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novembro #18

V.2 n.9 2017

Por Daniel Guerra

Destaca-se sobre o layout em preto & branco um mar de digressões em itálico. Essas letras tortas costumam salientar palavras, indicar idiomas extranjeros, evidenciar títulos de obras, demarcar outras vozes, pontuar citações e neologismos, mas Cristina Leifer as empunha para destilar sobre nós toda a lavra de sua poesia. Nas suas mãos o recurso gráfico derrete-se como os relógios de Dali. Surgem como curvas d’art nouveau, como o voilá pseudobarroco do nanquim nas franjas de um anjinho. Contemplo a figura de Natchtergaele encimando o conjunto, solitário em fundo preto, a pele amarela, o sorriso tímido, uma bolsa a tiracolo, todo um jeitinho de Krishna, quando leio o título: Matheus Nachtergaele, a sua peça é triste e necessária!

 

Não obstante, toda a tristeza em itálico do mundo seria nada sem a proliferação efusiva das reticências… São elas que arrancam o ronco melódico do metal melancólico… São elas que fazem subir aos píncaros celestes os vales da tristeza… E o melhor… Suplantam a necessidade de sintaxe… Dão tempo à narradora… Abrem vãos para saltos… Sim… Às vezes… Contra as anemias acadêmicas… Contra os meios-tons da linguagem jornalística… Sim, entendo-te, Cristina… É necessário um pouco de poesia… Faz-se necessária uma linguagem subjetiva… Que leve em conta o que vai nos nossos corações… O que vai na nossa alma… As nossas agonias… A identificação com o artista… O amor… A admiração… A beleza da obra… Entendo-te… Tudo isso… Pode nos deixar… Muitas vezes… Sem palavras…

 

De tal forma que fica quase impossível voltar a pôr os pés no chão. O ritmo imposto pelos três pontinhos dissolve o discurso, derrete o sentido, joga-nos em outras galáxias, envolve tudo numa cortina de fumaça, ao mesmo tempo em que cria a aparência de uma… revelação. Distribui vazios onde haveria curvas, pontes, represas, sinais.

 

Num texto anterior[1] sobre o resenhista Henrique Wagner, eu já tinha pontuado algo sobre a crítica subjetivista. Ela tende a criar uma aparência de neutralidade justamente onde não há. Torna-se o correlato estilístico do “lavo minhas mãos”. Afinal, “se eu falo de mim, se me exponho completamente, se meço o outro a partir das minhas próprias definições, por quais parâmetros poderiam me cobrar?”. Em Wagner, como provei naquela ocasião, tal subjetivismo vai num caminho oposto ao de Leifer: ele singra pelas tortuosas sendas do azedume e do ressentimento, enquanto ela desce suavemente o riacho das suas próprias sensações, numa espessa cortina de itálicos, metáforas, reticências, memórias e arroubos transcendentais.

 

Defrontando-nos com a primeira camada de texto, sobrevém uma abertura em primeira pessoa, como se faz nos diários: “chorei e refleti muito sobre o mundo, as pessoas e principalmente sobre a minha vida e as minhas relações pessoais…”. No primeiro parágrafo a autora se fantasia como uma “voz do espectador”, voltando pra casa com suas impressões pessoais e intransferíveis, daquelas que habitualmente escorreriam pelo ralo do chuveiro se não tivessem se transformado em sessenta e nove palavras.

 

Depois ela já nos leva diretamente ao espetáculo, revelando-nos qual o balaço que a atingiu: “ele veio até mim, beijou-me a face e, literalmente, pintou-me com a sua tinta amarela…”. Talvez uma boa explicação para a avalanche de lirismo leifertiana seja a abertura provocada pelo “mistério” do ato de Nachtergaele. O temor a deus, apesar de estranho aos descrentes, é a base insondável de muitas religiões. Talvez o toque de Nachtergaele, assim como o do Cristo nas águas de Canaã, tenha conduzido Cristina a um delirium tremens só comparável ao de Moisés frente à revelação de Deus num arbusto tostado. Nacht, que “em alemão é noite”, conduziu-a por acidente - como é comum entre deuses e psicanalistas - ao contato com a morte do pai; arrojou-a de volta ao dia da fissura, ali onde a morte “caiu nos meus braços literalmente….”. “Sim…”, Laifer vivenciou, graças a Matheus, uma experiência potencialmente religiosa, e devidamente glorificada nesse Cenáculo teatral.

