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REVERBERA Marco Lobo
Crítica - SUBSTANTIVO DERIVADO
CRÍTICA DA CRÍTICA -MEDITAÇÕES CENACULARES
ENCONTRO com Gordo Neto
ENSAIO ENTRE CAVALOS E SUICIDAS
SELFIE - Retrô

novembro #18

V.2 n.9 2017

Substantivo Derivado, por Raiça Bomfim

A atriz, performer e dramaturga Lara Duarte reverbera o espetáculo "Feminino Abjeto", de Janaína Leite, apresentado em novembro no Galpão do Grupo XIX, São Paulo.

Daniel Guerra encontra com o artista da cena e articulador cultural Gordo Neto, na sede do grupo VilaVox, a Casa Preta.

Lara Duarte reverbera o espetáculo Feminino Abjeto

Meditações Cenaculares, por Daniel Guerra

Para que o céu seja céu, por Saulo Moreira e Ana Lígia

Daniel Guerra encontra Gordo Neto

Retrô, por Igor de Albuquerque

Rebate a Crítica Substantivo Derivado, por Isaura Tupiniquim

Entre cavalos e suicidas, por Daniel Guerra

Rebate - substantivo derivado
RIZOMA - Para que o céu seja céu

Crédito da foto não encontrado

Por Raiça Bomfim

SUBSTANTIVO DERIVADO

Sobre o solo “ISTC - Isaura Suélen Tupiniquim Cruz”, de Isaura Tupiniquim

Uma mulher surge na penumbra e, pouco a pouco, desabotoa os panos largos que a cobrem. Raios lazer despontam de si e ela dança lentamente o corpo-escuridão projetado em luzes-vermelho-lanças que a conectam com o que há em seu entorno. Seu balanço abre e recolhe um corpo-ouriço[1] de espinhos acesos. Não sei onde termina aquela mulher, onde estão os limites daquele espaço, onde eu começo. As coisas co-existem mescladas numa zona sideral.

 

Um corpo que se dissolve em múltiplas direções e, assim, nos dissolve junto, fazendo-nos turvos e desterrados: é assim que vivencio o que reconheço como a política fundamental do espetáculo - desterritorializar-se de um eu-tempo-espaço-definido para, então, habitar multiplicidades de ser. Falo de Isaura Suélen Tupiniquim Cruz (ISTC), espetáculo homônimo à sua intérprete. Laís Machado teceu uma primeira crítica do trabalho nesta revista, a qual Isaura Tupiniquim rebateu[2]. Reincido em escrever sobre ele, por achar que é uma obra que merece múltiplos olhares. E teço esta nova crítica, dialogando, de modo mais ou menos explícito, com ambos os textos escritos anteriormente.

 

Voltemos ao dia da apresentação. Passada a cena dos raios lazer, Isaura inicia algo como um desfile de personagens de si. A ideia do desfile é explicitada no programa do espetáculo e instaurada em cena numa sequência entre vestir-se com algumas peças de roupa, traçar rotas variadas, adotando qualidades de movimento cambiantes e tramar alguns desvios – uma ida ao microfone ou uma canção entoada, por exemplo. A certa altura, Isaura desveste-se, para, em seguida, vestir-se novamente sobrepondo novas peças de roupa. Nesse ato, as finalidades de cada peça são reconstruídas e um sapato acaba por vestir uma mão. 

 

As possibilidades de f(r)icção de um nome, questão anunciada como mote conceitual do trabalho, reverbera em mim numa série de perguntas: quantas Isauras cabem em cada nome? Quantos nomes cabem em cada ser-Isaura? Como é que se pode trair a função de identificação e particularização de um nome e celebrá-lo como invocação da multidão?

 

Assisto o desfile de Isauras, de Suélens, de Tupiniquins e de Cruzes. O nome de uma mulher desdobra-se em quatro nomes, cada um com seu modo de fragmento, com seus alinhamentos a nomes afins, com seus RGs reinventados. Aparece uma Suélen gostosa, poderosa, causadora de frisson. A plateia vibra e eu imagino uma nominação complementar, uma Suélen Sangalo, em cujo rastro frenético multidões balançam. Mais tarde, uma Tupiniquim conclama a força libertária de índios e pretos e eu busco nela as marcas dessa guerra. Onde o devir-índia, devir-preta, reage ao ser-branca? Onde o ser branca bate, onde ele apanha? Onde estão as investidas contra o tirano encarnado em nós, por nós? Onde as ancestralidades refazem, em nosso corpo, as batalhas em meio às quais uns matam, enquanto outros morrem? Onde é que a gente precisa destituir-se a si próprio do lugar despótico que inevitavelmente herdamos? E onde tudo isso se mistura num fantasma inexato? 

 

“(…) vejo Isaura ali, corpo que excede qualquer vestimenta, corpo que não metaforiza outros corpos, mas os invoca, e interrogo: o que pode a metáfora diante do caos da multiplicidade?

A cada momento da expectação e da memória que ela deixa em mim, vou sendo tomada por novas perguntas. Por que não chego a f(r)icciona(liz)ar meu próprio nome? O que decorre do reconhecimento de que a fronteira entre meus nomes e os dela não chega a ser borrada? Onde um nome começa o outro acaba? Ou eles se desfazem mutuamente e se interpenetram?

 

Diante de mim, quatro nomes aparecem em blocos bem divisados, cada um sendo um personagem diferente do outro. A dramaturgia desse desfile, onde cada personagem-nome tem princípio e fim, me leva a um olhar para eus re-definidos, re-organizados e, desse modo, ainda contidos em definições e em ordens, mesmo que de modo mais inventivo. E, assim, eu sigo perguntando: a multiplicidade do ser não se faz justamente na dissolução de cronologias? Como é possível falar de multiplicidade num arranjo linear de sucessões de personagens tão identificáveis?

 

O chão do desfile, um retângulo de linóleo, é atravessado por roupas enfileiradas  que metaforizam a presença de outras gentes. Eu as vejo e compreendo essa intenção, mas vejo Isaura ali, corpo que excede qualquer vestimenta, corpo que não metaforiza outros corpos, mas os invoca, e interrogo: o que pode a metáfora diante do caos da multiplicidade? Uma “coisa que está no lugar de outra” me parece pouco ainda para abarcar a revelação de um ser habitado de muitos.

 

Quando Isaura dá um grito, sei que há muito grito nela, mas ouço aquele grito como uma representação fria, como um gesto que está ali para dizer o que um grito é. Está ali pra dizer sem chegar a sê-lo, pois seu tempo de irrupção no extravasamento de fúrias se trai na pressa em ceder à imposição da marca.

