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agosto #15

V.2 n.6 2017

Esse texto não deveria ser escrito nesta língua e nem em língua nenhuma. Hoje ainda se escrevem textos em línguas, frases conjugadas em significação que possibilitam movimentar pensamentos e corpos; que possibilitam organizações societárias em torno de Estados Nacionais, Leis e Jurisprudência; que possibilitam pesquisas em codificação genética, em armamento químico, em balística; que possibilitam a inculcação no medo de cada um/uma e suas confissões. As palavras e suas coisas sórdidas. E como a língua portuguesa é aquela em que navego com maior fluência e é também a que me permite esburacar com maior força a superfície que ela mesma organiza pela gramática, seguem essas palavras em variação contínua e ritornelos de gozo.

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Escrevo em ressonância às mulheres que irromperam uma performance de Carolina Bianchi, Quiero hacer el amor[2], realizada durante a programação DEGENERADAS, no SESC Santana, em 2017. Tal acontecimento explodiu na minha pele e na pele do mundo um atravessamento ao mesmo tempo sutil e devastador, conectando-me com uma variação contínua e infinda das possibilidades de conjugar sujeitos, verbos e substantivos; ou seja, a existência, a potência e a matéria.

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Um muro. Um paredão. Uma cordilheira. Uma baleia enorme no meio da avenida Luiz Dumont Vilares.

 

Um fila de mulheres, umas ao lado das outras, vestidas de n topografias-sociais (jogadora de futebol, mecânica, atleta, atriz, transeunte...), vestidas de tantos modos que nada lhes afere qualquer significado. Não são uma fila codificável.

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Devagar exercitam a capacidade de se conectar umas com as outras, caminhando sempre com o olhar à frente, reconhecendo-se enquanto ressoantes às outras, experimentando, sem roteiro e dramaturgia prévia, uma sequência de ações coletivas. Cada uma em sua experiência singular se permite conduzir e ser conduzida por outra, sem hierarquia de comando, sem protagonismo individual, sem vanguardas.

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Uma experiência de criação de um comum. O comum não é uma pauta. Não pode ser expresso em manifestos. Não pode virar palavra de ordem. Impensável como hino ou marcha de guerra. O comum é indecifrável pelas malhas do controle, ilegível para os fiscais da norma. O comum não pode integrar uma lista de reivindicações, entre concessões e avanços (como clamam sindicalistas de todo o mundo) a serem negociados.

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“Os manifestos proporcionam o vislumbre de um mundo por vir e também dão existência ao sujeito que deve se materializar para se tornar o agente da mudança. Os manifestos funcionam como os antigos profetas, que pelo poder de suas visões criam seu próprio povo”[3].

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As mulheres que estão aí não estão por uma transformação no porvir, depois da grande luta, depois da revolução, depois da faculdade, depois de casar, depois de pagar as contas, depois de pedir perdão ao pai e ao padre. O que aquelas mulheres desejam não é passível de transcrição e de espera: o tempo é agora e o espaço é o que existe. E isso é uma condição inegociável.

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Deleuze, em Gaguejou..., nos incita a perceber uma afetividade intensiva na linguagem. Um modo, uma operação de colocar a língua, a própria língua e não apenas sua fala, em variação contínua. Permitir que as conjunções entre fonemas e palavras deixem de ser exclusivas na conformação da gramática e fujam para disjunções inclusivas, inesperadas e espevitadas da língua.

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“É o que acontece quando a gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas ela própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem separadas da gagueira que as seleciona e as liga por conta própria. (...) Uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala.” [4]

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Beckett é um dos escritores que Deleuze utiliza como disparador para pensar essa gagueira da língua. Comenta ser possível observar um sistema linguístico como um “estar em equilíbrio”[5] ou superfície homogênea. Nessa homogeneidade é possível mapear todas as conexões possíveis entre os artigos e sujeitos e verbos e suas conjugações. As possibilidades de dizer são todas previsíveis e equilibradas. Escritores como Beckett fazem ruir essa concepção de língua homogênea. Trata a língua maior, homogênea, estável, previsível, Histórica e reconhecível de um modo menor.

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Em outro escrito de Deleuze, Um manifesto do Menos, distinguem-se duas operações opostas: tornar maior e minorar. Tornar maior envolve a seriedade e a estruturação maquínica da doutrina, da cultura, da grande História; envolve também todo tipo de normalização, uma normopatologização dos afetos, dos gostos, das percepções. Assim Deleuze coloca as coisas: “de um pensamento se faz doutrina, de um modo de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História. Pretende-se assim reconhecer e admirar, mas, de fato, se normaliza”[6]. Maiores são, por exemplo, as línguas nacionais e transnacionais; a trama e a urdidura do tecido de algodão; a dramaturgia teatral psicológica, o ballet (clássico e moderno), a dança popular mapeada e catalogada, que comportam em si uma continuidade homogênea e permanente. Ao contrário, porém, operar no menor, minorar, seria colocar em variação contínua essa língua, como uma gagueira, não da voz, e sim da linguagem.

