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setembro #16

V.2 n.7 2017

Por Daniel Guerra

De todas as formas da crítica, a de bar é a mais ancestral e recorrente entre os mortais. Mas não é porque aparece quase sempre espontaneamente, despretensiosa e de viés que carecerá de uma  rigorosa metodologia própria. Se quisermos confiar em Platão, os gregos da época de Sócrates já a possuíam em alta conta. N’O Banquete, por exemplo, o que é que vemos? Alguns amigos em volta de uma mesa farta, proferindo, embriagados, longos discursos sobre o Amor. Temos ali uma estrutura clara. Primeiro elegia-se o tema, e em segundo, a ordem das falas. Essa última, apesar de importantíssima, resolvia-se facilmente observando-se a idade de cada convidado. Se quisessem complicar um pouco mais, ia-se pelas profissões que cada um exercia na sociedade e sua suposta relação com o assunto — do vagabundo ao doutor, ou vice-versa.

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As possibilidades de começo são infinitas, bastando que todos concordem. Esse ajuste tem a ver, também, com a quantidade de álcool que se decide tomar. N’O Banquete a questão é complexa. Mas como os convivas são artistas, médicos e filósofos, todos muito preocupados com a harmonia do Cosmos e da sociedade, eles resolvem a demanda de maneira exemplar: “Concordaram todos em que, nesse banquete, não fosse ninguém obrigado a beber vinho até cair, mas que a cada um se deixasse a liberdade de tomar o quanto quisesse”.

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Se a democracia é experimentação, seu laboratório nativo é a mesa de bar.

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Mas foi por esses dias me vi às voltas com uma enorme querela. Porque se o tempo, nos sistemas estáveis da física clássica, subsiste apenas de fora, como o olho neutro de um Deus blasé, por outro lado, em sistemas complexos, instáveis e dinâmicos — como são as mesas de bar — ele influi em forma de turbilhões e bifurcações, assim como um Zé Pelintra a debochar dos assuntos humanos, pairando alegremente acima ou abaixo das nossas cabeças e descendo à fala ou ao gesto, alterando o andamento da prosódia do bebum em favor daquelas paixões que Baruch Spinoza garantiu constituir a Lei Natural de tudo que é vivo e independente dos ditames da Razão.

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O tempo numa mesa de bar é um tempo vivo. Sua lei é a do caos, tem anima própria. Ele vem incorporado, nesse sistema complexo de variantes, na forma dos múltiplos copos de cerveja, alcatrão ou conhaque, que são tomados numa série que só não é infinita porque, para desconcerto dos moralistas de plantão, a embriaguez tem sua própria Razão. Segundo Deleuze:

 

Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito… […] Acho que beber é uma questão de quantidade […] Em outros termos, um alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no último copo. O que isto quer dizer? […] o primeiro copo repete o último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã [e] tende para o momento em que chegará ao último copo. Não é o primeiro, o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte: ele avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode aguentar, sem desabar…

 

Então, se o tempo influi no sistema diretamente, se já não é um deus transcendental e sim um espírito da imanência, na crítica de bar ele materializa-se (literalmente) como um elemento a ser levado em conta, assim como o são as bolas de bilhar ou os automóveis A e B nas provas de matemática. A série de cervejas colocadas numa mesa, portanto, são aquele tempo incorporado que Henri Bergson caracterizou como a duração da matéria em expansão. Mas se as cervejas ingeridas se comportassem como se comportam as outras coisas não-alcoólicas, não se revelariam a nós, espíritos verdadeiramente científicos, como o problema que são. Estaríamos falando, então, de um sistema estável. O fato é que a ingestão do álcool promove a embriaguez; e, como é sabido por todos os bêbados, a razão do tempo sobre a consciência humana é igual à do calor agindo sobre uma substância qualquer. A embriaguez, no cálculo da crítica de bar, é capaz de transformar a previsibilidade do medium cotidiano no imprevisível, irreversível e delicioso inferno do caos.

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Os gregos não gostavam muito do Caos. Mesmo nas suas reuniões alcoólicas, se deixavam Dionísio entrar, era nos braços de Apolo que escolhiam repousar. N’O Banquete, Platão apresenta-nos um sistema perfeitamente clássico, estável e simples (apesar de embriagado), assim como o são Newton e sua maçã.