 

Quando, lá pelas tantas, Isaura senta num canto e come uma banana, com aparente calma e indiferença, lembro-me de Laís descrevendo esta cena como um momento de silêncio e permissão: “Perto do fim, Isaura come uma banana sentada ao lado do manequim que agora usa o cocar e todos os apetrechos futuristas, e nesse momento vislumbro o caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz outra vez. Ela se dava tempo, nos dava tempo. Cortava, mastigava e deglutia na beira de uma estrada, diante de um mundo em potência.” Eu, pelo contrário, tenho vontade de dizer a Isaura: “neste dia de hoje, seu corpo é pura estridência, você não é indiferente a nada, está absorta em verborragias”. O silêncio é precioso, o vazio é necessário, mas eles são terríveis: não se permitem imitar. Aquele corpo que come uma banana, neste dia em que eu o vejo, neste dia em que a apresentação foi tomada de frenesi, é o que, para mim, poderia soltar aquele grito que já surgiu naquela marca ali do início. Mais uma vez eu converso imaginariamente com Isaura, “se insurja contra a tirania de sua própria escrita prévia, permita que ela sirva-lhe de guia, de fonte, mas sem tolher-lhe a fremência; assuma, mais uma vez – ainda que possa estar cansada disso - a inescapável precariedade de ser tantas!”.


Em vez de conformar-me à apresentação das múltiplas possibilidades de um nome, vejo em Isaura, no magnetismo de sua presença, os

apontamentos de um caminho através do qual vislumbrar um nome enquanto potência de ser.

 

Nesse sentido, fazer de um nome “uma dramaturgia de possíveis variações de si”[3] atualiza-se para fazer de um nome “uma dramaturgia de devires”. E a “possibilidade de” é reocupada pela “potência em”, na qual meu próprio nome também seria arrastado.

E então me questiono sobre o que pode vir a ser, de fato, uma dramaturgia do corpo? Como pode uma dramaturgia que aborda o fragmento não ser, ela própria, insistentemente fragmentária? Como é possível entender que uma dramaturgia do corpo e/ou uma dramaturgia fragmentária pode lidar com a palavra, com o texto, com o discurso inteligível, sem, no entanto, ceder à operação de hierarquização recorrente diante desses elementos? Como não se deter numa dramaturgia feita para falar sobre estilhaços e soltar-se numa dramaturgia estilhaçável, estilhaçada, estilhaçante, que encarna o que diz?

 

No transcorrer do espetáculo, a imagem da cena do lazer vai ficando perdida lá no início, isolada numa ética - de autoimplodir-se em abismo, dar-se à luz em multi-direções - que não se difunde pelos movimentos subsequentes. No entanto, Isaura, revela um corpo complexo e disponível ao inquietante fluxo da vida. Há ali, na densidade de seus movimentos, em seus graves encorpados, os indícios de uma fúria e potência-de-caos que podem, a qualquer momento, implodir aquela ordem de coisas que acaba conduzindo a uma apreciação ainda comedida, ainda contornada. Pressinto que, se ela quiser, colocará abaixo o Teatro Gregório de Mattos, fazendo nossos nomes, nosso ser-estar ali desmoronar-se em devires. Diante desse risco e da cumplicidade que ela, naquele espaço, me oferece, eu lhe murmuro, “vai, minha preta, realiza em nós o estrondo!”. 

 

[1] Referência ao espetáculo “Ouriço”, de Leonardo França, responsável pela direção de ISTC.

[2] Tanto a crítica quanto o rebate podem ser lidos na Edição#12 da Barril: https://www.revistabarril.com/edicao12

[3] Trecho de texto extraído do programa do espetáculo.

Wifredo Lam, "Rumores da Terra"

REBATE À CRÍTICA SUBSTANTIVO DERIVADO

Por Isaura Tupiniquim

Feliz de perceber como é possível provocar tais reflexões a partir do trabalho. 

É uma crítica poética, filosófica e crítica com doçura.

Acho uma responsabilidade muito grande fazer um rebate à sua crítica, porque ela demanda uma pausa... e um silêncio, alguns respiros e um mergulho nas águas do que foi o processo de criação, do encontro com Leo e Sheila, o desafio de fazer coisas que sempre desejei e outras que não sei muito bem porque faço, de perceber a minha transformação enquanto artista e mulher em estado de "desterritorialização"... Entre outras coisas, de aceitar que dessa vez estou falando sim de mim e não só de algo fora de mim que me afeta... Mas, gostaria de não pessoalizar tanto em rebate público, apesar da crítica ter me convocado a uma conversa com chá e vento entrando pela janela, seu filho, vc... e esse monte de pensamentos que não são só seus, foram nossos também durante o processo e ainda são, ainda falamos muuuito sobre como explodir essa multiplicidade em devires e em como escapar dessa temporalidade

concatenada que o trabalho assumiu. Mas preciso dar tempo a esse trabalho, tenho a sensação que eu não controlo completamente ele, ele vai me dando sinais em cada momento com cada plateia ou espaço, coisas vão ficando mais fortes outras mais opacas, e assim sinto que ele é vivo e que ainda tem muito chão pela frente. Desejo que esse trabalho seja cada vez mais povoado, mas eu sou um corpo, um corpo é um limite e me pego em dilemas sobre aquilo que tenho apego, mas pode ser desnecessário, aquilo que tenho preguiça mas que é muito potente... Sinto que sou muito mais viva quando preciso lidar com estados de presença menos estáveis... em ópera nuda a própria lógica do trabalho faz com que não haja espaço para dúvida, mas ao mesmo tempo eu sentia que com essa estratégia de composição o trabalho não dilatava as questões que trazia... quando convidei Leo para me dirigir eu desejava realmente fazer algo "mais arrumado"rs e tinha comigo algo muito forte, e ainda tenho, que era evidenciar de alguma maneira "uma linguagem mais direta com um público diverso" e que essa comunicação fosse também uma espécie de ativismo por isso a Suélen Sangalo é tão forte, pq ela traz a tona um desejo muito íntimo de

nascer... quando vc fala do momento da banana  como sendo algo indiferente, fico triste, pq aquele momento pra mim durante o processo sempre foi muito emocionante, dava vontade de chorar lembrando do meu avô no sítio, ou do meu pai na varanda de pernambués... mas depois, começou a vir também, com essa imagem, algo de feminista, um momento de matar a fome de tudo cortando o falo... enfim, lombras! Enquanto estou escrevendo percebo que seu olhar fez viver o trabalho em mim novamente, quando achava que não conseguiria te dizer nada pelo nível de reflexões do seu texto, me pego pensando em mim pra pensar no "objeto"... agora que dispersei um pouco do fluxo de pensamentos que vc me levou. vou te pedir mais um tempo... pra rebater talvez de outros modos, performando outras presenças de nós para além dessa aqui.

