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CRÍTICA É POIS UM APAIXONADO QUE FALA E DIZ
REVERBERA Ana Antar
Crítica - VAGA CRÍTICA
CRÍTICA DA CRÍTICA -E Agora?
RIZOMA - O Livro em Pessoa
ENCONTRO com Thiago Ribeiro
GEMER A GRAMÁTICA DA EXISTÊNCIA
SELFIE - DESPACITO
TRETA - Assim também já é demais também

agosto #15

V.2 n.6 2017

Vaga Crítica, por Alex Simões

Foto de Andrea Magnoni

EDITORIAL

A diretora teatral, designer de games e iluminadora Ana Antar reverbera o espetáculo "A Voz do Campeão", dir. Edvard Passos.

Daniel Guerra encontra com Tiago Ribeiro, dançarino, performer e pesquisador em dança.

É pois um apaixonado que fala e diz, por Saulo Moreira

E agora?, por Laís Machado

O Livro em Pessoa, por Rafael Galeffi e Igor de Albuquerque

Daniel Guerra encontra Thiago Ribeiro

Gemer a gramática da existência, por  Rafael Limongelli

Despacito, por Daniel Guerra

Ana Antar reverbera A Voz do Campeão

Assim também já é demais, por Bárbara Pessoa

Esse texto não deveria ser escrito nesta língua e nem em língua nenhuma. Hoje ainda se escrevem textos em línguas, frases conjugadas em significação que possibilitam movimentar pensamentos e corpos; que possibilitam organizações societárias em torno de Estados Nacionais, Leis e Jurisprudência; que possibilitam pesquisas em codificação genética, em armamento químico, em balística; que possibilitam a inculcação no medo de cada um/uma e suas confissões. As palavras e suas coisas sórdidas. E como a língua portuguesa é aquela em que navego com maior fluência e é também a que me permite esburacar com maior força a superfície que ela mesma organiza pela gramática, seguem essas palavras em variação contínua e ritornelos de gozo.

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Escrevo em ressonância às mulheres que irromperam uma performance de Carolina Bianchi, Quiero hacer el amor[2], realizada durante a programação DEGENERADAS, no SESC Santana, em 2017. Tal acontecimento explodiu na minha pele e na pele do mundo um atravessamento ao mesmo tempo sutil e devastador, conectando-me com uma variação contínua e infinda das possibilidades de conjugar sujeitos, verbos e substantivos; ou seja, a existência, a potência e a matéria.

!

Um muro. Um paredão. Uma cordilheira. Uma baleia enorme no meio da avenida Luiz Dumont Vilares.

 

Um fila de mulheres, umas ao lado das outras, vestidas de n topografias-sociais (jogadora de futebol, mecânica, atleta, atriz, transeunte...), vestidas de tantos modos que nada lhes afere qualquer significado. Não são uma fila codificável.

Devagar exercitam a capacidade de se conectar umas com as outras, caminhando sempre com o olhar à frente, reconhecendo-se enquanto ressoantes às outras, experimentando, sem roteiro e dramaturgia prévia, uma sequência de ações coletivas. Cada uma em sua experiência singular se permite conduzir e ser conduzida por outra, sem hierarquia de comando, sem protagonismo individual, sem vanguardas.

Uma experiência de criação de um comum. O comum não é uma pauta. Não pode ser expresso em manifestos. Não pode virar palavra de ordem. Impensável como hino ou marcha de guerra. O comum é indecifrável pelas malhas do controle, ilegível para os fiscais da norma. O comum não pode integrar uma lista de reivindicações, entre concessões e avanços (como clamam sindicalistas de todo o mundo) a serem negociados.

“Os manifestos proporcionam o vislumbre de um mundo por vir e também dão existência ao sujeito que deve se materializar para se tornar o agente da mudança. Os manifestos funcionam como os antigos profetas, que pelo poder de suas visões criam seu próprio povo”[3].

As mulheres que estão aí não estão por uma transformação no porvir, depois da grande luta, depois da revolução, depois da faculdade, depois de casar, depois de pagar as contas, depois de pedir perdão ao pai e ao padre. O que aquelas mulheres desejam não é passível de transcrição e de espera: o tempo é agora e o espaço é o que existe. E isso é uma condição inegociável.

&

Deleuze, em Gaguejou..., nos incita a perceber uma afetividade intensiva na linguagem. Um modo, uma operação de colocar a língua, a própria língua e não apenas sua fala, em variação contínua. Permitir que as conjunções entre fonemas e palavras deixem de ser exclusivas na conformação da gramática e fujam para disjunções inclusivas, inesperadas e espevitadas da língua.

“É o que acontece quando a gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas ela própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem separadas da gagueira que as seleciona e as liga por conta própria. (...) Uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala.” [4]

Beckett é um dos escritores que Deleuze utiliza como disparador para pensar essa gagueira da língua. Comenta ser possível observar um sistema linguístico como um “estar em equilíbrio”[5] ou superfície homogênea. Nessa homogeneidade é possível mapear todas as conexões possíveis entre os artigos e sujeitos e verbos e suas conjugações. As possibilidades de dizer são todas previsíveis e equilibradas. Escritores como Beckett fazem ruir essa concepção de língua homogênea. Trata a língua maior, homogênea, estável, previsível, Histórica e reconhecível de um modo menor.

Em outro escrito de Deleuze, Um manifesto do Menos, distinguem-se duas operações opostas: tornar maior e minorar. Tornar maior envolve a seriedade e a estruturação maquínica da doutrina, da cultura, da grande História; envolve também todo tipo de normalização, uma normopatologização dos afetos, dos gostos, das percepções. Assim Deleuze coloca as coisas: “de um pensamento se faz doutrina, de um modo de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História. Pretende-se assim reconhecer e admirar, mas, de fato, se normaliza”[6]. Maiores são, por exemplo, as línguas nacionais e transnacionais; a trama e a urdidura do tecido de algodão; a dramaturgia teatral psicológica, o ballet (clássico e moderno), a dança popular mapeada e catalogada, que comportam em si uma continuidade homogênea e permanente. Ao contrário, porém, operar no menor, minorar, seria colocar em variação contínua essa língua, como uma gagueira, não da voz, e sim da linguagem.

