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agosto #15

V.2 n.6 2017

Por Saulo Moreira

É POIS UM APAIXONADO QUE FALA E DIZ:

Sobre o espetáculo “L-O-V-E”, de Paula Diogo (Má-Criação – Portugal)

Algumas perguntas:

 

O amor fala de quê? O amor é capaz de memória? O amor é raro? O amor pode esperar? O amor é integro? Durar é melhor que arder? Há amores que acabam antes do fim? Faz sentido amar menos para amar mais tempo? Quando dói, é preciso sofrer ou abandonar? O que a linguagem esconde, o corpo diz? Pode dizer-se “eu amo-te” muitas vezes sem que todas as outras sejam uma repetição tênue da primeira? “Eu também” quer dizer o mesmo que “eu amo-te”? O amor é uma repetição? O amor é um ato de resistência? Quando se ama, é melhor?

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Essas perguntas não são minhas. São perguntas de um sujeito-enamorado. São perguntas de um amante, o apaixonado. São perguntas-clichê? Essas perguntas são ou talvez já tenham sido minhas-suas. Quem nunca oscilou? 

 

Essas perguntas são da atriz portuguesa Paula Diogo, ditas no início do mês de agosto, no Teatro do ICBA – Goethe Institut.

 

Paula é a performer do espetáculo-solo L-O-V-E. 

 

L-O-V-E, ao lado de Cidades Invisíveis, do Grupo de Teatro português Má-criação, passou, no mês de agosto, por Salvador, Argentina e Chile.

 

Quero, a partir do nome do espetáculo, fazer um investimento de possíveis ou impossíveis leituras e traçar, como alguém que percorre um mapa, possíveis pistas. Talvez esse papo soe, no início de nosso encontro, meio estranho. O ser amado encontra o amado e, por causa da timidez, começa a falar sobre significante e significado ao invés de, infalível, comentar sobre os astros.

 

Talvez eu parta de uma hipótese aqui: os significados do espetáculo L-O-V-E só podem acontecer ao espectador-amante porque antes aconteceu uma rasura estética no significante.

 

Encontro no significante love – cheio de hifens – uma pista para dizer da performance-encenação de Paula.

 

Quando o significante love é hifenizado, corrompe-se ainda mais o significado abusado e cansado do amor?

 

Quais significados os hifens adicionados entre as letras sugerem?

 

Os hifens marcam os vazios no significado do amor? Se os hifens adicionados ao nome “love” marcam os vazios, há aí uma tentativa de dizer que o amor poderia estar cheio? Esses hifens, ao marcar os vazios do amor, o preenchem? O amor não estaria já cheio de vazio? O amor não está de saco cheio de tanto vazio-cheio?
 

Dou um google para ver o significado de hífen. Hífen: sinal em forma de um pequeno traço horizontal (-) para unir os elementos de palavras compostas, separar sílabas em final de linha e marcar ligações enclíticas e mesoclíticas (p.ex., em guarda-chuva, cora- / ção, abandaram-lhe, amá-lo-ei ); risca de união, traço de união, tirete.

 

Ou seja, o hífen serve para separar ou unir, preencher ou esvaziar, apontar excessos ou vazios.

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Ainda pairo no nome escolhido: L-O-V-E. Não é amor. Não é amour. Não é liefde. Não é Каханне. Não é 사랑. Não é láska. Não é cinta. Não é  amore. É L-O-V-E.

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Por que L-O-V-E e não amor? L-O-V-E e amor são diferentes? Amor não é pop? Todos entendem I love you? Todos entenderiam – eu amo você? O que mudaria em L-O-V-E se simplemente fosse love (assim sem hífem sem nada) ou se fosse amor ou se fosse A-M-O-R.

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O amor de L-O-V-E não quer revelar alguma coisa escondida. O procedimento do espetáculo é o próprio espetáculo e, muito menos que revelar, há uma vontade em expor os volumes de um corpo que ama, goza, chora e faz perguntas.

Tem um segredo aí: deixa eu contar o início do espetáculo.

 

À medida que o público entra, Paula nos faz aquelas perguntas do início do texto e outras tantas. Está pendurado, no fundo do palco, um coração grande de papel. Paula atira bolas e setas ao coração, mas é como se ela fosse, ao mesmo tempo, o coração a ser flechado e a flecha que será lançada. Ela é um cupido bobo, atrapalhado e impaciente. O segredo do significante L-O-V-E talvez esteja aí.

 

Enquanto o cupido se lança e é lançado ao coração pendurado, escuta-se a canção L-O-V-E de Nat King Cole:

 

L is for the way you look at me
O is for the only one I see
V is very, very extraordinary
E is even more than anyone that you adore and

 

Logo em seguida, Cole canta algo como – leve meu coração, mas, por favor, não o quebre / o amor foi feito para mim e para você.