A RAZÃO DA CRÍTICA PURA DE BAR

Mas como no Brasil de hoje as coisas se dão mais surpreendentemente do que nos tempos epopeicos do povo homérico, a mesa na qual me envolvi naquele dia, no coração do bairro 2 de Julho, me ofereceu o mote para o começo dessa investigação. Esta, apesar de seu caráter meramente introdutório, poderá provocar futuros investigadores a novas e promissoras descobertas, tanto no terreno das Artes quanto nos da Sociologia, História, Física, Matemática, Estética, Pedagogia, Filosofia, Química, Astrofísica, Psicologia e Gastronomia Molecular.

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O negócio é que um amigo veio me dizer que eu estava sendo leviano. Ora, todos sabem que essa é a pior acusação da qual um bêbado pode ser vítima, ainda mais às duas da manhã, no calor de uma discussão sobre os mais elevados píncaros da Arte. Tudo isso porque eu disse que o músico contemporâneo X “era muito bom” mas não estava “enraizado no próprio tempo”.

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Essa frase, aparentemente simples, causou uma confusão absurda. De fato, a democracia garante a todos o direito de expressão, mas esquece de dizer que é justamente tal liberdade que instaura a crise elementar. Os bons advogados sabem (e os canalhas principalmente) que, no território do Direito, poucas vezes o que se discute é o caso em si. Na maior parte dos casos, o que leva todos ao delírio são os entendimentos conflitantes que se tem desta ou daquela palavra, deste ou daquele ato, deste ou daquele gesto. Discute-se na verdade a aparência, a ilusão sustentada sobre uma torrente indiscernível de palavras vãs, quando o caso-em-si é deixado de lado. Enquanto isso, o réu, a vítima e o acontecimento original permanecem intocados. Como deveria imaginar Kafka, o cidadão, seja ele inocente ou culpado, será sempre condenado pelos arbitrários trocadilhos da linguagem.

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É essencialmente isso o que diferencia a crítica de bar da crítica profissional. Estamos, ao escrever, solitários e munidos com todas as ferramentas necessárias à consumação do ato. O tempo aqui é infinito e pode ser administrado ao nosso bel-prazer. Só temos de prestar contas com a nossa própria ignorância. Na mesa de bar, não. Lá você tem que resolver as coisas com o tempo no encalço. A cada gole alguém estará pensando a anos-luz do que se passa na sua imaginação, e daqui que você elabore sua opinião, vem o outro e lhe dá uma rasteira sem a necessária consciência de que tal golpe transportou a todos para um assunto tão distante do original quanto a Terra está do extinto planeta Plutão.

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Esse amigo entendeu que eu havia caracterizado o músico X como alguém ultrapassado. Então me acusou, além de leviandade, de querer botar toda a humanidade na régua ditatorial do contemporâneo. Mas esse não era o ponto. Faço, na realidade, uma distinção básica entre contemporâneo e contemporanoide. Se podemos remeter aos clássicos como parâmetros de qualidade é porque de alguma forma tais criadores estavam totalmente fincados no próprio tempo. Se Beethoven pode ser escutado e influenciar artistas ainda hoje é porque, a despeito das formas do tempo que usou em suas partituras, sua presença estava embebida dos fluxos históricos, que, se são incorporados no presente, provêm de um passado ancestral que abre caminho para futuros insondáveis. Isso é muito distinto de alguém que resolve repetir as fórmulas de um período x ou y, sejam elas antigas ou atuais, sem estar com os pés devidamente submersos no riacho heracliteano.

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Agora imaginemos quanto tempo, disposição e sobriedade eu deveria ter conjurado para explicar o modesto parágrafo anterior, nessa live action maluca que é a mesa de bar. Por outro lado, se um crítico pode hoje se julgar profissional, é porque, em algum momento, se sensibilizou com o que acontecia legitimamente na crítica de bar. Sua pureza metodológica e essencial está fincada no coração de cada tempo. A crítica de bar é o fundamento de toda crítica que se faça, e isto não é um privilégio dos críticos alcoólicos. A despeito da possível sobriedade de um indivíduo em particular, é na universalidade cartográfica dos bares do mundo que a enlevação do saber crítico se dá. Por fim, nos caberia perguntar se não são os malucos embriagados a sustentar toda a intelligentsia cultural das nossas cidades. Certamente não seria por aqui que a resposta viria a se concretizar.

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