Por Daniel Guerra

Destaca-se sobre o layout em preto & branco um mar de digressões em itálico. Essas letras tortas costumam salientar palavras, indicar idiomas extranjeros, evidenciar títulos de obras, demarcar outras vozes, pontuar citações e neologismos, mas Cristina Leifer as empunha para destilar sobre nós toda a lavra de sua poesia. Nas suas mãos o recurso gráfico derrete-se como os relógios de Dali. Surgem como curvas d’art nouveau, como o voilá pseudobarroco do nanquim nas franjas de um anjinho. Contemplo a figura de Natchtergaele encimando o conjunto, solitário em fundo preto, a pele amarela, o sorriso tímido, uma bolsa a tiracolo, todo um jeitinho de Krishna, quando leio o título: Matheus Nachtergaele, a sua peça é triste e necessária!

 

Não obstante, toda a tristeza em itálico do mundo seria nada sem a proliferação efusiva das reticências… São elas que arrancam o ronco melódico do metal melancólico… São elas que fazem subir aos píncaros celestes os vales da tristeza… E o melhor… Suplantam a necessidade de sintaxe… Dão tempo à narradora… Abrem vãos para saltos… Sim… Às vezes… Contra as anemias acadêmicas… Contra os meios-tons da linguagem jornalística… Sim, entendo-te, Cristina… É necessário um pouco de poesia… Faz-se necessária uma linguagem subjetiva… Que leve em conta o que vai nos nossos corações… O que vai na nossa alma… As nossas agonias… A identificação com o artista… O amor… A admiração… A beleza da obra… Entendo-te… Tudo isso… Pode nos deixar… Muitas vezes… Sem palavras…

 

De tal forma que fica quase impossível voltar a pôr os pés no chão. O ritmo imposto pelos três pontinhos dissolve o discurso, derrete o sentido, joga-nos em outras galáxias, envolve tudo numa cortina de fumaça, ao mesmo tempo em que cria a aparência de uma… revelação. Distribui vazios onde haveria curvas, pontes, represas, sinais.

 

Num texto anterior[1] sobre o resenhista Henrique Wagner, eu já tinha pontuado algo sobre a crítica subjetivista. Ela tende a criar uma aparência de neutralidade justamente onde não há. Torna-se o correlato estilístico do “lavo minhas mãos”. Afinal, “se eu falo de mim, se me exponho completamente, se meço o outro a partir das minhas próprias definições, por quais parâmetros poderiam me cobrar?”. Em Wagner, como provei naquela ocasião, tal subjetivismo vai num caminho oposto ao de Leifer: ele singra pelas tortuosas sendas do azedume e do ressentimento, enquanto ela desce suavemente o riacho das suas próprias sensações, numa espessa cortina de itálicos, metáforas, reticências, memórias e arroubos transcendentais.

 

Defrontando-nos com a primeira camada de texto, sobrevém uma abertura em primeira pessoa, como se faz nos diários: “chorei e refleti muito sobre o mundo, as pessoas e principalmente sobre a minha vida e as minhas relações pessoais…”. No primeiro parágrafo a autora se fantasia como uma “voz do espectador”, voltando pra casa com suas impressões pessoais e intransferíveis, daquelas que habitualmente escorreriam pelo ralo do chuveiro se não tivessem se transformado em sessenta e nove palavras.

 

Depois ela já nos leva diretamente ao espetáculo, revelando-nos qual o balaço que a atingiu: “ele veio até mim, beijou-me a face e, literalmente, pintou-me com a sua tinta amarela…”. Talvez uma boa explicação para a avalanche de lirismo leifertiana seja a abertura provocada pelo “mistério” do ato de Nachtergaele. O temor a deus, apesar de estranho aos descrentes, é a base insondável de muitas religiões. Talvez o toque de Nachtergaele, assim como o do Cristo nas águas de Canaã, tenha conduzido Cristina a um delirium tremens só comparável ao de Moisés frente à revelação de Deus num arbusto tostado. Nacht, que “em alemão é noite”, conduziu-a por acidente - como é comum entre deuses e psicanalistas - ao contato com a morte do pai; arrojou-a de volta ao dia da fissura, ali onde a morte “caiu nos meus braços literalmente….”. “Sim…”, Laifer vivenciou, graças a Matheus, uma experiência potencialmente religiosa, e devidamente glorificada nesse Cenáculo teatral.

MEDITAÇÕES CENACULARES 

Sobre o texto “Matheus Nachtergaele, a sua peça é triste e necessária!”, de Cristina Leifer, no site Cenáculo Núcleo de Estudos Teatrais

Shawn Dickinson, "The Temptation of Siegbone"

Mas os deuses não são feitos somente de névoa, sonhos e fulgurações espirituais. Lá está escrito: “Matheus expôs a sua vida da forma mais simples que se possa imaginar…”. Como provado por Henri Cristo e seu sósia Jesus, os deuses podem sim vestir sandálias e fazer aparições no Domingo Legal. Então façamos jus à suma simplicidade de Nacht (que “em alemão é noite”, não custa nada lembrar). Comecemos de uma vez a transpor - nós, meros mortais - os véus desta delicada tessitura encantada.

 

Já no terceiro parágrafo tocamos alguns tijolos fundamentais do palácio de cristal. Será que por baixo da fé pressentiremos o odor de alguma ideologia? Pois bem, abramos logo esse santinho imaculado. Vejamos se é de porcelana ou de barro: “Não houve autoflagelo... Ele não se cortou, não impôs nenhuma violência ao próprio corpo... Não usou nenhuma pirotecnia corporal... Nem quis fazer militância gratuita de qualquer ordem... Ele simplesmente compôs uma peça pela via da metáfora…”.

 

Chegamos aqui ao núcleo da cebola cenacular. Tendo em nossas mãos esse manifesto estético sintetizado em cinco singelas frases, ficamos sabendo, entre outras coisas, que no nachtergaelismo ortodoxo o corpo é visto como um sepulcro sagrado. Nesse templo não entrarão os demônios da performance art. Heresiarcas natos, os performers estão continuamente distribuindo espingardas e facas; dormindo entre serpentes famintas; tomando tarjas-pretas em meio à audiências ávidas por escândalos espetaculares; deitando-se em enormes cubos de gelo; enfiando objetos no cu; prendendo ganchos na pele e alçando-se aos céus; pregando as mãos num Fusca; fazendo o carro arrancar. E ai daqueles que pregam palavras revolucionárias! A Grande Metáfora Teatral descerá das alturas, e com sua espada de fogo espantará deste lugar todos os repetidores de sujeiras panfletárias, assim como o fazem todas as noites os velhos solitários com suas raquetes mata-mosquitos. “Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem”.