GEMER A GRAMÁTICA DA EXISTÊNCIA

Por Rafael Limongelli[1]

“Então, operação por operação, cirurgia contra cirurgia, pode-se conceber o inverso: como minorar, como impor um tratamento menor ou de minoração, para liberar devires contra a História, vidas contra a Cultura, pensamentos contra a doutrina, graças ou desgraças contra o dogma”[7].

 

Os corpos se espraiam pelo saguão de entrada do SESC Santana, pela calçada e pela avenida Luiz Dumont Vilares. Ou se espraiavam por toda América Latina, por detrás das geleiras glaciais da Antártida, por entre minhas pernas. Pululavam em múltiplos direcionamentos no espaço, localizando-se pela orientação do desejo ingovernável, pelo erótico de cada uma e de tudo que estava no espaço.

 

Fodiam com o espaço.

Conjugamos normativamente permissões para agir de acordo com a gramática dominante: sujeitos conjugam verbos sobre objetos, subordinados à gramática. O verbo “sentar” é possível, sintaxicamente, de se conjugar com “bancos, chão, cadeira, poltrona, sofá etc”, bem como o verbo “acariciar” serve a “corpo, cabelo, cachorro, amiga, namorado, amante etc”. Há sempre um sujeito, esclarecido pela razão, que conjuga um verbo normalizado a algum objeto.

Na orgia disparada por Bianchi, performers despossuídas de suas limitações e sujeições reconectavam os verbos em ações disparatadas, como “acariciar com prazer o teclado do telefone público” e “penetrar com o punho o porta-guarda-chuvas” e “roçar com carinho as escápulas no caule de uma planta” e “friccionar com fúria o totem-informativo contra o chão” e “amassar o rosto com tesão contra a parede de vidro” e “abrir com ternura e sensualidade as pernas da porta de vidro”, etc.

As performers atravessavam o território esquadrinhado-estriado do espaço de convivência do SESC Santana movidas por forças de alisamento; o que as conduzia não era acessível às codificações que poderiam prever e analisar as ações a partir de significados reconhecíveis. Elas se atiravam de um desejo a outro, de uma conexão a outra sem plano de voo ou roteiro prévio. São forças de expansão das possibilidades de percepção daquele espaço, expansão das possibilidades de percepção do corpo entre o que é permitido-aconselhável e o que é inimaginável, impossível, invisível, impensável e indizível. Tal estado minoritário no movimento das performers pode ser percebido como uma força de alisamento sobre o corpo. Uma capacidade de afetar, perceber, ser afetado e ser percebido. Elas não estão defendendo uma pauta, uma bandeira, uma aula, um conselho sobre “como devemos viver” e sobre “o que você deve fazer”. Não há intencionalidades pedagógicas e vontade de esclarecer quem assiste.

Elas faíscam.

Incendeiam quem se permitir queimar.

±

Antes do produto cênico (teatro, performance, dança) existe a própria vida daquelas mulheres como criação e invenção de si mesmas. Um erotismo inesgotável da possibilidade de experimentação de si como estratégia ética em um universo em guerra. Uma espécie de afirmação inexorável do real como fato, intransponível e inalienável, que catapulta as experiências delas como mulheres, como pessoas, como gêneros definidos, como binárias, para além das possibilidades de ser.

 

No sexo o que nos move é a força erótica, indomesticável! Quando foi que recolhemos o erotismo apenas ao território ‘sexo’?

 

Deixar vazar o erotismo por aí! Criar variações contínuas de estéticas de existir.

___________________________________________________________________

[1]Rafael Limongelli é técnico em artes cênicas (INDAC/2008), bacharel em ciências sociais (PUC/SP/2013) e mestre em educação (UNIFESP/2017). Publicou o livro Cretino (Ed. Patuá/2013) e contribui para as revistas Alegrar, Texturas e Córrego. Tem pesquisas em dança e performance, como intérprete e criador.

[2] Direção Geral: Carolina Bianchi. Performers: Debora Rebecchi, Michele Navarro, Marina Matheus, Danielli Mendes, Mariana Montovani, Carolina Splendore, Larissa Ballarotti, Flora Kountouriotis, Joana Ferraz e Mariza Virgolino.

 

[3] NEGRI, Antonio e HARDT, Miachael. Declaração Isto não é um manifesto. São Paulo, N-1 Edições, 2ª Ed., 2016, p. 9.

 

[4] DELEUZE, Gilles. Gaguejou.... In Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 38.

 

[5] DLEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014.  

 

[6] DELEUZE, Gilles. Sobre teatro: um manifesto do menos; o esgotado. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2010, p. 37.

 

[7] Idem.

Foto de Leonardo França

Por Alex Simões

VAGA CRÍTICA

Sobre o espetáculo Vaga Carne, de Grace Passô.

Em português a palavra conversar tem origem etimológica no verbo latino conversare , que justapõe os elementos “con”, (junto),  e “versare”, (dar voltas): dar voltas junto com, conviver. A palavra conversação vem do latim de conversatio, onis, que remete a convivência, a viver junto. Nós somos mediados pela linguagem, existimos através dela e todo ato de fala é um aceno em direção ao outro, um exercício de sociabilidade, ou ao menos uma recusa à solidão, pois, mesmo quando estamos pensando em voz alta, sozinhos, na escuridão de nossos quartos de apartamentos de cidade grande, estamos querendo dizer que.

Existimos através da linguagem; mais que isso, só existimos nela. Realizamos coisas com a linguagem. Dizemos verdades, mentimos, prometemos, inventamos e inventariamos o que vemos, o que deliramos, prometemos, postergamos, trapaceamos, rompemos, perguntamos, verificamos se o outro está acompanhando o nosso raciocínio, se o outro está nos escutando, interrompemos sua fala, calamos o outro, nos calamos, abrimos mão de nos posicionarmos, silenciamo-nos.

Há sempre uma voz dentro da gente, mesmo quando não emitimos grunhidos com nosso sistema digestivo-respiratório adaptado para produzir um número limitado de sons que, em combinações e sequências variadas, significam algo para um número finito de pessoas. Essa voz chega sempre antes da gente. Como o apito da fábrica de tecidos da canção de Noel Rosa, a voz da nossa mãe é a primeira manifestação do mundo tal qual o conheceremos. E é a nossa voz, moldada pela voz de nossa mãe, de nossa língua materna, que servirá de base para estruturar nossos raciocínios mais consolidados, nossos delírios mais inapreensíveis. É a nossa voz que escutamos quando em completo silêncio, é a nossa voz que escutam quando gritamos.

