, apareces com aquela cara de “não fizestes mais que vossa obrigação”. É Dona Calíope... talvez seja mesmo a hora de rever esse temperamento.

Que nada!

No dia três do mês passado, Fernando Barcellos escreveu no site Horizonte da Cena uma crítica sobre o espetáculo Dança Doente de Marcelo Evelin com a Demolition Incorporada. Entre descrições de cenas e pensamentos pincelados, o texto gira em torno da positividade e potência da doença.

Logo no primeiro parágrafo, Barcellos gasta um número generoso de caracteres para nos explicar o que é uma doença e para dizer que a palavra pode ser usada em outros contextos que não o do corpo humano. Como se o leitor nunca tivesse ficado doente, o crítico enumera variações de alguns males e arremata com um exemplo: o Brasil está doente.

O segundo parágrafo do texto é o ponto alto da discussão. A certa altura o autor questiona se a doença não é necessária para matar algo que precisa ser transformado e dar lugar ao nascimento de outra coisa. Reside aí a potência de transformação da doença. Apesar de muitos de nós termos perdido pessoas próximas para doenças nada poéticas, o argumento é válido e não é muito difícil de entender. Mas Fernando Barcellos parece não pensar assim, pois até o final ele não cessará de voltar a essa ideia através de construções tautológicas, como se esse insight – que o espectador perspicaz já identifica no próprio título do trabalho de Evelin – fosse suficiente para dar conta do fenômeno analisado.

Não é apenas pela recursividade anódina que a leitura se torna penosa. As descrições são igualmente vazias, como no seguinte trecho: “Os corpos, inicialmente imóveis, parecem querer demarcar seu lugar no espaço-tempo de forma inabalável, como se quisessem desesperadamente vencer a força de uma doença da qual não se pode fugir”. Ora, esse período parece valer para qualquer espetáculo que   

ACHAQUES & QUIZILAS 

Da crítica de Fernando Barcerllos sobre Dança Doente publicada no Horizonte da Cena.

começa com dançarinos parados, não fosse pela adição metáfora da doença já presente no título do espetáculo – perdoem minha repetição. A isso, se segue uma evocação às estéticas do candomblé e do butoh que culmina na expressão em negrito “geografia da doença”, assim solta e desprovida de elaboração, afinal, estamos todos familiarizados com o conceito de geografia da doença. Estamos?

No uso dos negritos, o autor se transforma naquele irritante professor de ensino médio viciado pelo gesto protocrítico de aspear com os dedos médios e indicadores “todo” “conceito” “ou “generalização” “que” “aparece” “pela” “frente”. Por isso, durante a leitura teremos de nos habituar ao relevo negro todas as vezes que o campo semântico da doença for acionado. A ênfase, quando usada em demasia, assume a forma de um grande ralo que suga a alma das palavras.

Por fim, vejamos o maior problema – a conclusão do texto. O Brasil está doente. Censura no Queermuseum. MBL. Censura do Jesus trans. Presidente criminoso. Etc. Nas palavras de Basquiat, SAMO. Esses temas não parecem ter muito a ver com o espetáculo de Marcelo Evelin, mas o crítico veste a armadura do paladino contemporâneo que traz gravada no peito o “urgente e necessário”. É o procedimento do reductio ad brasilcontemporaneum. Funciona assim: pegue qualquer fenômeno estético que seja contrário ao discurso oficial, entalhe uma bela tábula rasa e adicione um troglodita do cenário nacional. Agora você já pode assumir o posto de intelectual perspicaz e engajado. Requieascat in pace.

Não que a crítica de arte não seja lugar para discutir a política do presente, que em nosso caso é inegavelmente retrógrada. Nem que a política não perpasse todos os discursos, pois ela está mesmo em todos os lugares. A cilada é partir de uma manifestação estética perturbadora, de trabalhos que colocam questões complexas cujas respostas mal conseguimos ensaiar, para acabar no verso fácil da crítica pronta. Ademais, quem chega num texto sobre um trabalho de Marcelo Evelin dificilmente concordaria com a censura. Fernando Barcellos, depois de pintar o quadro tétrico dos telejornais, acaba com um “dancemos todos doentes. Transformados”, que é tão certeiro quanto um pugilista com pneumonia.

