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setembro #16

V.2 n.7 2017

Por Leonardo Shama

ÉDIPO REI - O REI DOS BOBOS

A divulgação do espetáculo já nos alerta sobre sua principal característica em um subtítulo que diz “espetáculo de palhaço para adultos”. Talvez entre nós, artistas e público frequentador de Teatro , isso seja lido de forma cotidiana, mas o grande público pode ter na memória a imagem do palhaço como uma arte para crianças, talvez  até como uma arte menor. Essa ideia se institui a partir do momento que não conseguimos vislumbrar a possibilidade de palhaços a tratar  de assuntos sérios ou difíceis.

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Édipo Rei – o rei dos Bobos  é um trabalho que marca com incisão o panorama brasiliense de Artes Cênicas ao remontar a clássica tragédia grega, de Sófocles, de título homônimo com subtítulo irônico, neste caso. O projeto é decorrente da pesquisa de doutorado do PPG – Arte, IdA UnB: O espaço da Palhaçaria no gênero Trágico: Aplicações de procedimentos  Cômicos na Obra Édipo Rei e Suas Implicações no trabalho do ator-palhaço , do diretor e protagonista da obra, artista cênico e palhaço Denis Camargo.

 

Essa obra tem uma notável  popularidade, sendo um grande destaque entre as  tragédias gregas dadas as inúmeras montagens e adaptações da obra ou do mito e da teoria psicanalítica de Freud, nomeada por Complexo de Édipo, que aborda as relações entre mães e filhos. Apesar desse ser um tema protuberante da obra original, aqui na versão onde Édipo é o rei dos Bobos, esse ponto é apenas mais um, o que denota a  necessidade de atualizar os clássicos nas remontagens de hoje.

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Denis Camargo  lança um olhar crítico sobre a obra e as  questões políticas próprias do texto colocando em foco a infelicidade  do povo, suas queixas e as tramas para efetivação do poder político. Édipo, como uma promessa de dias melhores, no primeiro momento do espetáculo injeta ânimo, expectativas de melhoras e oportunidades de crescimento num diálogo público com o Coro. Nesta montagem o Coro é composto por figuras bufônicas com deformidades e amputações na caracterização e com aspecto anti-higiênico e caótico no figurino. Assim o retrato da vastidão de carências e precariedades que sofre o povo é pontuado, o que pode salientar os questionamentos sobre legitimidade da população na instância política. 

 

Em seguida, o espetáculo se dedica à apresentação da personagem que reúne todos os traços da aristocracia ,  Creonte, que aparece aqui como um fanfarrão desses  que nos governam, na praia do Brasil, não por que os

Nesta montagem de Édipo Rei o público conversa, explica as cenas, divide as piadas, ri junto e comenta em seguida como num diálogo real que pode ser teatro, o teatro popular e de rua, e nesse caso, um clássico. Um clássico que se constrói diante dos olhos do espectador sem as codificações de um espaço encerrado e elitizado que supõe algum tipo de sofisticação para entrar em contato com um texto como esse

elegemos, mas por que eles tem “história”, trajetória e consequentemente poder. Numa verdadeira festa que cola um hit de axé parodiado no outro , esse Creonte trazido no reino dos Bobos pelo ator e palhaço Hugo Leonardo é o retrato fiel de uma hipocrisia que tentamos equilibrar sobre as nossas cabeças mesmo que a louça quatrocentona de nossos ancestrais portugueses já esteja toda destruída no chão ou se dilacerando durante o uso. Num clima de muita animação , Creonte nos entretém e começa a remontar o passado de Édipo com suas questões sobre a morte do rei Laio, o que cria suspense e se interrompe com mais um hit dissidente parodiado de uma outra década opressiva no Brasil.

 

Então chega Jocasta , aqui uma  rainha desbocada, ébria e com uma vida sexual hiperativa. Sem medo da crítica feminista a atriz Simone Marcelo, desmonta a pompa da personagem e cria uma mulher dada aos prazeres da carne, ao mesmo tempo frustrada em sua trajetória e opressora do marido-filho e do povo.

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O rei dos Bobos não é bobo nem nada e vai desvendando a sua própria história, seu destino trágico e infeliz de ser o líder que era promissor, mas se torna uma bruta frustração . E é aqui que se concentra o ponto mais importante desse espetáculo em diálogo com a atualidade. Estamos falando das incapacidades do Coro  (povo) de reagir aos desmandos e atitudes assustadoras dos políticos.  E isso se acontece agora. Estamos falando das intolerâncias e dos interesses particulares que o Coro (povo) demonstra durante a peça. E isso acontece agora. Estamos falando da inabilidade de se desfazer das urgências e imediatismos para pensar sobre o futuro que se quer viver. E isso acontece agora, na peça e nas nossas vidas. Como no espetáculo, os brasileiros estão num momento de baixa autoestima. Estamos sem forças, razões e sensibilidades para ir às ruas reivindicar nossas necessidades, envergonhados dos nossos governantes, a assistir a gestão pública de um país como quem assiste um melodrama barato no horário nobre da TV. Sermos  feitos de bobos é a função que mais temos desempenhado no último ano como cidadãos brasileiros, em especial nos últimos meses. A frustração que estamos a carregar nesse momento histórico do Brasil é insuperável, talvez – queiramos que não.

Nesta montagem de Édipo Rei o público conversa, explica as cenas, divide as piadas, ri junto e comenta em seguida como num diálogo  real que pode ser teatro, o teatro popular e de rua, e nesse caso, um clássico. Um clássico que se constrói diante dos olhos do espectador sem

as codificações de um espaço encerrado e elitizado que supõe algum tipo de sofisticação para entrar em contato com um texto como esse.

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Como sugestão para um espetáculo tão potente, empático e divertido – e muito político - deixo aqui o registro da fragilidade no acabamento da

direção geral. Sugiro investimento maior na qualidade do equipamento de som, na preparação vocal e musical do elenco. O espetáculo acontecer sob a luz solar pode revelar a potência de encontrar o povo na rua e romper a necessidade de uma iluminação cênica, o que em casos de baixo orçamento, como apontam os da(r)dos lançados contra os artistas pela situação econômica e política, é uma sábia solução. Além disso, estavam muito explícitas as vulnerabilidades no acabamento da direção de atores e de cena, no que tange a movimentação excessiva que desvia a atenção, dispersa o olhar da plateia e desgasta fisicamente o artista, além de não colaborar dramaturgicamente para a trama. Ainda sobre a direção de movimento um ponto preciso é o diálogo com a música. Em diversas cenas a desafinação não é apenas vocal, mas também física. A música aponta uma possibilidade de movimento e apenas parte do elenco se propõe ao investimento harmônico entre os dois elementos. Édipo Rei – o rei dos Bobos é um trabalho especial dada a variedade física e profissional desse elenco tão grande e tão raro nesses tempos recessivos. Além dos três citados anteriormente também salta aos olhos as atuações de Lupe Leal, irreconhecível como Tirésias; Deni Moreira, como o Mensageiro; e a dupla Mino e Tauro, por José de Campos e Luiz Alfredo Vanini.

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Sem mais, fica um desejo de futuros longínquos para esse trabalho que emociona e aproxima o povo do Teatro. E vice-versa.
 

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