Em tempos em que se usa muito a expressão ‘lugar de fala’, Grace Passô nos apresenta uma perspectiva desconcertante sobre a relação corpo e voz. Estamos diante de um solo em que por alguns minutos tudo o que temos é um blecaute e uma voz que emite em ritmo labiríntico palavras que são ora verbetes de um dicionário particular, ora juízos sobre nossa incapacidade de nos pensarmos para além de nossa condição humana, e mesmo de pensarmos na possibilidade de uma voz ser um

elemento em si, e não algo que não nos pertença. Essa voz tem o poder de entrar em diferentes elementos, não só em seres vivos,

Em tempos em que se usa muito a expressão ‘lugar de fala’, Grace Passô nos apresenta uma perspectiva desconcertante sobre a relação corpo e voz. Estamos diante de um solo em que por alguns minutos tudo o que temos é um blecaute e uma voz que emite em ritmo labiríntico palavras que são ora verbetes de um dicionário particular, ora juízos sobre nossa incapacidade de nos pensarmos para além de nossa condição humana, e mesmo de pensarmos na possibilidade de uma voz ser um elemento em si, e não algo que não nos pertença.

mas didaticamente se entronizará no corpo de uma mulher para que possamos minimamente apreender a sua substância (não da mulher, não do corpo, mas da voz, ela mesma).

 

E é desconcertante porque quando finalmente essa voz adere ao corpo em nossa frente, há resistência mútua. Voz e corpo estão em crise, divergem entre si, colapsam-se na vertigem de não se pertencerem. E o corpo nos é apresentado de forma fragmentada, com uma luz que vai delineando os contornos, nos exibindo um rosto aos poucos, um rosto envolvido por um turbante, um rosto mascarado por um par de óculos escuros. Esse corpo está elegantemente vestido porque se sabe disposto a uma viagem. Um corpo que é uma embarcação, que acena uma despedida porque todo ato de linguagem é  de algum modo um abandono do domínio da intenção de sentido.

Sai um líquido desse corpo-embarcação. Esse corpo viagem produz fluidos, vomita dizeres, nos embaraça com sua aparição entre o movimento robótico, a cabeça que pendula sem afetar a consistência da voz divergente, o figurino grávido de fluidos e cigarros e uma voz que nos interpela.

E há o risco. O risco dela, o risco nosso. Nesse intermitente interpelar, se estabelece ou não o pacto, o acontecimento cênico, a transfiguração do monólogo em diálogo. Não há fracasso ou sucesso. Há turnos de fala e um corpo que se deixa atravessar por palavras que alguns de nós, mais ou menos desavisados, lhe damos. Um corpo tecnicamente preparado para dançar o silêncio ou mastigar e vomitar as palavras que lhe damos. Um corpo que também reage aos diversos estímulos não verbais mas significantes na medida em que uma tosse ou um espirro reverberam nele. Silêncios grávidos deixam penetrar um barulho da descarga do carro que passa pela Avenida Carlos Gomes.

E há outros sons. São sons não decifráveis, que nos remetem a vibrações, ondas, reatores nucleares, impulsos sonoros de uma audiometria espetacular. Nós somos interpelados sobre nossa capacidade de escutar. Temos ali uma voz, que chega num corpo, que vai se contornando pela luz, pelos sons, pela voz, por nós mesmos, por ela, uma mulher, uma mulher negra, uma voz de um corpo de uma mulher negra que. A coreografia é também embalada por uma bateria, executada ao vivo por Ricardo Garcia. Há nossa tentativa de dizer, nós, os da plateia, estamos de frente para ela, estamos ao lado dela,

estamos hipnotizados por aquela disjunção corpo-e-voz elaborada matematicamente.

Há uma atriz e há um corpo e voz de uma atriz negra brasileira, uma atriz contemporânea, virtuose a ponto de disciplinar o ego e se mostrar sob o véu da linguagem artística que escolheu como modo de estar no mundo e por qual foi indubitavelmente escolhida. E há as lacunas, pois são tantas as perguntas que não se deixam responder porque não há tempo para isso. As perguntas são mais produtivas que as respostas; as conversas mais íntimas e mais profundas são cheias de lacunas. Ela sabe, você sabe, nós sabemos. Sabemos?

Há um teatro impossível dentro do possível, uma ação artística que se realiza ali, pela ausência presença, pelo silêncio som, pelo corpo cenário, pela onda sonora instrumento, pela atriz desconcertante plateia desconcertada.

Em menos de uma hora, nos vemos ali, dando voltas com, ou melhor, conversando com Grace Passô, nos percebendo carnes vagando no espaço, vagas carnes amorfas, vozes que chegaram antes de nós.

Com este texto eu queria dizer que.

Nisto o Dj está certo: “a democracia é artificial” — ou algo assim. É o que ele nos diz ao microfone. Isso faz com que eu eleve, imaginariamente, em plena nave do teatro-igreja da Barroquinha, minha garrafinha verde-esmeralda aos céus. São quinhentos e treze deputados, oitenta e um senadores, onze juízes, um presidente e a coisa está do jeito que está. De todo jeito, há quem a defenda. Há quem diga: “não, essa não é a verdadeira, a verdadeira tá em outro lugar”.

Mas agora não importa. Agora entrei nesse espetáculo, paguei o ingresso e me sinto muito à vontade. Aqui tem gente animada ao redor. À minha frente, sete dançarinos traçam evoluções no espaço, abraçados entre si como numa cordinha humana ombro-com-ombro, ritmados à música que os dois Dj’s tocam ao fundo da sala. De tão simples, a coreografia convida ao baile. Para tanto, você só precisa atender ao chamado de um deles ou ir por conta própria enlaçar a cintura alheia. Pra mim isso é fácil, tranquilo e até gostoso. Eu prezo a imagem arquetípica da marchinha, por exemplo; aqueles dois dedinhos pra cima e os pés arrastando no chão. É uma dança rudimentar que não te pede nada em troca. Não te pede que decifre os mistérios do quadril, não te pede que tire os pés do chão, não te pede que faça um pra lá dois pra cá, que gire a cabeça, solte os braços ou relaxe os ombros.