 

Drogas, nem pensar. “É muito mais fácil tendermos para a pulsão de morte, com o objetivo de termos instantes de prazer, tomando remédios ou drogas ilícitas (…)”. Nem um tequinho para agitar o intelecto, nem uma ganja solta e cheirosa, nem as visões gozosas do ácido, nem sequer um copinho gelado do melhor puro malte; mané vinho, mané gota, mané heroína! Nenhum desses prazeres momentâneos, nunca, jamé, nos fornecerão um centésimo do verdadeiro fulgor da Bela Metáfora, pois “a sua/nossa fantasia em torno desse vínculo materno nos lança em uma guerra, entre a pulsão de morte - que pode nos matar em vida [ou definitivamente] nos levando para a paralisia por meio das drogas e dos delírios... -  e a pulsão de vida, que nos leva ao nosso desejo... À produção do belo... À arte... Ao amor!

 

A única salvação é a produção do belo na arte e no amor. Concluímos a leitura ao menos com essa certeza, ainda que seja difícil entender que tipo de belo, que tipo de arte e que tipo de amor Cristina se esforça em nos revelar. Mas todas essas dúvidas não serão mais que ilusões quando chegarmos à epifania sagrada: “Sim, é uma guerra difícil... Muitas vezes navegamos pela pulsão de vida e morte como um pêndulo... Ora lá ora cá... Muitas vezes a balança pesa mais para um lado ou outro... Assim é a vida... O que importa é trafegar nessa guerra da melhor maneira possível…

 

E por todo o Cenáculo ecoam as palavras finais, a única militância permitida neste recinto: “Precisamos de mais peças tristes! Mais peças tristes para aliviar o peso de uma ditadura da felicidade…”.

 

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[1] A Crítica da Crítica pode ser lida na Edição#10 da Barril: https://www.revistabarril.com/edicao10

PARA QUE O CÉU SEJA CÉU

Conversa de vagalumes sobre o espetáculo Para que o céu não caia, da Cia. Lia Rodrigues de Danças

Por Por Saulo Moreira e Ana Lígia 

I. Anotações Iniciais

 

Nota 1: Há mais de um ano, uma amiga me apresentou o livro A queda do céu. Há quatro anos, tenho pensado e me exercitado na amizade. Amizade: gesto de estar amigx / gesto político de existir.

Nota 2: Há muito tempo tenho sido mobilizado pela dissolução do binômio ético | estético. A discussão é antiga e por isso contemporânea. Quero estar em relação de fluxo – estar em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos.

Nota3: Estar na amizade é estar no fluxo. Só x amigx me ensina a ler em intensidade.

Nota 4: Ana, há mais de um ano, me apresentou o livro A queda do céu. Aprendo com Ana a ler em intensidade. Ou seja, quero ler as palavras e as coisas sem apontar as faltas. Quero encontrar as velocidades do outro-coisa-vida.

 

II. A queda do céu: para que o céu não caia

 

“A queda do céu, este livro, ao mesmo tempo relato de vida, autoetnografia e manifesto cosmopolítico, convida a uma viagem pela história e pelo pensamento de um xamã yanomami, Davi Kopenawa”. Esse é o enunciado inicial do prólogo de Bruce Albert. A queda do céu é uma escritura de dois amigos: o yanomami Kopenawa e o antropólogo citado acima.

Há quase um mês, no dia 25 de outubro, convidei Ana para experienciar comigo Para que o céu não caia. Ana topou. Ali mesmo, no Teatro Vila Velha, antes de o espetáculo começar, fiz outro convite para minha amiga – escrever um texto-rizoma para a Barril. Ana topou outra vez[1]. Este rizoma-texto foi feito na troca de áudios pelo whatsapp. Cada áudio é um broto que poderá transforma-se em um bulbo. Exemplos de outros bulbos: a cebola, os lírios e as tulipas.

Antes de apresentar a transcrição dos bulbos, é preciso dizer mais do manifesto cosmopolítico criado pelos dois amigos Davi e Bruce. Embora tenha sido escrito por dois amigos, A queda do céu são as palavras do xamã Yanomami Davi Kopenawa.

Nota de rodapé 15[2] (trechos): “Davi Kopenawa foi iniciado no xamanismo no início da década de 1980. Realizar uma sessão de xamanismo se diz agir como espírito, agir sob influência do pó de yãkoana. O pó é fabricado a partir da resina tirada da parte interna da casca da árvore Virola elongata”.

Ou seja, as palavras de Kopenawa são gestos ecológicos movidos por energias ancestrais, cuja organização sacode tanto o pensamento da metafísica ocidental cristã quanto a lógica de um saber racional imanente. Ou seja, estamos numa zona de uma outra metafísica – são profecias de um corpo incorporado. Os espíritos das vespas, os xapiri, falam com e através de Davi. 

No prefácio do livro, escrito por Viveiros de Castro, lemos o seguinte trecho como alguém que grita: “Temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Kopenawa. Passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais cheia de esquecimento”.

As palavras de Davi nos convoca a ter uma relação atenta e cuidadosa com a natureza mítica das coisas. A profecia de Kopenawa é a profecia de um avatar – ela pousa no coração do hemisfério sul. E nos surpreende não por ser exótica mas pelo fato de poder ter sempre estado oculta quando terá sido o óbvia[3].

Davi Kopenawa: “Desejo, portanto, falar-lhes do tempo muito remoto em que os ancestrais animais se metamorfosearam e do tempo em que Omama nos criou, quando os brancos ainda estavam muito longe de nós. No primeiro tempo, o dia não acabava nunca. A noite não existia. (...) Foi depois de o céu ter caído, que Omama nos criou tais como somos hoje”.

Para a mitologia dos Yanomami, aprendemos, há dois conjuntos principais de narrativas: como surgem os espíritos xamânicos (xapiri) e a criação do mundo e da sociedade atuais. 

Somos resultados da primeira queda do céu e se nós, povo de mercadoria, continuarmos ultrapassando os limites da natureza apenas para satisfazer nossa modo egóico desenfreado de acumular, o céu cairá outra vez.

Apenas os xamãs Yanomamis sabem chamar os Xapiris para que dancem a fim de conter seres maléficos do mundo e combater as epidemias, além de manter o céu no seu devido lugar, mas com o extermínio das florestas e dos últimos povos indígenas e seus Xamãs, os espíritos fugirão para sempre, abandonando o mundo em um caos e assim chegará a queda do céu.