 

Paula não atende o pedido de Cole e, de olhos vendados, quebra o coração suspenso. A imagem que se tem é um pastiche da brincadeira quebra-poste, mas ao invés de sair doces do coração dilacerado, saem palavras, muitas palavras. As mesmas palavras colecionadas por Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso.

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Aqui é importante fazer um parêntesis – L-O-V-E apresenta uma dramaturgia muito simples. Caio numa armadilha, porque é difícil dizer o que é simples. Uma tentativa: não há um enredo mirabolante, não se trata de uma dramaturgia ou uma encenação hiperbólica. Não há a construção de uma personagem ou história. Não há uma vontade em representar, mas produzir. Produzir no espectador-leitor-amante intensidades, relevos, forças, velocidades. O espetáculo acontece na superfície. O amor de L-O-V-E é táctil. Táctil igual à superfície do livro Fragmentos de um discurso amoroso – livro-motivo para Paula acontecer em L-O-V-E. Barthes faz uma escritura da superfície. Lembro de Deleuze usando o verso de Paul Valéry – o mais profundo é a pele. 
 

O amor de L-O-V-E não quer revelar alguma coisa escondida. O procedimento do espetáculo é o próprio espetáculo e, muito menos que revelar, há uma vontade em expor os volumes de um corpo que ama, goza, chora e faz perguntas. Paula é a performer e é o eu-apaixonado. Apaixonada, apaixonando-se e desistindo, volto a repetir, ela acontece. O acontecimento performativo e cênico, nesse caso, não anula marcas. Aliás, as marcas já se apresentam no nome do espetáculo, lembra? Aqueles hifens do significante são traços que se atualizam na própria cena.

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É uma dramaturgia do simples. Faço um resumo:

- Paula faz perguntas para o público que chega.

- Paula tenta acertar o coração suspenso no fundo do palco.

- Paula brinca de quebra-poste e destrói o coração de papel. Do coração saem palavras, muitas palavras. (Até aqui você já sabia)

- Paula constrói um mapa das palavras derramadas ao som de Pasodoble. Paula não é o toureiro nem o touro. Ela apenas distribui as palavras no chão, em ordem alfabética. A música fica como um rastro. Paula sua ao colocar as palavras.

- 80 palavras são postas em ordem alfabética no chão. Algumas palavras são: Carta / Compreender / Coração / Corpo / Ciúme / Esfolado / Espera / Festa / Mexerico / Monstruoso / Mutismo / Noite / Por quê? / Sozinho.

- Ela define algumas palavras.

- Paula cola algumas palavras na parede e começa a construir frases.

- Uma frase construída foi: CORAÇÃO-SOZINHO-ESPERA-MOSNTRUOSO-MUTISMO.    

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- Efeito de fumaça cênica: uma nuvem se forma em nossa frente e se dispersa.

- Não lembro exatamente se antes ou depois as palavras que ficaram no chão voam.  Dois ventiladores participam do cenário.

- Paula tira o resto do coração estilhaçado.

-    Paula fala-responde as perguntas do início da cena e diz enunciados como “quero circunscrever a linguagem”, “pede-se para pele que responda” e também “somos os nossos próprios demônios”. Esses enunciados circunscrevem as palavras expostas.

 

Algumas leituras são construídas a partir desse roteiro cênico. Eu o apresentei em tópicos para tentar mostrar isso que chamei de uma dramaturgia do simples. Essa simplicidade não neutraliza o que eu poderia chamar de sofisticação. Seria essa uma metáfora para o amor: a simplicidade é a sofisticação do amor. Simples e sofisticação são hifenizados. O hífen é uma ponte?

 

Em L-O-V-E, há uma atenção para a forma da encenação sem cair na armadilha de se pensar que o estético é sempre estético. A forma geométrica (as 80 palavras são distribuídas em uma tabela de 8 colunas e 10 linhas) da encenação é conteúdo (a tabela aos poucos se transforma em um  labirinto de palavras). A encenação é aberta. L-O-V-E poderia ser feito em uma praça pública, por exemplo, ou suas partes serem reeditadas (reorganizadas em outra ordem) ou ainda, o espetáculo poderia ser apresentado em partes isoladas – só o momento de colocar as palavras no chão já traz uma politização do discurso amoroso.

 

A politização do discurso amoroso se perfaz na própria  linguagem amorosa. O amor, tão gasto enquanto linguagem, pode ser potência e gerar paisagens como a nuvem feita de gelo seco que se esvai diante de nossos olhos para dar lugar a outros modos de ver/estar no mundo.

 

Barthes escolhe fragmentos do discurso amoroso para colocar o amor em zonas periféricas. Paula escolhe Barthes para escrever L-O-V-E como um suplemento ao texto escrito do teórico. Barthes monta um amante que não é imposto nem como modelo nem como código. O eu-apaixonado, para o teórico, faz aberturas na linguagem usando a própria linguagem. O eu apaixonado é desvio e erra. Paula se traduz nessa possibilidade de um amante errante que oscila.

 

Quem nunca oscilou?

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