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novembro #18

V.2 n.9 2017

Crédito da foto não encontrado

Por Raiça Bomfim

SUBSTANTIVO DERIVADO

Sobre o solo “ISTC - Isaura Suélen Tupiniquim Cruz”, de Isaura Tupiniquim

Uma mulher surge na penumbra e, pouco a pouco, desabotoa os panos largos que a cobrem. Raios lazer despontam de si e ela dança lentamente o corpo-escuridão projetado em luzes-vermelho-lanças que a conectam com o que há em seu entorno. Seu balanço abre e recolhe um corpo-ouriço[1] de espinhos acesos. Não sei onde termina aquela mulher, onde estão os limites daquele espaço, onde eu começo. As coisas co-existem mescladas numa zona sideral.

 

Um corpo que se dissolve em múltiplas direções e, assim, nos dissolve junto, fazendo-nos turvos e desterrados: é assim que vivencio o que reconheço como a política fundamental do espetáculo - desterritorializar-se de um eu-tempo-espaço-definido para, então, habitar multiplicidades de ser. Falo de Isaura Suélen Tupiniquim Cruz (ISTC), espetáculo homônimo à sua intérprete. Laís Machado teceu uma primeira crítica do trabalho nesta revista, a qual Isaura Tupiniquim rebateu[2]. Reincido em escrever sobre ele, por achar que é uma obra que merece múltiplos olhares. E teço esta nova crítica, dialogando, de modo mais ou menos explícito, com ambos os textos escritos anteriormente.

 

Voltemos ao dia da apresentação. Passada a cena dos raios lazer, Isaura inicia algo como um desfile de personagens de si. A ideia do desfile é explicitada no programa do espetáculo e instaurada em cena numa sequência entre vestir-se com algumas peças de roupa, traçar rotas variadas, adotando qualidades de movimento cambiantes e tramar alguns desvios – uma ida ao microfone ou uma canção entoada, por exemplo. A certa altura, Isaura desveste-se, para, em seguida, vestir-se novamente sobrepondo novas peças de roupa. Nesse ato, as finalidades de cada peça são reconstruídas e um sapato acaba por vestir uma mão. 

 

As possibilidades de f(r)icção de um nome, questão anunciada como mote conceitual do trabalho, reverbera em mim numa série de perguntas: quantas Isauras cabem em cada nome? Quantos nomes cabem em cada ser-Isaura? Como é que se pode trair a função de identificação e particularização de um nome e celebrá-lo como invocação da multidão?

 

Assisto o desfile de Isauras, de Suélens, de Tupiniquins e de Cruzes. O nome de uma mulher desdobra-se em quatro nomes, cada um com seu modo de fragmento, com seus alinhamentos a nomes afins, com seus RGs reinventados. Aparece uma Suélen gostosa, poderosa, causadora de frisson. A plateia vibra e eu imagino uma nominação complementar, uma Suélen Sangalo, em cujo rastro frenético multidões balançam. Mais tarde, uma Tupiniquim conclama a força libertária de índios e pretos e eu busco nela as marcas dessa guerra. Onde o devir-índia, devir-preta, reage ao ser-branca? Onde o ser branca bate, onde ele apanha? Onde estão as investidas contra o tirano encarnado em nós, por nós? Onde as ancestralidades refazem, em nosso corpo, as batalhas em meio às quais uns matam, enquanto outros morrem? Onde é que a gente precisa destituir-se a si próprio do lugar despótico que inevitavelmente herdamos? E onde tudo isso se mistura num fantasma inexato? 

 

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“(…) vejo Isaura ali, corpo que excede qualquer vestimenta, corpo que não metaforiza outros corpos, mas os invoca, e interrogo: o que pode a metáfora diante do caos da multiplicidade?

A cada momento da expectação e da memória que ela deixa em mim, vou sendo tomada por novas perguntas. Por que não chego a f(r)icciona(liz)ar meu próprio nome? O que decorre do reconhecimento de que a fronteira entre meus nomes e os dela não chega a ser borrada? Onde um nome começa o outro acaba? Ou eles se desfazem mutuamente e se interpenetram?

 

Diante de mim, quatro nomes aparecem em blocos bem divisados, cada um sendo um personagem diferente do outro. A dramaturgia desse desfile, onde cada personagem-nome tem princípio e fim, me leva a um olhar para eus re-definidos, re-organizados e, desse modo, ainda contidos em definições e em ordens, mesmo que de modo mais inventivo. E, assim, eu sigo perguntando: a multiplicidade do ser não se faz justamente na dissolução de cronologias? Como é possível falar de multiplicidade num arranjo linear de sucessões de personagens tão identificáveis?

