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outubro #17

V.2 n.8 2017

Por Igor de Albuquerque

É Dona Calíope... sabemos que a situação não anda nada fácil aí em cima. Se é verdade que desde o surgimento da internet os louvores a ti só têm aumentado, tua popularidade inaudita não anula a assombrosa onda de ataques que tens sofrido. Continuas sendo essa mulher sensível, mas o mundo cresce em disparada dentro dos velhos limites. Quando fazemos algo bom, a despeito de todo esforço, apareces com aquela cara de “não fizestes mais que vossa obrigação”. É Dona Calíope... talvez seja mesmo a hora de rever esse temperamento.

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Que nada!

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No dia três do mês passado, Fernando Barcellos escreveu no site Horizonte da Cena uma crítica sobre o espetáculo Dança Doente de Marcelo Evelin com a Demolition Incorporada. Entre descrições de cenas e pensamentos pincelados, o texto gira em torno da positividade e potência da doença.

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Logo no primeiro parágrafo, Barcellos gasta um número generoso de caracteres para nos explicar o que é uma doença e para dizer que a palavra pode ser usada em outros contextos que não o do corpo humano. Como se o leitor nunca tivesse ficado doente, o crítico enumera variações de alguns males e arremata com um exemplo: o Brasil está doente.

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O segundo parágrafo do texto é o ponto alto da discussão. A certa altura o autor questiona se a doença não é necessária para matar algo que precisa ser transformado e dar lugar ao nascimento de outra coisa. Reside aí a potência de transformação da doença. Apesar de muitos de nós termos perdido pessoas próximas para doenças nada poéticas, o argumento é válido e não é muito difícil de entender. Mas Fernando Barcellos parece não pensar assim, pois até o final ele não cessará de voltar a essa ideia através de construções tautológicas, como se esse insight – que o espectador perspicaz já identifica no próprio título do trabalho de Evelin – fosse suficiente para dar conta do fenômeno analisado.

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Não é apenas pela recursividade anódina que a leitura se torna penosa. As descrições são igualmente vazias, como no seguinte trecho: “Os corpos, inicialmente imóveis, parecem querer demarcar seu lugar no espaço-tempo de forma inabalável, como se quisessem desesperadamente vencer a força de uma doença da qual não se pode fugir”. Ora, esse período parece valer para qualquer espetáculo que   

ACHAQUES & QUIZILAS 

Da crítica de Fernando Barcerllos sobre Dança Doente publicada no Horizonte da Cena.

começa com dançarinos parados, não fosse pela adição metáfora da doença já presente no título do espetáculo – perdoem minha repetição. A isso, se segue uma evocação às estéticas do candomblé e do butoh que culmina na expressão em negrito “geografia da doença”, assim solta e desprovida de elaboração, afinal, estamos todos familiarizados com o conceito de geografia da doença. Estamos?

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No uso dos negritos, o autor se transforma naquele irritante professor de ensino médio viciado pelo gesto protocrítico de aspear com os dedos médios e indicadores “todo” “conceito” “ou “generalização” “que” “aparece” “pela” “frente”. Por isso, durante a leitura teremos de nos habituar ao relevo negro todas as vezes que o campo semântico da doença for acionado. A ênfase, quando usada em demasia, assume a forma de um grande ralo que suga a alma das palavras.

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Por fim, vejamos o maior problema – a conclusão do texto. O Brasil está doente. Censura no Queermuseum. MBL. Censura do Jesus trans. Presidente criminoso. Etc. Nas palavras de Basquiat, SAMO. Esses temas não parecem ter muito a ver com o espetáculo de Marcelo Evelin, mas o crítico veste a armadura do paladino contemporâneo que traz gravada no peito o “urgente e necessário”. É o procedimento do reductio ad brasilcontemporaneum. Funciona assim: pegue qualquer fenômeno estético que seja contrário ao discurso oficial, entalhe uma bela tábula rasa e adicione um troglodita do cenário nacional. Agora você já pode assumir o posto de intelectual perspicaz e engajado. Requieascat in pace.

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Não que a crítica de arte não seja lugar para discutir a política do presente, que em nosso caso é inegavelmente retrógrada. Nem que a política não perpasse todos os discursos, pois ela está mesmo em todos os lugares. A cilada é partir de uma manifestação estética perturbadora, de trabalhos que colocam questões complexas cujas respostas mal conseguimos ensaiar, para acabar no verso fácil da crítica pronta. Ademais, quem chega num texto sobre um trabalho de Marcelo Evelin dificilmente concordaria com a censura. Fernando Barcellos, depois de pintar o quadro tétrico dos telejornais, acaba com um “dancemos todos doentes. Transformados”, que é tão certeiro quanto um pugilista com pneumonia.

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Porque acabar um texto é difícil, né Calíope?    

Rinha 23 - Óleo sobre tela de Moisés Crivelaro

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