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GEMER A GRAMÁTICA DA EXISTÊNCIA

Por Rafael Limongelli[1]

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“Então, operação por operação, cirurgia contra cirurgia, pode-se conceber o inverso: como minorar, como impor um tratamento menor ou de minoração, para liberar devires contra a História, vidas contra a Cultura, pensamentos contra a doutrina, graças ou desgraças contra o dogma”[7].

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Os corpos se espraiam pelo saguão de entrada do SESC Santana, pela calçada e pela avenida Luiz Dumont Vilares. Ou se espraiavam por toda América Latina, por detrás das geleiras glaciais da Antártida, por entre minhas pernas. Pululavam em múltiplos direcionamentos no espaço, localizando-se pela orientação do desejo ingovernável, pelo erótico de cada uma e de tudo que estava no espaço.

 

Fodiam com o espaço.

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Conjugamos normativamente permissões para agir de acordo com a gramática dominante: sujeitos conjugam verbos sobre objetos, subordinados à gramática. O verbo “sentar” é possível, sintaxicamente, de se conjugar com “bancos, chão, cadeira, poltrona, sofá etc”, bem como o verbo “acariciar” serve a “corpo, cabelo, cachorro, amiga, namorado, amante etc”. Há sempre um sujeito, esclarecido pela razão, que conjuga um verbo normalizado a algum objeto.

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Na orgia disparada por Bianchi, performers despossuídas de suas limitações e sujeições reconectavam os verbos em ações disparatadas, como “acariciar com prazer o teclado do telefone público” e “penetrar com o punho o porta-guarda-chuvas” e “roçar com carinho as escápulas no caule de uma planta” e “friccionar com fúria o totem-informativo contra o chão” e “amassar o rosto com tesão contra a parede de vidro” e “abrir com ternura e sensualidade as pernas da porta de vidro”, etc.

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As performers atravessavam o território esquadrinhado-estriado do espaço de convivência do SESC Santana movidas por forças de alisamento; o que as conduzia não era acessível às codificações que poderiam prever e analisar as ações a partir de significados reconhecíveis. Elas se atiravam de um desejo a outro, de uma conexão a outra sem plano de voo ou roteiro prévio. São forças de expansão das possibilidades de percepção daquele espaço, expansão das possibilidades de percepção do corpo entre o que é permitido-aconselhável e o que é inimaginável, impossível, invisível, impensável e indizível. Tal estado minoritário no movimento das performers pode ser percebido como uma força de alisamento sobre o corpo. Uma capacidade de afetar, perceber, ser afetado e ser percebido. Elas não estão defendendo uma pauta, uma bandeira, uma aula, um conselho sobre “como devemos viver” e sobre “o que você deve fazer”. Não há intencionalidades pedagógicas e vontade de esclarecer quem assiste.

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Elas faíscam.

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Incendeiam quem se permitir queimar.

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Antes do produto cênico (teatro, performance, dança) existe a própria vida daquelas mulheres como criação e invenção de si mesmas. Um erotismo inesgotável da possibilidade de experimentação de si como estratégia ética em um universo em guerra. Uma espécie de afirmação inexorável do real como fato, intransponível e inalienável, que catapulta as experiências delas como mulheres, como pessoas, como gêneros definidos, como binárias, para além das possibilidades de ser.

 

No sexo o que nos move é a força erótica, indomesticável! Quando foi que recolhemos o erotismo apenas ao território ‘sexo’?

 

Deixar vazar o erotismo por aí! Criar variações contínuas de estéticas de existir.

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[1]Rafael Limongelli é técnico em artes cênicas (INDAC/2008), bacharel em ciências sociais (PUC/SP/2013) e mestre em educação (UNIFESP/2017). Publicou o livro Cretino (Ed. Patuá/2013) e contribui para as revistas Alegrar, Texturas e Córrego. Tem pesquisas em dança e performance, como intérprete e criador.

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[2] Direção Geral: Carolina Bianchi. Performers: Debora Rebecchi, Michele Navarro, Marina Matheus, Danielli Mendes, Mariana Montovani, Carolina Splendore, Larissa Ballarotti, Flora Kountouriotis, Joana Ferraz e Mariza Virgolino.

 

[3] NEGRI, Antonio e HARDT, Miachael. Declaração Isto não é um manifesto. São Paulo, N-1 Edições, 2ª Ed., 2016, p. 9.

 

[4] DELEUZE, Gilles. Gaguejou.... In Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 38.

 

[5] DLEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014.  

 

[6] DELEUZE, Gilles. Sobre teatro: um manifesto do menos; o esgotado. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2010, p. 37.

 

[7] Idem.

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