 

O chão do desfile, um retângulo de linóleo, é atravessado por roupas enfileiradas  que metaforizam a presença de outras gentes. Eu as vejo e compreendo essa intenção, mas vejo Isaura ali, corpo que excede qualquer vestimenta, corpo que não metaforiza outros corpos, mas os invoca, e interrogo: o que pode a metáfora diante do caos da multiplicidade? Uma “coisa que está no lugar de outra” me parece pouco ainda para abarcar a revelação de um ser habitado de muitos.

 

Quando Isaura dá um grito, sei que há muito grito nela, mas ouço aquele grito como uma representação fria, como um gesto que está ali para dizer o que um grito é. Está ali pra dizer sem chegar a sê-lo, pois seu tempo de irrupção no extravasamento de fúrias se trai na pressa em ceder à imposição da marca.

 

Quando, lá pelas tantas, Isaura senta num canto e come uma banana, com aparente calma e indiferença, lembro-me de Laís descrevendo esta cena como um momento de silêncio e permissão: “Perto do fim, Isaura come uma banana sentada ao lado do manequim que agora usa o cocar e todos os apetrechos futuristas, e nesse momento vislumbro o caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz outra vez. Ela se dava tempo, nos dava tempo. Cortava, mastigava e deglutia na beira de uma estrada, diante de um mundo em potência.” Eu, pelo contrário, tenho vontade de dizer a Isaura: “neste dia de hoje, seu corpo é pura estridência, você não é indiferente a nada, está absorta em verborragias”. O silêncio é precioso, o vazio é necessário, mas eles são terríveis: não se permitem imitar. Aquele corpo que come uma banana, neste dia em que eu o vejo, neste dia em que a apresentação foi tomada de frenesi, é o que, para mim, poderia soltar aquele grito que já surgiu naquela marca ali do início. Mais uma vez eu converso imaginariamente com Isaura, “se insurja contra a tirania de sua própria escrita prévia, permita que ela sirva-lhe de guia, de fonte, mas sem tolher-lhe a fremência; assuma, mais uma vez – ainda que possa estar cansada disso - a inescapável precariedade de ser tantas!”.


Em vez de conformar-me à apresentação das múltiplas possibilidades de um nome, vejo em Isaura, no magnetismo de sua presença, os

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apontamentos de um caminho através do qual vislumbrar um nome enquanto potência de ser.

 

Nesse sentido, fazer de um nome “uma dramaturgia de possíveis variações de si”[3] atualiza-se para fazer de um nome “uma dramaturgia de devires”. E a “possibilidade de” é reocupada pela “potência em”, na qual meu próprio nome também seria arrastado.

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E então me questiono sobre o que pode vir a ser, de fato, uma dramaturgia do corpo? Como pode uma dramaturgia que aborda o fragmento não ser, ela própria, insistentemente fragmentária? Como é possível entender que uma dramaturgia do corpo e/ou uma dramaturgia fragmentária pode lidar com a palavra, com o texto, com o discurso inteligível, sem, no entanto, ceder à operação de hierarquização recorrente diante desses elementos? Como não se deter numa dramaturgia feita para falar sobre estilhaços e soltar-se numa dramaturgia estilhaçável, estilhaçada, estilhaçante, que encarna o que diz?

 

No transcorrer do espetáculo, a imagem da cena do lazer vai ficando perdida lá no início, isolada numa ética - de autoimplodir-se em abismo, dar-se à luz em multi-direções - que não se difunde pelos movimentos subsequentes. No entanto, Isaura, revela um corpo complexo e disponível ao inquietante fluxo da vida. Há ali, na densidade de seus movimentos, em seus graves encorpados, os indícios de uma fúria e potência-de-caos que podem, a qualquer momento, implodir aquela ordem de coisas que acaba conduzindo a uma apreciação ainda comedida, ainda contornada. Pressinto que, se ela quiser, colocará abaixo o Teatro Gregório de Mattos, fazendo nossos nomes, nosso ser-estar ali desmoronar-se em devires. Diante desse risco e da cumplicidade que ela, naquele espaço, me oferece, eu lhe murmuro, “vai, minha preta, realiza em nós o estrondo!”. 

 

[1] Referência ao espetáculo “Ouriço”, de Leonardo França, responsável pela direção de ISTC.

[2] Tanto a crítica quanto o rebate podem ser lidos na Edição#12 da Barril: https://www.revistabarril.com/edicao12

[3] Trecho de texto extraído do programa do espetáculo.

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