Sempre que surge alguma situação de dança lembro dos tempos de escola, quando eu era um misto de nerd, metaleiro e personagem carismático e ficava pelos cantos, principalmente nos bancos de concreto debaixo das amendoeiras. Eu gostava de observar as pessoas e criticá-las, tomando notas ressentidas num caderno todo rabiscado. Mas o pior, o pior de tudo era o momento das danças, geralmente em aniversários, nas quais as pessoas eram felizes e dançavam Macarena todas juntas, iam até o chão com o Molejo ou se acabavam ao som de Michael Jackson, Britney Spears e Backstreet Boys. Quanto a mim, ficava num canto escuro junto a algum outro garoto tímido falando asneiras ou nada, e ainda não havia porre — ó grande miséria —, ainda não havia os goles redentores da cana. Então chegava a parte do dançar juntinho. O terror dos terrores é que nesse momento você não podia ficar apenas ali atrás, resguardado do pacto tribal entre adolescentes. Não, você sentia que tinha de fazer alguma coisa; você tinha que tomar uma atitude, até porque seu amor platônico estava ali e todos sabiam uns dos outros e todos queriam aquilo e todos esperavam que as pessoas expressassem seus desejos umas pelas outras. Afinal, essas eram as regras do jogo — a liberdade total — e você que fosse otário o suficiente pra revelar sua artificialidade. Todos esperavam que você saísse perguntando se alguma alma gostaria de dançar, pra depois ver onde botar uma e outra mão — quantas mãos — harmonizar a porra dos pés, escutar a música e tudo o mais. O mais louco é que no final dessa odisséia afetiva ainda tinha que ver se rolava o famoso beijo, essa coisa que eu nunca tinha experimentado até os dezesseis e que pra mim era um absurdo insuportável, já que eu achava que por causa disso meu pau ia cair, meus dentes ficariam podres e as espinhas tomariam conta de todo o meu corpo.

Que grande idiota a gente é quando come o reggae da sociedade. Depois que a gente não come mais esse reggae já está velho e se preocupa com contas e médicos, pouco importando se existe ou não existe reggae, e comê-lo ou não comê-lo já não é uma questão; agora é a morte e a morte e alguns traguinhos aqui e ali. Às vezes alguma coisa ilícita pra dormir ou rir melhor.

Enquanto isso, na Barroquinha, a dança fluía muito-bem-obrigado e a gente olhava uns nos olhos dos outros como se fôssemos anjinhos hipsters compartilhando do mesmo paraíso, onde tudo pode porque nada de sério ou de extravagante nos é solicitado. Mas, como tudo na vida, essa coisa maravilhosa que é ficar dançandinho sem pretensão nenhuma acaba. Zé fini. Aí os dançarinos começam a girar feito peões possuídos e vão caindo no chão feito amêndoas no fim do verão. Isso é legal de ver.

Porque parece que o corpo, nosso cavalo, quer ir junto, e, com a luz caindo e voltando e caindo de novo, os corpos deixam espectros no espaço como as fotos de Mário Cravo, não sei se o pai, o neto, o júnior ou o espírito santo, e levantam e caem novamente e os Dj’s fazem sons de

Por Daniel Guerra

DESPACITO

Sobre Looping - Bahia Overdub, de Felipe Assis, Leonardo França e Rita Aquino

Foto de Patrícia Almeida

carro acelerando cada vez mais alto e os dançarinos se abraçam de novo, mas agora sem a gente e correm de um lado pro outro e vruumm até quase derrubar alguém do público, mas não, eles se sustentam com a força do abdome a dois centímetros do nosso nariz, até porque eles são dançarinos profissionais e só caem se têm de cair, só se batem se têm de se bater e só cansam se têm de se cansar e vrrrrruuuummm isso vai num crescendo tão forte que dá vontade de entrar e entrar e entrar e vrrrrruuuuuuuuuummmmmmm!

Devo confessar. Ando gostando daquelas obras que me deixam devanear sozinho, entregue apenas aos limites do meu próprio imaginário umbilical. Ando tendo esse desejo, é claro, a despeito das artes cênicas, meu campo de formação, onde permanece a utopia de abdução do público por uma força violenta qualquer, seja ela trágica, cômica, tragicômica, erótica, política, terrorista,  antiterrorista, grotesca ou sentimental. Gosto, sim, de ver meu tapete de sapiens devidamente retirado em prol da beleza no caos, mas a realidade inescapável é que na maior parte do tempo tenho preferido coisas que me deixem mais sossegado, que se prestam a um tempo mais dilatado, mais distanciado, menos assediado por sensações. Ou então algo que me faça babar. Algo como um seriado idiota ou algum desenho animado psicodélico. Isso é o que eu chamo de “botar o espírito pra passear” — como fazem com os cachorros de apartamento.

Looping me deixou muito à vontade nesse sentido. Quando os dançarinos se põem de quatro lá na frente e se viram de costas para nós como se entrassem numa dimensão paralela, podemos finalmente descansar nas paredes, sentar no chão e entregar-nos aos prazeres da elucubração. É quando eles vêm vindo, lentamente, sempre de quatro e de costas, carregando no lombo as caixas de som feitas especialmente para a situação, as quais um jornalista cultural poderia facilmente classificar como “o grande trunfo desta belíssima produção”. Muitas imagens são liberadas a partir daí. As que mais me tocam, no fundo dos meus pensamentos mais alheios, são os ecos que surgem das caixas de som. São lamentos sertanejos, coros de igreja, pregações, marchinhas de carnaval, vozes de multidão.

Dia desses fui ler Walter Benjamin. Ele defende que a ideia das “massas” — tal como as entendemos hoje — é bastante jovem: contemporânea à Revolução Industrial. Disso deduzo que a criação de uma multidão sirva, dependendo do contexto, a usos totalmente distintos. Existe a multidão dos movimentos trabalhistas, a multidão dos shows de sertanejo, a multidão dos fascistas, a multidão dos consumidores de presentes de Natal, a multidão das festas de largo, a multidão dos evangélicos. Não existe apenas um valor social positivo ou revolucionário para a multidão em si. Deve ter gente que ama a multidão, deve ter gente que daria tudo para estar fora dela. Lembro-me da mãe de Tarkovsky n’O Espelho, burocrata soviética. Da proletária norteamericana cega em Dançando no Escuro. Lembro-me de ter ficado impressionado ao ler um relato antropológico no qual se expunham os métodos violentos utilizados por um determinado povo indígena no controle ou extermínio de idosos, doentes, bebês deficientes e adolescentes rebeldes. Por essa eu não esperava. “Logo os índios?”. Tal comoção que senti, já sei, é a herança de uma geração que comemorava o dia do índio com penachos de cartolina na cabeça e chamava floresta de natureza.