Para que o céu não caia, é necessário que ajamos e logo. De qual maneira? Como ética e esteticamente podemos nos conectar, ainda que essa conexão se dê numa baixa voltagem quando comparada a uma macro oligarquia neoliberal, como podemos (nós, artistas) ecoar o pensamento profético de Davi?

 

Essas perguntas são atualizadas na sinopse do espetáculo Para que o céu não caia:  “Como imaginar formas de continuar e agir? Como o que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?”.

Encontramos na vontade da Cia. Lia Rodrigues de Danças, uma tentativa[4] de um corpo performativo. “O corpo performativo é um corpo-contágio, um corpo-encontro, um corpo-desmantelo e seus efeitos. Trata-se de um corpo que não proclama uma expressão além de si mesmo; não metaforiza, nem literaliza, mas sim age e recria-se no ato, recriando assim o outro que o espreita e interpela”[5].

 

III. Áudio-bulbos

 

Áudio-bulbo 1: E aí, vamos começar os diálogos do Kopenawa?

Áudio-bulbo 2: Aninha, tudo bem? Bom dia! Vamos começar! Ana, tem uma coisa que estava lendo aqui que se cola muito com Para que o céu não caia. É a nota de rodapé 17. Está na página 612. Ó que interessante – a dança de apresentação desses seres imagens (aí tá se referindo às vespas – espíritos – xapiri) reproduz a dos primeiros ancestrais humanos/animais no mito de origem do fogo e constitui o protótipo superlativo da dança dos convidados na abertura das grandes cerimônias intercomunitárias. Esta é realizada em torno da praça central da casa, individualmente no início, depois em grupo. Então isso está muito colado com aquilo que experienciamos. Batendo no chão com os pés, os homens dançam girando sobre si mesmos. As mulheres agitam galhos novos de palmeira enquanto se movem para a frente e para trás. O que me chama atenção é: dançam girando sobre si mesmos.

Sabemos da importância dos movimentos circulares (da roda) nos terreiros indígenas. Poderíamos linkar aqui com toda prática de corpo que gira nos terreiros de candomblé, mas deixemos isso para outro momento.

A natureza é circular. Círculo que se parece com uma espiral – nos movimentos de retorno há respingos, fugas, desvios, é o mesmo-diferente.

Os dançantes de Para que o céu não caia, depois de se melarem de um pó branco, depois de se melarem de um pó preto, depois de nos fazerem girar sobre nós mesmos (nós: espectadores dóceis das salas burocráticas dos teatros eurossentados) no retângulo do espaço, depois de soprarem o pó que vira pó de nuvem, depois de sermos tomados por um cheiro de café (pó de café é distribuído por todo o espaço), depois de rastejarem em gritos apocalípticos (gritos apocalípticos que escutamos toda hora em nossas timelines e nos corredores das ruas da cidade), depois de olharem nos olhos do outro que pode ser eu mesmo, só depois descobrimos que esse depois, por estar na geometria circular do ritual, é um antes. O antes que se dá no depois, talvez nos trinta últimos minutos do espetáculo, é de corpos espiralados muitos próximos um do outro.

Corpo espiralado que vira corpo-feixe. Não tem mais fora e dentro do círculo. Eu assisto, mas meu olho já está revirando. Uma mulher grávida quase vomitou ao meu lado. O cheiro do café, o calor do suor, são quase trinta minutos de corpos que se espiralam e entram nesse devir faísca. Esses corpos são os corpos dançantes da Cia Lia Rodrigues, mas já não o são mais. São sujeitos lutando para que o céu não caia, lutando para não temer, lutando. Ao mesmo tempo, eles entram em outro devir – devir vespa. Agora eles são as vespas – os xapiris. Eles estão dançando ali na minha frente e eu sem saber rezo e danço para que o filho da moça grávida possa conhecer as florestas e os riachos.

No áudio-bulbo 3 eu contei que era muito tomado pelo início do espetáculo, mas agora, no momento da escrita, percebo que esse início não é início no sentido de uma origem, mas um corpo que quer dançar e se prepara para uma incorporação (estética-ética).

Concluo, portanto, que sou tomado por todas as dimensões performativas daquela cena de uma maneira muito parecida (embora diferente) quando vou nas festas da roça de Pai Bené lá em Lauro de Freitas.

Áudio-bulbo 4: Ana diz muitas coisas postas no áudio-bulbo 2. Antes de começarmos a trocar os áudios ela compartilhou o que havia escrito em seu caderno de anotações:

Desde o começo, somos levados a nos deslocar em cena junto com os atores, e a tensão prestes a desabar sobre os nossos corpos é a de que desconhecemos profundamente o outro e a sua dança com o universo. As texturas e as roupagens, permeadas por diferentes estágios sensoriais (que vão de um estar no mundo de modo a encarar firmemente o outro até um movimento avassalador de desamparo), reiteram o artifício de algo que se assemelha a uma loucura: a deles? a nossa? loucura de quem?  Sentimos que o menor deslocamento nos parece enorme. A impressão que se tem é a de se estar em um teatro em 4D, com os sentidos atiçados para só então podermos alcançar a alteridade, uma troca de lugares simbólicos, em que assistimos perplexos os passos tão demarcados de uma dança indígena a ativar a cosmologia de uma cultura altamente complexa. O que vemos quando participamos de Para que o céu o não caia talvez seja justamente a avalanche incontrolável de perguntas e de percepções a nos colocar em uma espécie de devir-índio durante as cenas que se desdobram diante de nossos olhos; um devir urgente – isso é algo que se possa dizer sobre o devir? –, necessário e que dure o tempo que for preciso

Áudio-bulbo 5: ...

Áudio-bulbo 6: ...

Áudio-bulbo 7: ...

Áudio-bulbo 8: ...

Áudio-bulbo 9: Entro em crise e pergunto se o espetáculo beira ao virtuosismo e se não há uma cooptação do discurso de Kopenawa. Aquilo que trago no início desse texto é uma laboração póstuma dessa minha crise. Houve um momento em que caí na dicotomia caduca estético versus ético (nosso corpo é bombardeado o tempo todo pela moral que divide forma e conteúdo, alma e corpo, estética e ética – é difícil escapar). Pensei: o espetáculo não é meramente estético? Até que ponto ele se lança na zona do performativo? Só agora, na escrita desse texto, percebo que essa dicotomia está rasurada e isso já foi dito antes da exposição dos áudios. Ana trouxe uma fala no último áudio-bulbo muito marcante e decisiva para a reversão de meu entendimento.