MEDITAÇÕES CENACULARES 

Sobre o texto “Matheus Nachtergaele, a sua peça é triste e necessária!”, de Cristina Leifer, no site Cenáculo Núcleo de Estudos Teatrais

Shawn Dickinson, "The Temptation of Siegbone"

Mas os deuses não são feitos somente de névoa, sonhos e fulgurações espirituais. Lá está escrito: “Matheus expôs a sua vida da forma mais simples que se possa imaginar…”. Como provado por Henri Cristo e seu sósia Jesus, os deuses podem sim vestir sandálias e fazer aparições no Domingo Legal. Então façamos jus à suma simplicidade de Nacht (que “em alemão é noite”, não custa nada lembrar). Comecemos de uma vez a transpor - nós, meros mortais - os véus desta delicada tessitura encantada.

 

Já no terceiro parágrafo tocamos alguns tijolos fundamentais do palácio de cristal. Será que por baixo da fé pressentiremos o odor de alguma ideologia? Pois bem, abramos logo esse santinho imaculado. Vejamos se é de porcelana ou de barro: “Não houve autoflagelo... Ele não se cortou, não impôs nenhuma violência ao próprio corpo... Não usou nenhuma pirotecnia corporal... Nem quis fazer militância gratuita de qualquer ordem... Ele simplesmente compôs uma peça pela via da metáfora…”.

 

Chegamos aqui ao núcleo da cebola cenacular. Tendo em nossas mãos esse manifesto estético sintetizado em cinco singelas frases, ficamos sabendo, entre outras coisas, que no nachtergaelismo ortodoxo o corpo é visto como um sepulcro sagrado. Nesse templo não entrarão os demônios da performance art. Heresiarcas natos, os performers estão continuamente distribuindo espingardas e facas; dormindo entre serpentes famintas; tomando tarjas-pretas em meio à audiências ávidas por escândalos espetaculares; deitando-se em enormes cubos de gelo; enfiando objetos no cu; prendendo ganchos na pele e alçando-se aos céus; pregando as mãos num Fusca; fazendo o carro arrancar. E ai daqueles que pregam palavras revolucionárias! A Grande Metáfora Teatral descerá das alturas, e com sua espada de fogo espantará deste lugar todos os repetidores de sujeiras panfletárias, assim como o fazem todas as noites os velhos solitários com suas raquetes mata-mosquitos. “Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem”.

 

Drogas, nem pensar. “É muito mais fácil tendermos para a pulsão de morte, com o objetivo de termos instantes de prazer, tomando remédios ou drogas ilícitas (…)”. Nem um tequinho para agitar o intelecto, nem uma ganja solta e cheirosa, nem as visões gozosas do ácido, nem sequer um copinho gelado do melhor puro malte; mané vinho, mané gota, mané heroína! Nenhum desses prazeres momentâneos, nunca, jamé, nos fornecerão um centésimo do verdadeiro fulgor da Bela Metáfora, pois “a sua/nossa fantasia em torno desse vínculo materno nos lança em uma guerra, entre a pulsão de morte - que pode nos matar em vida [ou definitivamente] nos levando para a paralisia por meio das drogas e dos delírios... -  e a pulsão de vida, que nos leva ao nosso desejo... À produção do belo... À arte... Ao amor!

 

A única salvação é a produção do belo na arte e no amor. Concluímos a leitura ao menos com essa certeza, ainda que seja difícil entender que tipo de belo, que tipo de arte e que tipo de amor Cristina se esforça em nos revelar. Mas todas essas dúvidas não serão mais que ilusões quando chegarmos à epifania sagrada: “Sim, é uma guerra difícil... Muitas vezes navegamos pela pulsão de vida e morte como um pêndulo... Ora lá ora cá... Muitas vezes a balança pesa mais para um lado ou outro... Assim é a vida... O que importa é trafegar nessa guerra da melhor maneira possível…

 

E por todo o Cenáculo ecoam as palavras finais, a única militância permitida neste recinto: “Precisamos de mais peças tristes! Mais peças tristes para aliviar o peso de uma ditadura da felicidade…”.

 

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[1] A Crítica da Crítica pode ser lida na Edição#10 da Barril: https://www.revistabarril.com/edicao10

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