Alguma coisa me acorda. Retorno pro espetáculo. A música está alta. Umas quarenta pessoas dançam alegremente. Decido que já dancei tudo que tinha pra dançar na primeira parte, e devaneei tudo que tinha pra devanear na segunda. Na terceira, vou tomar um pouco de ar. Compro uma cerveja. De fora, a igreja fica muito mais bonita. Me lembra algum filme de Fellini, ou a capa de algum disco de Caetano. Mal dou o segundo trago, aparece um dos dançarinos, todo suado. Pede uma cerveja. Brindamos. Não resisto e lhe pergunto: “Não vai trabalhar, não?”. Enxugando a testa, ele me diz: “Porra, tô cansado”.     

Por Saulo Moreira

É POIS UM APAIXONADO QUE FALA E DIZ:

Sobre o espetáculo “L-O-V-E”, de Paula Diogo (Má-Criação – Portugal)

Algumas perguntas:

 

O amor fala de quê? O amor é capaz de memória? O amor é raro? O amor pode esperar? O amor é integro? Durar é melhor que arder? Há amores que acabam antes do fim? Faz sentido amar menos para amar mais tempo? Quando dói, é preciso sofrer ou abandonar? O que a linguagem esconde, o corpo diz? Pode dizer-se “eu amo-te” muitas vezes sem que todas as outras sejam uma repetição tênue da primeira? “Eu também” quer dizer o mesmo que “eu amo-te”? O amor é uma repetição? O amor é um ato de resistência? Quando se ama, é melhor?

Essas perguntas não são minhas. São perguntas de um sujeito-enamorado. São perguntas de um amante, o apaixonado. São perguntas-clichê? Essas perguntas são ou talvez já tenham sido minhas-suas. Quem nunca oscilou? 

 

Essas perguntas são da atriz portuguesa Paula Diogo, ditas no início do mês de agosto, no Teatro do ICBA – Goethe Institut.

 

Paula é a performer do espetáculo-solo L-O-V-E. 

 

L-O-V-E, ao lado de Cidades Invisíveis, do Grupo de Teatro português Má-criação, passou, no mês de agosto, por Salvador, Argentina e Chile.

 

Quero, a partir do nome do espetáculo, fazer um investimento de possíveis ou impossíveis leituras e traçar, como alguém que percorre um mapa, possíveis pistas. Talvez esse papo soe, no início de nosso encontro, meio estranho. O ser amado encontra o amado e, por causa da timidez, começa a falar sobre significante e significado ao invés de, infalível, comentar sobre os astros.

 

Talvez eu parta de uma hipótese aqui: os significados do espetáculo L-O-V-E só podem acontecer ao espectador-amante porque antes aconteceu uma rasura estética no significante.

 

Encontro no significante love – cheio de hifens – uma pista para dizer da performance-encenação de Paula.

 

Quando o significante love é hifenizado, corrompe-se ainda mais o significado abusado e cansado do amor?

 

Quais significados os hifens adicionados entre as letras sugerem?

 

Os hifens marcam os vazios no significado do amor? Se os hifens adicionados ao nome “love” marcam os vazios, há aí uma tentativa de dizer que o amor poderia estar cheio? Esses hifens, ao marcar os vazios do amor, o preenchem? O amor não estaria já cheio de vazio? O amor não está de saco cheio de tanto vazio-cheio?
 

Dou um google para ver o significado de hífen. Hífen: sinal em forma de um pequeno traço horizontal (-) para unir os elementos de palavras compostas, separar sílabas em final de linha e marcar ligações enclíticas e mesoclíticas (p.ex., em guarda-chuva, cora- / ção, abandaram-lhe, amá-lo-ei ); risca de união, traço de união, tirete.

 

Ou seja, o hífen serve para separar ou unir, preencher ou esvaziar, apontar excessos ou vazios.

Ainda pairo no nome escolhido: L-O-V-E. Não é amor. Não é amour. Não é liefde. Não é Каханне. Não é 사랑. Não é láska. Não é cinta. Não é  amore. É L-O-V-E.

Por que L-O-V-E e não amor? L-O-V-E e amor são diferentes? Amor não é pop? Todos entendem I love you? Todos entenderiam – eu amo você? O que mudaria em L-O-V-E se simplemente fosse love (assim sem hífem sem nada) ou se fosse amor ou se fosse A-M-O-R.

O amor de L-O-V-E não quer revelar alguma coisa escondida. O procedimento do espetáculo é o próprio espetáculo e, muito menos que revelar, há uma vontade em expor os volumes de um corpo que ama, goza, chora e faz perguntas.

Tem um segredo aí: deixa eu contar o início do espetáculo.

 

À medida que o público entra, Paula nos faz aquelas perguntas do início do texto e outras tantas. Está pendurado, no fundo do palco, um coração grande de papel. Paula atira bolas e setas ao coração, mas é como se ela fosse, ao mesmo tempo, o coração a ser flechado e a flecha que será lançada. Ela é um cupido bobo, atrapalhado e impaciente. O segredo do significante L-O-V-E talvez esteja aí.

 

Enquanto o cupido se lança e é lançado ao coração pendurado, escuta-se a canção L-O-V-E de Nat King Cole:

 

L is for the way you look at me
O is for the only one I see
V is very, very extraordinary
E is even more than anyone that you adore and

 

Logo em seguida, Cole canta algo como – leve meu coração, mas, por favor, não o quebre / o amor foi feito para mim e para você.

 

Paula não atende o pedido de Cole e, de olhos vendados, quebra o coração suspenso. A imagem que se tem é um pastiche da brincadeira quebra-poste, mas ao invés de sair doces do coração dilacerado, saem palavras, muitas palavras. As mesmas palavras colecionadas por Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso.