Porque acabar um texto é difícil, né Calíope?    

Rinha 23 - Óleo sobre tela de Moisés Crivelaro

É incrível como os dias passam rápido. A Barril começa a esbanjar as marcas do seu segundo ano. Que venha a maturidade, portanto. É muito bom perceber como os textos dos camaradas vão mudando, e cada um aprendendo com o estilo do outro. A nossa revista vem desbravando um campo crítico amplo demais, que a despeito de sua imensa variedade de escritas, possui poucos solos comuns onde pisar. Já falamos demais da relação entre a crise do jornalismo e a crítica no império da Internet. Sabemos que juntos fazemos um trabalho imenso, e seus frutos já surgem aqui e ali. Crescer é o melhor caminho para a autonomia.

 

Na CRÍTICA Isabela Silveira volta para falar de mais uma peça infanto-juvenil. Desta vez foi ver o ECA! Quanta sujeira!, de Guilherme Hunder. Ali, Isabela desvela o nó górdio entre ética e estética, desdobrando as variações morais das representações feitas para crianças, ressaltando o valor dos símbolos, mas ao mesmo tempo pondo em xeque certas moralizações que cairiam num terreno complicado não fosse a qualidade geral da montagem. Segue-se à esta crítica o REBATE de Guilherme Hunder, sucinto e cavalheiresco demais. Continuamos na busca de rebates poderosos. Não

há porque vê-lo como lugar de conflitos maus, quando na verdade pode ser ágora de inteligências emancipadas.

 

Marcus Lobo, diretor do grupo COATO, foi convidado a produzir um REVERBERA. Lobo escolheu focar num aspecto muito específico do espetáculo A persistência das últimas coisas. Justamente ali onde ele se conecta aos outros de seu gênero: os aplausos.

 

Na CRÍTICA DA CRÍTICA Igor de Albuquerque lança uma série de golpes diretos sobre um texto de  Fernando Barcellos no site Horizonte da Cena. Se Fernando pontua a presença da doença no espetáculo de Marcelo Evellin, o Dança Doente, Igor parece virar gentilmente o espelho ao próprio autor da crítica. Vamos ver até onde nos leva esse boxe da inteligência. O que justifica o embate é sempre um resultado que instigue o 

pensamento.

 

Alex Simões faz um RIZOMA em hiperlink, apoiando-se mais uma vez (Igor de Albuquerque tem feito o mesmo, em duas edições) nas sensações que nos trazem o som, a música, e o sentido das palavras, arrebatadas nas canções. Faz jus ao espetáculo Joelma, de Fábio Vidal,

 trazendo uma serie de pérolas do cancioneiro popular, umas mais conhecidas que outras, obviamente.

 

Bárbara Pessoa visita o Circo Picolino e conversa com a atriz circense Luana Serrat, que entre crises e descobertas na lida diária, entre lonas, ventos, maresia e sóis a pino, vai ajuntando em torno de si uma carreira reconhecida pela firmeza de propósitos e inquietude na pesquisa estética. É o novo circo chegando à Barril.

 

Nesta edição Bárbara faz dobradinha com um ENSAIO, onde coloca no mesmo ringue intelectual o videomaker amador e o cineasta profissional, a arte supostamente espontânea das redes sociais e as obras da alta perfumaria audiovisual. A pergunta é: qual pensa melhor?

Por fim, Daniel Guerra traça na SELFIE o itinerário de sua sensibilidade espiritual em confronto com a presença ambígua de Paulo Mansur, humorista que criou (de acordo com o mesmo), “o primeiro stand-up umbandista do Brasil”. Verdade ou não, a curiosidade nos trouxe seus prêmios.

 

Boa leitura!

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