Último áudio-bulbo: O espetáculo não é meramente estético? Eu entendo para onde vai seu questionamento, mas acho que ele é um questionamento muito perigoso, precisa ser muito bem colocado. Eu fico pensando: a natureza dessa pergunta, se nasce pra você, é porque o espetáculo não funciona como uma questão política mesmo. Eu acho que só individualmente mesmo a gente consegue responder. Do meu lado, eu penso – o simples fato de alguém montar um espetáculo a partir da profecia do Kopenawa, mesmo que o espetáculo mostre um virtuosismo, eu penso que já é tão válido, eu penso que já é uma lufada de vento na nossa cara, eu penso que já é uma palavra que andou, já é um sentido que já está sendo alterado. Para que o céu não caia não sei se é suficiente para o céu não cair, mas é um ponto de luz.

Ana continua. Ela pergunta e responde: O tempo de luz que esse espetáculo projeta é suficiente para que o céu não desabe? Na ferocidade com que a gente destrói o mundo, esses vagalumes são suficientes? Talvez não, mas eles são imprescindíveis.

 

IV. Vagalumes, apesar de tudo

 

O pensamento que Ana aciona é um pensamento bioluminescente e lembra o cheiro e a cor da cúrcuma no chão depois do último sopro que é dado no espetáculo.

Para que o céu não caia é a sobrevivência dos vagalumes (vespas brilhantes).

Terminamos, inevitavelmente, ao lado de Didi-Huberman: “a bioluminescência tem por função atrair as presas ou defendê-las contra o predador. A dança viva dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas. E nada mais é do que uma dança do desejo formando comunidade”[6].

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[1] Igual a Queda do Céu, esse texto-rizoma-texto só existe porque existe uma amizade entre mim e Ana. Ana Lígia Leite Aguiar é professor adjunta de Literatura Brasileira na UFBA e mãe do incrível Joaquim. Ana tem agenciado, entre outras coisas, discussões sobre e com as minorias indígenas.

[2] Essa nota se encontra na página 612 na paisagem nomeada Devir-outro do livro A queda do céu.

[3] Impossível, ao ler Kopenawa, não lembrar a canção Índio, de Caetano.

[4] Falamos tentativa porque tentar já é o movimento, já é a coisa, já é o gesto. Nada garante que o céu não cairá.

[5] Citação de Pablo Assunção B. Costa do texto Eleonora e o corpo performativo – poéticas do ato, materialidades do encontro. Esse texto se encontra no livro Ações, da performer Eleonora Fabião.

[6] Trecho do livro Sobrevivência dos Vagalumes do filósofo Didi-Huberman.

Um dia esse menino voa”, proclamava minha vó enquanto me via balançar os braços debaixo da mesa. Uma criança pode agitar os braços como quiser, mas eu agitava diferente. Eram movimentos sem início ou fim, espasmódicos, como se a velocidade do corpo não alcançasse a da imaginação. No banheiro fantasiava heróis voadores, superpoderes e histórias entre as tramas do azulejo, animais mutantes nadando na pia, furacões e outras formas transcendentais, enquanto as mãos se contraíam e se expandiam pelo espaço. Quando me dava conta, elas paravam. Minha imaginação, como a de muitas crianças, suponho, era projetiva e concreta, dava-se entre mim e as coisas do mundo. Esse é o tipo de comportamento que abandonamos progressivamente, e é justo ele que define a nossa infância. Não poderia ser de outra forma. Todo o restante da criança é projeção adulta. Minha imaginação ainda não estava dissociada do gesto - tendia para o Todo, tocava o corpo do cosmos.

 

Em toda a minha vida, só encontrei um companheiro de balança-braços. Ainda no jardim de infância, percebi que F. tinha o mesmo trejeito. Durante nossas conversas e brincadeiras, as quatro mãos agiam sozinhas no ar feito aranhas em convulsão, enquanto as bocas tagarelavam sobre jogos de computador. Aos poucos, os olhares alheios foram cerceando nosso espaço. Tivemos que retroceder, perdemos território. Do parquinho aos corredores, dos corredores aos quartos fechados.

 

Como esse balançar extravagante foi sumindo aos olhos do mundo, eu nunca pude saber exatamente do que se tratava, ou nunca me contaram. Uma parte foi diminuindo até o tique, outra se transformou em obsessões e linguagem. Na Internet, o mais fisicamente parecido que encontrei foram casos de autismo e certas manifestações da dança contemporânea. Aferrando-me apaixonadamente à última, preferi classificar meus gestos como sintomas de uma “Síndrome de Fukushima”. Hoje, a partir do pouco que pude encontrar, tendo a achar que realmente nasci com um pequeno grau de autismo ou “estereotipia comportamental”. O que aconteceu é que de certa forma fui aprendendo a falar a língua dos homens como quem aprende as regras de um jogo imenso.

 

Mais tarde, essas regras foram me chegando de maneira cada vez mais cínica. Era como se as emoções entrassem poucas vezes na jogada, nesse mundo constituído apenas de fluxos incontroláveis do corpo versus peças idiotas da linguagem. O negócio é que os outros jogadores conseguiam ser tão canalhas quanto eu. Mesmo sem qualquer dia na vida terem tremido um só dos seus quatro dedos mindinhos, eles sempre conseguiam me superar. Porque existe mesmo um cinismo ensinado. Na verdade, em todos esses anos de lida com o mecanismo cru da linguagem, aprendi e decidi que todo ensino, pedagogia ou educação formam algo como uma teia de propagação do cinismo social.

 

É claro que se isso fosse uma tese eu não poderia sair por aí disparando assertivas sem antes recorrer a uma série de explicações maçantes. Ensino, pedagogia e educação não são conceitos iguais, não podem ser confundidos. Mas qual o problema, se Henry Miller, um dos meus autores prediletos, acavalou em suas linhas cachorros, bocas-de-lobo, garrafas, astrofísica, filosofia oriental, armas, chapéus, croissants, batons, abajures, insetos, abacates, cobras, cortes, supernovas, salamandras, paus, bocetas e escovas-de-dentes? O que lhe interessava nas palavras era o grau de intensidade que suportariam ou não veicular.