Aqui é importante fazer um parêntesis – L-O-V-E apresenta uma dramaturgia muito simples. Caio numa armadilha, porque é difícil dizer o que é simples. Uma tentativa: não há um enredo mirabolante, não se trata de uma dramaturgia ou uma encenação hiperbólica. Não há a construção de uma personagem ou história. Não há uma vontade em representar, mas produzir. Produzir no espectador-leitor-amante intensidades, relevos, forças, velocidades. O espetáculo acontece na superfície. O amor de L-O-V-E é táctil. Táctil igual à superfície do livro Fragmentos de um discurso amoroso – livro-motivo para Paula acontecer em L-O-V-E. Barthes faz uma escritura da superfície. Lembro de Deleuze usando o verso de Paul Valéry – o mais profundo é a pele. 
 

O amor de L-O-V-E não quer revelar alguma coisa escondida. O procedimento do espetáculo é o próprio espetáculo e, muito menos que revelar, há uma vontade em expor os volumes de um corpo que ama, goza, chora e faz perguntas. Paula é a performer e é o eu-apaixonado. Apaixonada, apaixonando-se e desistindo, volto a repetir, ela acontece. O acontecimento performativo e cênico, nesse caso, não anula marcas. Aliás, as marcas já se apresentam no nome do espetáculo, lembra? Aqueles hifens do significante são traços que se atualizam na própria cena.

É uma dramaturgia do simples. Faço um resumo:

- Paula faz perguntas para o público que chega.

- Paula tenta acertar o coração suspenso no fundo do palco.

- Paula brinca de quebra-poste e destrói o coração de papel. Do coração saem palavras, muitas palavras. (Até aqui você já sabia)

- Paula constrói um mapa das palavras derramadas ao som de Pasodoble. Paula não é o toureiro nem o touro. Ela apenas distribui as palavras no chão, em ordem alfabética. A música fica como um rastro. Paula sua ao colocar as palavras.

- 80 palavras são postas em ordem alfabética no chão. Algumas palavras são: Carta / Compreender / Coração / Corpo / Ciúme / Esfolado / Espera / Festa / Mexerico / Monstruoso / Mutismo / Noite / Por quê? / Sozinho.

- Ela define algumas palavras.

- Paula cola algumas palavras na parede e começa a construir frases.

- Uma frase construída foi: CORAÇÃO-SOZINHO-ESPERA-MOSNTRUOSO-MUTISMO.    

- Efeito de fumaça cênica: uma nuvem se forma em nossa frente e se dispersa.

- Não lembro exatamente se antes ou depois as palavras que ficaram no chão voam.  Dois ventiladores participam do cenário.

- Paula tira o resto do coração estilhaçado.

-    Paula fala-responde as perguntas do início da cena e diz enunciados como “quero circunscrever a linguagem”, “pede-se para pele que responda” e também “somos os nossos próprios demônios”. Esses enunciados circunscrevem as palavras expostas.

 

Algumas leituras são construídas a partir desse roteiro cênico. Eu o apresentei em tópicos para tentar mostrar isso que chamei de uma dramaturgia do simples. Essa simplicidade não neutraliza o que eu poderia chamar de sofisticação. Seria essa uma metáfora para o amor: a simplicidade é a sofisticação do amor. Simples e sofisticação são hifenizados. O hífen é uma ponte?

 

Em L-O-V-E, há uma atenção para a forma da encenação sem cair na armadilha de se pensar que o estético é sempre estético. A forma geométrica (as 80 palavras são distribuídas em uma tabela de 8 colunas e 10 linhas) da encenação é conteúdo (a tabela aos poucos se transforma em um  labirinto de palavras). A encenação é aberta. L-O-V-E poderia ser feito em uma praça pública, por exemplo, ou suas partes serem reeditadas (reorganizadas em outra ordem) ou ainda, o espetáculo poderia ser apresentado em partes isoladas – só o momento de colocar as palavras no chão já traz uma politização do discurso amoroso.

 

A politização do discurso amoroso se perfaz na própria  linguagem amorosa. O amor, tão gasto enquanto linguagem, pode ser potência e gerar paisagens como a nuvem feita de gelo seco que se esvai diante de nossos olhos para dar lugar a outros modos de ver/estar no mundo.

 

Barthes escolhe fragmentos do discurso amoroso para colocar o amor em zonas periféricas. Paula escolhe Barthes para escrever L-O-V-E como um suplemento ao texto escrito do teórico. Barthes monta um amante que não é imposto nem como modelo nem como código. O eu-apaixonado, para o teórico, faz aberturas na linguagem usando a própria linguagem. O eu apaixonado é desvio e erra. Paula se traduz nessa possibilidade de um amante errante que oscila.

 

Quem nunca oscilou?

O LIVRO EM PESSOA

A partir da  Biblioteca de Dança de Neto Machado .

Por Rafael Galeffi e Igor de Albuquerque

Neste mês de agosto lançamos a Barril Impressa, uma edição comemorativa que reúne os textos mais ferozes já publicados por aqui. A beleza da publicação deve-se a Laís Machado e a Amine Barbuda, essas mulheres poderosas. Quem foi à festa no pátio do Goethe Institut pôde pegar gratuitamente seu exemplar. O lançamento aconteceu dentro da programação do IC 11 – Encontro de Artes, que também foi devidamente coberto por nós no blog Barril Festiva.

 

Mas não paramos por aqui. Continuamos trabalhando nas edições mensais. Este é o último mês do projeto de Dinamização Crítica, patrocinado pelo Fundo de Cultura, e fechamos com a certeza de que agregamos muita coisa boa ao decorrer da trajetória de seis meses. Foram muitos colaboradores que conseguimos contemplar reunir, novas parcerias, e um futuro instigante pela frente.

 

Nas CRÍTICAS desta edição temos duas peças de fora da cidade. Alex Simões e o colaborador Saulo Moreira assistiram a duas produções que fizeram curta temporada em Salvador. Alex foi ver o aclamado

espetáculo de Grace Passô, “Vaga Carne”, e Saulo escolheu “L-O-V-E”, da portuguesa Paula Diogo, baseado no livro “Fragmentos de um discurso amoroso”, de Roland Barthes, que inspira também o texto do crítico.

A diretora teatral, iluminadora e desenvolvedora de games Ana Antar foi convidada a fazer o REVERBERA e voltou do espetáculo “A voz do campeão” com uma reflexão crítica audiovisual à altura do embate entre a cultura do futebol e as discussões de gênero.

