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agosto #15

V.2 n.6 2017

Foto de Leonardo França

Por Alex Simões

VAGA CRÍTICA

Sobre o espetáculo Vaga Carne, de Grace Passô.

Em português a palavra conversar tem origem etimológica no verbo latino conversare , que justapõe os elementos “con”, (junto),  e “versare”, (dar voltas): dar voltas junto com, conviver. A palavra conversação vem do latim de conversatio, onis, que remete a convivência, a viver junto. Nós somos mediados pela linguagem, existimos através dela e todo ato de fala é um aceno em direção ao outro, um exercício de sociabilidade, ou ao menos uma recusa à solidão, pois, mesmo quando estamos pensando em voz alta, sozinhos, na escuridão de nossos quartos de apartamentos de cidade grande, estamos querendo dizer que.

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Existimos através da linguagem; mais que isso, só existimos nela. Realizamos coisas com a linguagem. Dizemos verdades, mentimos, prometemos, inventamos e inventariamos o que vemos, o que deliramos, prometemos, postergamos, trapaceamos, rompemos, perguntamos, verificamos se o outro está acompanhando o nosso raciocínio, se o outro está nos escutando, interrompemos sua fala, calamos o outro, nos calamos, abrimos mão de nos posicionarmos, silenciamo-nos.

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Há sempre uma voz dentro da gente, mesmo quando não emitimos grunhidos com nosso sistema digestivo-respiratório adaptado para produzir um número limitado de sons que, em combinações e sequências variadas, significam algo para um número finito de pessoas. Essa voz chega sempre antes da gente. Como o apito da fábrica de tecidos da canção de Noel Rosa, a voz da nossa mãe é a primeira manifestação do mundo tal qual o conheceremos. E é a nossa voz, moldada pela voz de nossa mãe, de nossa língua materna, que servirá de base para estruturar nossos raciocínios mais consolidados, nossos delírios mais inapreensíveis. É a nossa voz que escutamos quando em completo silêncio, é a nossa voz que escutam quando gritamos.

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Em tempos em que se usa muito a expressão ‘lugar de fala’, Grace Passô nos apresenta uma perspectiva desconcertante sobre a relação corpo e voz. Estamos diante de um solo em que por alguns minutos tudo o que temos é um blecaute e uma voz que emite em ritmo labiríntico palavras que são ora verbetes de um dicionário particular, ora juízos sobre nossa incapacidade de nos pensarmos para além de nossa condição humana, e mesmo de pensarmos na possibilidade de uma voz ser um

elemento em si, e não algo que não nos pertença. Essa voz tem o poder de entrar em diferentes elementos, não só em seres vivos,

Em tempos em que se usa muito a expressão ‘lugar de fala’, Grace Passô nos apresenta uma perspectiva desconcertante sobre a relação corpo e voz. Estamos diante de um solo em que por alguns minutos tudo o que temos é um blecaute e uma voz que emite em ritmo labiríntico palavras que são ora verbetes de um dicionário particular, ora juízos sobre nossa incapacidade de nos pensarmos para além de nossa condição humana, e mesmo de pensarmos na possibilidade de uma voz ser um elemento em si, e não algo que não nos pertença.

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mas didaticamente se entronizará no corpo de uma mulher para que possamos minimamente apreender a sua substância (não da mulher, não do corpo, mas da voz, ela mesma).

 

E é desconcertante porque quando finalmente essa voz adere ao corpo em nossa frente, há resistência mútua. Voz e corpo estão em crise, divergem entre si, colapsam-se na vertigem de não se pertencerem. E o corpo nos é apresentado de forma fragmentada, com uma luz que vai delineando os contornos, nos exibindo um rosto aos poucos, um rosto envolvido por um turbante, um rosto mascarado por um par de óculos escuros. Esse corpo está elegantemente vestido porque se sabe disposto a uma viagem. Um corpo que é uma embarcação, que acena uma despedida porque todo ato de linguagem é  de algum modo um abandono do domínio da intenção de sentido.

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Sai um líquido desse corpo-embarcação. Esse corpo viagem produz fluidos, vomita dizeres, nos embaraça com sua aparição entre o movimento robótico, a cabeça que pendula sem afetar a consistência da voz divergente, o figurino grávido de fluidos e cigarros e uma voz que nos interpela.

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E há o risco. O risco dela, o risco nosso. Nesse intermitente interpelar, se estabelece ou não o pacto, o acontecimento cênico, a transfiguração do monólogo em diálogo. Não há fracasso ou sucesso. Há turnos de fala e um corpo que se deixa atravessar por palavras que alguns de nós, mais ou menos desavisados, lhe damos. Um corpo tecnicamente preparado para dançar o silêncio ou mastigar e vomitar as palavras que lhe damos. Um corpo que também reage aos diversos estímulos não verbais mas significantes na medida em que uma tosse ou um espirro reverberam nele. Silêncios grávidos deixam penetrar um barulho da descarga do carro que passa pela Avenida Carlos Gomes.

E há outros sons. São sons não decifráveis, que nos remetem a vibrações, ondas, reatores nucleares, impulsos sonoros de uma audiometria espetacular. Nós somos interpelados sobre nossa capacidade de escutar. Temos ali uma voz, que chega num corpo, que vai se contornando pela luz, pelos sons, pela voz, por nós mesmos, por ela, uma mulher, uma mulher negra, uma voz de um corpo de uma mulher negra que. A coreografia é também embalada por uma bateria, executada ao vivo por Ricardo Garcia. Há nossa tentativa de dizer, nós, os da plateia, estamos de frente para ela, estamos ao lado dela,

estamos hipnotizados por aquela disjunção corpo-e-voz elaborada matematicamente.

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Há uma atriz e há um corpo e voz de uma atriz negra brasileira, uma atriz contemporânea, virtuose a ponto de disciplinar o ego e se mostrar sob o véu da linguagem artística que escolheu como modo de estar no mundo e por qual foi indubitavelmente escolhida. E há as lacunas, pois são tantas as perguntas que não se deixam responder porque não há tempo para isso. As perguntas são mais produtivas que as respostas; as conversas mais íntimas e mais profundas são cheias de lacunas. Ela sabe, você sabe, nós sabemos. Sabemos?

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Há um teatro impossível dentro do possível, uma ação artística que se realiza ali, pela ausência presença, pelo silêncio som, pelo corpo cenário, pela onda sonora instrumento, pela atriz desconcertante plateia desconcertada.

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Em menos de uma hora, nos vemos ali, dando voltas com, ou melhor, conversando com Grace Passô, nos percebendo carnes vagando no espaço, vagas carnes amorfas, vozes que chegaram antes de nós.

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Com este texto eu queria dizer que.

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