 

Certos espíritos esclarecidos poderiam me contestar tranquilamente, explicando que Miller é um artista e uma tese é uma tese. Concordo em parte. No campo da crítica, suspeito que a cobrança constante de “profundidade” ou “mais fôlego” sirva somente para esconder a profunda falta de humor e o sufocante carisma de uns tantos pensadores cansados. Em seus conselhos ressoa a restrição: “Daqui você não passa”. Mas vou além. Penso nos lugares em que o conhecimento se reproduz, as celas onde ganham legitimação. Especialmente, não suporto a resistência do academicismo contemporâneo à Descartes - já bastante caquética, diga-se de passagem. Se ponho lado a lado o velho francês e Foucault - um dos superstars da contemporaneidade esclarecida - comparando neles os quesitos prazer, interesse e intensidade, o tom ensaístico do primeiro abre-se como uma caixa de Reich emanando partículas de amor, enquanto os labirintos do segundo remetem aos olhos baços dos paranóicos de Facebook. Foucault terminou sua breve vida tomando LSD e assistindo aos irmãos Marx, mas parece ter legado aos nossos artistas-pesquisadores o quinhão de se sentirem incessantemente punidos e vigiados. A pesquisa acadêmica, seja qual for, tende a arremessá-los justo na malha do poder que pretendiam desentranhar. Agora devidamente engajados num processo infinito de leitura, escrita e referenciação ao Primeiro Livro invisível, se perdem ali onde o próprio Foucault toma uns traguinhos com Kafka. À revelia do seu conteúdo, a voz dos livros foucaultianos vibra na mesma frequência que a dos saberes institucionais, e isso não é uma questão de entendimento, mas de escuta; não de assimilação, mas de toque. Todo estilo, seja bom ou mau, nos chega como atmosfera concreta; nele o saber é uma entidade que vive entre nós - supera, atravessa e contraria biografias, análises, plataformas políticas e grandes interpretações.

 

Enquanto isso, abrindo o Discurso do Método ainda poderemos surpreender Descartes dando passos lentos e solitários num quarto de acampamento militar. Ele nos impõe uma atmosfera noturna, silenciosa, invernal, e o faz na melhor prosa. Pergunta-se como se se questionasse, pela primeira vez, “o que seriam essas coisas estranhas, corpo, eu, deus, espírito, objetos, espaço?”. Haveria, aliás, como filosofar prescindindo desse momento arejado e desmedidamente ignorante? Por que aos deleuzianos da PUC interessa mais dizer “a cidade de São Paulo é um rizoma”, quando poderiam falar como Roberto Piva: “Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci/ onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo seus olhos com/ lágrimas invulneráveis/ onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes/ que saem escondidos das tocas/ onde adolescentes maravilhosos fecham

ENTRE CAVALOS E SUICIDAS

Por Daniel Guerra

seus cérebros para os telhados/ estéreis e incendeiam internatos/ onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam/ a descarga sobre o mundo”? Hoje, o deus de Espinoza, mesmo incrustado no latim austero da lógica clássica, revela-se mais brilhante que uma só molécula de singularidade deleuze-guattarineana.

 

Mas na academia contemporânea a criação e repetição de conceitos dá lugar a uma verdadeira corrida do ouro. Quando observo a penca de pesquisadores repetindo formulações que sequer brotaram do corpo, sou forçado a pensar que naqueles corredores a canalhice reina sozinha, não pela má ou boa fé dos indivíduos, mas por mera inércia ou medo profundo. Trata-se, de fato, de uma obtusidade a la Foucault: a-subjetiva, amoral e sistemática. É claro que os pesquisadores não têm controle algum sobre a própria ignorância, e nem poderiam ter, pois “ninguém se crê desprovido de bom senso”. Em certos momentos, chego até a vislumbrar a luz de uma estranho amor brotando em seus corações, e se os deixamos alguns meses a sós na labuta de suas dissertações, logo surpreenderemos a aurora de uma paixão nascida do lodo, do costume e da inércia, do mofo e da escuridão, como o moksha fermentando no estômago vazio de um sadhu, contraída como se contraem as contaminações por Rádio ou a fé na Santa Cruz. Eis um companheiro à altura da Síndrome de Estocolmo: o Complexo do Ens Investigator.

 

A brutalidade acadêmica é uma enfermidade crônica; não aparece na primeira auscultação. Late por muito tempo dentro dos órgãos, silenciosa e confortável sob as máscaras da impostura, impropriedade, esquecimento, oportunismo, repetição, covardia e mediocridade. Isso não se prova apenas pelas médias de avaliação, mas pelo funcionamento burocrático dos colegiados. É esse minúsculo buraco o portal pelo qual a complexidade será obrigada a se agachar sempre que venha a mendigar qualquer pedaço de pão. Bastam, como santinhos retirados do próprio Relicário do Saber Desconstruidão, as vidas de Nietzsche e Benjamin, ambos duramente rejeitados pelo poder universitário. O primeiro quase não conseguiu publicar em vida, o segundo pelejava como freelancer intelectual. Nietzsche enlouqueceu abraçado a um cavalo. Benjamin, suicidado.

 

Um pouco menos trágicos são os perigos de hoje, apesar de numerosos e possivelmente mais graves, justamente porque mais imiscuídos no cotidiano, mais amenos e adocicados: a subserviência da arte ao jargão científico, a cristalização das instituições acadêmicas enquanto lugares exclusivos de propagação do conhecimento, a tendência do pensamento contemporâneo em afirmar, revelar, esquadrinhar e explicar toda e qualquer dissidência subversiva - como se estas não vivessem justo além de todo mainstream.

 

O preço que a universidade paga por ter se agarrado ao conceito ligado à própria palavra foi o de ter se transformado num monstro totalitário, mas a culpa não é só dela. Suas intenções foram sempre as melhores - as mais morais e as mais edificantes, como as que se espera de um pedagogo genérico. Mas se a voracidade mercadológica - especialmente ambígua nos países pós-coloniais - não perdoa nem grandes editoras como a Cosac Naify, a universidade acaba se tornando o último refúgio do saber; e ainda assim, extremamente contaminado. Vemos agirem nela as mesmas regras do capital: a velocidade na produção de artigos, a exploração do trabalho dos orientandos, os lucros na pontuação do Lattes, o carreirismo, o corporativismo, o ritual do lambe-botas e o alpinismo institucional. Nada em seu estilo configura novidade: esse permanece duro como sempre foi a partir do período moderno; mas suas ideias, a despeito da chuva intermitente de novos conceitos e epistemologias, tornam-se mais e mais repetitivas. Ironicamente, a pasteurização das teorias desconstrucionistas têm funcionado, na boca de distintos doutores, como placebos a camuflar uma total falta de invenção. Sejamos francos. Há muito pouco de corpo no corpo tratado pelos artigos de dança, não há nada de som nas palavras produzidas pelos pesquisadores musicais. É o uso repetitivo de certos jargões que acaba criando sua própria utilidade. Tudo acontece como se a mera blablação mântrica de palavras como eucorpo, corpoeu, motocorpo, corpomídia, corpomundo, mundocorpo, corposemcorpo, corpocomcorpo, artistacorpo, artistanocorpo, corpoemvida, corpoárvore, corponaárvore, corponocorpo, corponocôco, vovôviuocorpo, corpoproc, corponoproc, corpodeporco, corpopoporco, porconocorpo, corpoacorpo, corpocomcorpo, corpococorpo, pudesse fazer com que o fantasma e a máquina de Descartes se reconciliassem milagrosamente, quando esses conceitos não são mais que a própria cisão incorporada.