 

No ENSAIO, temos o texto de um colaborador paulista, Rafael Limongelli. Aqui Rafael usa os conceitos e articulações filosóficas deleuzianas para debruçar-se sobre uma das performances de Carolina Bianchi, e partir dela abrir novos horizontes sobre o que pode a cena.

 

Enquanto isso, Laís Machado vai virtualmente até o Rio Grande do Sul para ler a revista AGORA sob a ótica das discussões decoloniais. Aqui ela pesa a pertinência e as potências de um olhar direcionado do sul ao resto do Brasil e lança, como provocação, um olhar do Nordeste ao Sul.

A tão famosa TRETA aparece nessa edição pela pena de Bárbara Pessoa, que foi ver a montagem da peça “A Irmã”, texto de Marcos Barbosa, e teceu uma série de reflexões pontiagudas sobre como entra o texto na cena, e como a cena trata o texto.

 

Daniel Guerra foi ver “Looping - Bahia Overdub” e nos trouxe uma SELFIE, na qual, junto ao movimento espiralado do espetáculo, desce em direção aos 

porões da adolescência e volta discutindo a pertinência do conceito de multidão na arte contemporânea.

 

Por fim, temos um RIZOMA bastante especial. Igor de Albuquerque se uniu ao compositor e maestro Rafael Galeffi e juntos prepararam um podcast poético sobre a “Biblioteca de Dança”, produzida pelo Dimenti e apresentada durante o IC - Encontro de Artes. Nas frequências desse Rizoma percebem-se ecos de J. L. Borges, Naná Vasconcelos, Orson Welles e “Contos da Meia-Noite”.

 

Com um panorama desses não há quem não fique curioso de dar uma adentrada neste nosso pergaminho virtual. Pois então sejam bem-vindos a mais um universo Barril!

Por Laís Machado

A Revista AGORA / Crítica Teatral nasce em 2015, resultado de uma oficina de Crítica Teatral realizada pelo Goethe Institut de Porto Alegre com participação de Jürgen Berger. Seis críticos de diversas áreas do país que compunham essa oficina seguiram formando a equipe original do site. Hoje, em 2017, após uma reconfiguração, Michele Rolim e Renato Mendonça assumem a revista e abrem suas postagens para colaboradores. Dentre eles, Antropositivo (SP), Questão de Crítica (RJ) e O Grito (PE).

Iniciativas como essa foram realizadas aqui na cidade de Salvador pelo Festival Latino Americano de Teatro (FILTE) e Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC-BA). Entretanto, os grupos que seguiram fazendo críticas na cidade após este período aos poucos foram se desfazendo. Ao contrário da AGORA, seguiram como iniciativas autônomas sem apoios institucionais.

O site da Revista AGORA é simples e tem uma navegação bastante agradável. É fácil localizar as informações que se deseja, bem como encontrar formas de ter uma visão panorâmica do conteúdo já publicado, que é dividido em duas sessões: “reflexões sobre espetáculos apresentados no Brasil e no mundo (seção Crítica), textos de teoria, entrevistas e reportagens (seção Cena Teatral) ”. A revista se afina com a Barril na crença de que “uma relação construtiva e horizontal entre a crítica e a cena é fundamental para o fortalecimento da produção teatral de qualquer país”.

Talvez por ser majoritariamente formada por jornalistas (entre AGORA e colaboradores) seus textos são bastante descritivos e sempre encontram espaços para algumas aspas, principalmente em colocações políticas “comprometedoras”.

Um texto que me chamou bastante atenção foi o texto publicado em junho desse ano, intitulado O Teatro no Brasil está politicamente desperto. Adaptando o ditado popular que nos lembra que nunca é tempo demais: Brasil é território demais.
 

No texto, a crítica alemã Dorothea Marcus comenta duas montagens de Porto Alegre financiadas pelo Goethe e dirigidas por Alexandre Dill e Camilo de Lélis, ambas com textos do dramaturgo alemão Wolfram Lotz. É um texto que se permite tensionar as proposições do dramaturgo e as abordagens dos diretores, apontando escolhas excessivamente ilustrativas, por parte da direção, que enfraquecem o impacto político proposto por Lotz através de sutilezas.

Entretanto, é curioso fazer uma análise tão precisa sobre os efeitos da colonização colocados em discussão nos textos e montagens tomando um território tão grande e diverso como o Brasil por duas montagens do mesmo lugar. Que poderia ser caracterizada como uma abordagem

colonial. Marcus cita outras duas obras presentes no festival do Palco Giratório que alimentaria a sua tese do teatro políticamente desperto no país:  O quadro de todos juntos, do grupo Pigmalião Escultura que Mexe, de Belo Horizonte e Ruínas de anjos, do grupo baiano A Outra Companhia de Teatro. Mas ao citá-los e não desenvolvê-los, ao mesmo tempo que torna clara a sua postura em ser abrangente, endossa uma postura de apagamento de uma diferença possível.

Mas o Brasil, enquanto diversidade territorial, não está mal representado apenas nesse texto. Não que esta seja uma afirmação propriamente surpreendente, mas as iniciativas teatrais e politicamente engajadas fora do eixo não são levadas em consideração, mesmo para uma revista que nasce e se mantém num contexto onde o trânsito é possível (vide suas viagens para inúmeros festivais, inclusive fora do país).

Num país como o nosso, que sabota estruturalmente trocas, intercâmbios e mobilidade dentro do próprio território, seria a dificuldade de receber informações acerca da produção em outras partes do país a responsável pela ausência (proporcional) da produção fora do eixo na AGORA?

Existe no site uma tag intitulada “cena fora do eixo” que contém apenas um texto intitulado Práticas políticas da cena contemporânea – A cena fora do eixo, no qual analisam um seminário de mesmo nome, onde se fizeram presentes grupos do Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Sul. Neste encontro discutiu-se se ainda seria possível “viver de teatro” fora do eixo com o desmantelamento do Minc e o retrocesso nas políticas culturais, repetindo um comportamento que venho notando mesmo aqui na cidade: se discutimos a produção fora do eixo, discutimos aspectos estruturais, quase nunca poéticos.