 

Da primeira vez que passei meses produzindo um trabalho acadêmico a única coisa que ganhei de verdade foi um refluxo gástrico. Naquela época tirei o café, mas só melhorei mesmo quando pude novamente sair para respirar um pouco de ar. Me sentia como um Sócrates bukowskiano em que o daimon era um blue bird afogado por intermináveis tragos de referências e citações. Mas ao menos uma coisa ficou clara: o estilo, as normas e o ritmo da produção acadêmica são absolutamente insalubres. Uma vez dentro da academia, qualquer pensador minimamente honesto será obrigado a não ser mais que um bom malandro a driblar as constrições assimiladas. É uma luta invertida pela sobrevivência, na qual mentes brilhantes definham e opacas sobem degraus. A tônica geral é a de um terror muito bem dissimulado. Num país em que um encenador octagenário como Zé Celso precisa fazer campanha de crowdfunding para pagar uma cirurgia cardíaca, o pesadelo e o sonho de todo artista é conquistar uma vaga na pós-graduação. O que os impulsiona é menos o prazer da investigação que a perspectiva de uma velhice com dentes podres.

 

Dessa paisagem pós-apocalíptica e suas dantescas visões, até agora a crítica tem me salvado por vias inescrutáveis, algumas dolorosas, outras nem tanto, e a cada vez que tentei esquecer, sublimar, reprimir, afogar, castrar, domesticar, organizar, ensinar, conscientizar, civilizar, educar, capacitar, endireitar ou humanizar o tremor subterrâneo dos meus braços, ela me ressuscitou com um soco certeiro na boca do estômago.

Há quem chame de fechamento de ciclo – pode até ser – mas bom mesmo seria um fechamento de corpo, porque ando precisado de proteção extra. Trabalhar na Barril por dois anos envolve uma carga daquelas. Na festa de lançamento da nossa versão impressa, por exemplo, eu dançava todo feliz, quando, de repente, torci meu pé tão forte que fiquei mancando o mês seguinte inteiro. Percebam que essa torção não teve nada a ver com meu estado eufórico de embriaguez, nem com a minha dança que tentava imitar os movimentos dos dançarinos profissionais e performers presentes. Foi mau olhado[1].  

 

Aí vindes outra vez, inquietas sombras.

 

Dois anos. Até aqui muita água rolou e ferveu e evaporou, consequentemente, queimamos muito fundo de panela. Escrevemos com pena tradicional, psicografamos em touch-tech, filmamos ideias verdes incolores, versejamos críticas trans. Trocamos ideias com Michel de Montaigne, transamos Yuri Tripodi e Ivana Chastinet. Transamos todas, como diziam nossos ídolos na sintaxe sacana dos 70's and 80's tupiniquins.

 

Confesso que escrevi, que editei. Revisei, desenhei, marquei encontros e furei reuniões. Em suma, assobiei e chupei cana. Todos os membros da revista fizeram o diabo, mas isso é uma SELFIE, e vou falar em primeira pessoa – eles que façam os textos deles. Foram os melhores e os piores anos da minha vida. Porque houve empolgação e êxtase, porque me firmei em Salvador, porque criei com amigos uma revista a partir do nada sem ter um real no bolso, porque sem ter um real no bolso vivi miseravelmente, porque nos apertamos entre prazos delirantes, porque me casei e fui o homem mais feliz da cidade, porque me derrubaram duas vezes do mesmo programa de pós-graduação, porque perdi meus óculos escuros quando escrevi o perfil de Márcio Meirelles, porque ganhamos um edital e pudemos pagar textos de artistas talentosos, porque chegou o divórcio e fui o homem mais triste desta década, porque agora chego ao fim de uma jornada sem ter a mínima ideia do que virá. Para o bem ou para o mal.

Porque este texto é uma despedida. RIP REVISTA BARRIL DE ARTES CÊNICAS gravado nesta lápide digital. A revista se despede aqui de seu respeitável público após 18 números, muitos textos, festas, seminários, entrevistas, workshops. Depois de muita presepada,

Por Igor de Albuquerque

RETRÔ

Selfie sobre a primeira morte da Revista Barril de Artes Cênicas

A DEUS ÃO

 

, como diziam nossos ídolos Torquato Paulo Neto Jards José Macalé na sintaxe sacana dos 70's and 80's tupiniquins. 

 

Tá, vamos com calma. É exagero, é drama, é tensão narrativa. A Revista Barril não acabou com ponto final, nem sequer está dando uma pausa. Na verdade o que está por acontecer é uma metamorfose. Em fevereiro nos reencontraremos, caros leitores, em algum lugar, mas não será aqui, porque nos cansamos deste formato.

 

Vejam a nossa última reunião geral de conselho. Era uma tarde de calor esfoliante na casa de Laís Machado; tinha gente abandonando o barco, olhares de morte, tremedeira – O Evangelho Segundo Mateus mais uma vez –, pranto e ranger de dentes. Em algum momento, eu disparei: se a Barril continuar do jeito que está eu também vou sair. Ora, no ritmo de desistências daquela tarde fatídica, se mais alguém desse pra trás a coisa desabava. Mas era retórica pura. Sempre houve um plano de emergência, um plano que já estava latente em todos os membros da revista. Não era uma intriga urdida na boca miúda de poucos conspiradores, pelo contrário: o monstro era como uma consequência inevitável cuja exuberância emergia aos poucos. Estamos mais para Michael Jackson que para Maquiavel.

 

E qual a fase dois dessa metamorfose? Calma! Porque abertura de processo tem limite. Porque adiantar os planos dá azar. E porque é preciso respeitar alguma coisa, principalmente quando ela é invisível.

 

Superstição? Va lá. Não sou tão iconoclasta assim. Nem posso[2].

 

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[1] Nunca tinha buscado ajuda espiritual antes dessa viagem de Chihiro editorial que é a Barril. Depois de uma série de sinais sinistros dessa ordem, fui finalmente a um terreiro e lá ouvi o seguinte: “Meu filho, você não é do tipo de gente que pode ficar sem trabalho, não”. Desde então tenho feito o possível junto aos santos.

[2] Voltar a nota número 1.

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