Em uma outra tag, intitulada fiac2016, encontram-se três textos produzidos aqui na soteropólis, durante o Festival Internacional de Artes Cênicas. Mas, mesmo aqui em Salvador, na programação do FIAC 2016, que, nessa edição, fez um recorte sobre engajamento político na obra de arte, não houve uma tentativa de aproximação com a cena local por parte da revista, Renato Mendonça, que escreve nesta tag, escolheu produzir sobre uma produção paulista, uma chilena e uma uruguaia.

Grada Kilomba, em sua vinda à Salvador, como residente do programa Vila-Sul, proposto pelo Goethe, fala no Teatro Vila-Velha sobre três princípios básicos na relação colonial: 1 - O colonizador NÃO SABE sobre o OUTRO. 2 – O colonizador NÃO PRECISA saber sobre o OUTRO. 3 – O colonizador NÃO QUER saber sobre o OUTRO.

Para finalizar, deixo aqui uma pergunta: Pensando nesses princípios discutidos por Kilomba, é possível em tempos de crise descolonizar a produção poética no território Brasileiro? E que papel teria a crítica nesta reconfiguração?

Para quem se interessa pela estrutura do texto dramático clássico, fica evidente, no teatro, quando a encenação partiu de um texto que foi cuidadosamente construído por alguém que arquitetou seu escrito a partir de conceitos como ação dramática, peripécia, reconhecimento, caráter etc. Neste tipo de encenação, na qual o texto é dito tal qual foi grafado, prediz-se que um dos elementos que mais saltará aos olhos será o diálogo entre as personagens.

Sendo eu uma dessas pessoas com tal interesse, chamo atenção aqui para o deleite que pode ser acompanhar, a cada curva, o descortinar dessa paisagem verbal/sonora que parece nos chegar por itinerário semelhante ao da música.

Para Cleise Mendes, “A frase dramática é em si mesma um gesto. Ao lê-la, imaginamos simultaneamente a atitude da personagem que a profere. É o que Brecht nos lembra ao citar o famoso exemplo da Bíblia: ao invés de ‘Arranca teu olho esquerdo que te serve de escândalo’, lemos ‘Se teu olho esquerdo te serve de escândalo, arranca-o!’ Em vez de um período iniciado pela ação, amarrado pela lógica sintática, a frase gestual, proferiu uma condição, um aviso, um efeito de leve hesitação e, bruscamente, a ordem de agir.”[1] Se a escolha é trabalhar com esse tipo de texto e ao mesmo tempo se despreza suas estratégias próprias de relação, corre-se o risco de transformar o espaço cênico em um ringue onde os elementos da obra lutam entre si.

Os criadores do espetáculo Minha Irmã trazem, além do texto dramático como descrito anteriormente, outra escolha dramatúrgica que também irá reclamar especialmente pela atenção do espectador: a mímica corporal dramática ou dramaturgia do corpo, que se baseia nos movimentos ou gestos como principal forma de expressão. Já aí, somamos a convivência de duas escolhas gestuais.

O terceiro componente que chama atenção na obra citada é o tom de voz utilizado pelas duas atrizes para pronunciar suas réplicas do início ao final da peça, em cada fala. Um tom denso, grave, como imaginamos ter sido proferido o texto de Fedra em sua primeira montagem em 1677.

Quando perguntado em suas aulas sobre dramaturgia se “podia colocar” isso ou aquilo no texto, Marcos Barbosa (autor do drama Minha Irmã) respondia: “tudo pode naquilo que fortalece”, apontando para o quesito intuição quando a empreitada diz respeito ao ato de criar. O texto, o corpo, o tom de voz e, com vinte minutos de espetáculo, três já me pareciam ser demais. Isso tornou-se manifesto no instante em que um teatro aconchegante como o SESI – Rio Vermelho pareceu insuficiente; quando cinquenta e três minutos de peça soaram insustentáveis. Nenhuma duração e nenhum espaço seriam capazes de abarcar a exobitância daquela montagem.

Em busca de uma matemática possível, meditei sobre qual elemento poderia ser o resto na operação de subtrair que se impôs. A primeira tentativa consistiu em omitir o texto, restando apenas a mímica, já que, excluindo-o, retirou-se também o tom de voz. Atentei-me então às imagens produzidas a cada cena. Como a performance das atrizes partia de uma presença cênica e de uma expressividade que se mantiveram inalteradas realçando uma solidez primorosa, a experiência foi

Por Bárbara Pessoa

Assim também já é demais também

Sobre o espetáculo “Minha irmã”, direção de Marcos Oliveira 

O texto, o corpo, o tom de voz e, com vinte minutos de espetáculo, três já me pareciam ser demais. Isso tornou-se manifesto no instante em que um teatro aconchegante como o SESI – Rio Vermelho pareceu insuficiente; quando cinquenta e três minutos de peça soaram insustentáveis. Nenhuma duração e nenhum espaço seriam capazes de abarcar a exobitância daquela montagem

interessante, pois os quadros formados pela mímica corporal dramática atendiam à apreciação. Porém, se uma obra como Minha Irmã é escolhida para tecer a composição cênica, o enredo não é algo desprezível nessa montagem e, sem texto, ele desaparece.

Na investida seguinte, fantasiei “o mesmo espetáculo” sem a mímica corporal, restando assim o texto de Marcos e o tom conferido pelas atrizes para pronunciá-lo. Fechei os olhos e a cena em si, os movimentos corporais/cênicos, ficaram por conta de minha imaginação. No entanto, alguns minutos adiante e o desejo de vedar os ouvidos se estabeleceu como urgente.

A essa altura, não se fazia mais necessária a investigação sobre o elemento excedente: o tom de voz impresso pelas atrizes começou a tomar todo o espaço, toda a minha atenção, nada mais existia e, por pouco, o texto e a mímica, que nada tinham com isso, não sucumbiram também.

A recomendação do professor Marcos Barbosa quanto ao que “pode e o que não pode” na criação resulta no indiscutível de que tudo pode e, nesse sentido, sabemos que hoje vemos de tudo. Que bom. Apesar disso, uma reflexão, que a mim mesma soa tacanha, mas que por enquanto encontra apenas uma saída, perturbou meus pensamentos desde que deixei o teatro na noite de Minha Irma: qual situação cênica, em 2017, seria “fortalecida” por esse tom de voz, senão uma situação de comédia na qual o objeto de riso seriam os velhos e conhecidos costumes, neles incluso esse tom de voz mesmo?

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[1] Cleise Mendes em As Estratégias do Drama, 1995.

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