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outubro #17

V.2 n.8 2017

Na era dos smartphones, a conhecida frase de Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, parece ser a legenda cult mais empregada nos vídeos publicados em redes sociais como Instagram e Facebook. A produção audiovisual barata, uma das ambições cobiçadas pelo cineasta da geração mapa, parece de alguma maneira se efetivar nos dias atuais, ainda que se localize mais imediatamente na criação de vídeos e não tanto de cinema em si.

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Não por acaso, uma das atividades que mais cresceu nos últimos anos consiste em criar um canal no YouTube e ganhar dinheiro com a produção de algum conteúdo que interesse a determinado público. Jovens estudantes do ensino básico tem, cada vez mais, recorrido a esta plataforma para tirar suas dúvidas em química, física e matemática, por exemplo. Fato que, na manhã de hoje, levou os professores da escola onde trabalho a questionarem a própria metodologia e debaterem sobre a estrutura escolar como um todo: assuntos amplamente discutidos pelos pensadores da Educação ao longo das últimas décadas.

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O largo acesso aos meios para produzir, sendo o celular certamente o predominante entre eles, faz com que sejam disponibilizados, em diferentes plataformas, um incalculável número de registros e inventos dos mais inusitados ou mesmo jamais imaginados; aqueles que fazem seu público (formado muitas vezes por apenas um indivíduo por vez) ajuizar: “como as pessoas são criativas!”

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Se um cidadão comum posta em determinada plataforma algo que não desperte o ajuizamento citado em parágrafo anterior, fatalmente não será assistido, compartilhado ou comentado – meios que o tornariam, dentro da lógica da rede social, conhecido. É necessário que seja identificada alguma criatividade na produção, seja o conteúdo de humor, de yoga, de educação ou de game. Se a oferta de “câmeras na mão” se tornou grande, o que fará alguma diferença será a tal ideia na cabeça.

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Presumivelmente, para um artista, a condição da criatividade seria sinônimo de convergência, afinal, seu ofício de criar consiste, segundo o filósofo, justamente em ter uma ideia. Este mesmo filósofo pós estruturalista é incisivo em sua fala: “se eu não tenho uma ideia, não me sento pra escrever.”

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O leitor tem todo direito de argumentar que cada um se senta pra

CÂMERA AUTOMÁTICA

Por Bárbara Pessoa

escrever com a motivação que lhe couber e que a decisão definitiva do filósofo não deve servir de regra para ninguém. Entretanto, se concordarmos que o fazer artístico ainda corresponde ao ato de criar, o que restará numa construção, que se quer artística,  na qual se tem uma câmera na mão (ou uma ponta no pé, ou uma máscara no rosto), mas falta uma ideia na cabeça?

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É bem provável que sobrem a câmera na mão, a ponta no pé, a máscara no rosto. É bem comum sobrar a trilha sonora escolhida. É presuntivo que restem elementos que não se encontram porque lhes falta aquilo que lhes daria algo em comum: a ideia. Aquilo que os faria, como em uma assembleia, dialogar sobre o motivo daquela reunião.

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O que soa interessante é que os “leigos em arte” parecem ter mais preocupação com a tal ideia quando vão postar seus vídeos do que muitos artistas que se vê por aí. Um usuário do Youtube, muito provavelmente, não vai filmar um cachorro passando pela rua a não ser que este cachorro traga algo de particular, tampouco irá compartilhar um vídeo no qual performa, se nisto não houver algo inventado por ele ou, ao menos, executado por ele com alguma diferença. Entretanto, tem sido bastante recorrente encontrar produções de multiartistas que parecem crer que basta unir as diferentes habilidades que possuem para que se crie/experimente algo. Exemplo disso são muitos dos vídeos compartilhados na plataforma Vimeo, aquela auto intitulada como “o lar da alta qualidade para fazer, compartilhar e assistir vídeos.” e que, no entanto, serve também para escancarar a fragilidade de produções nas quais se tem tudo, exceto o exercício de algum pensamento.

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Dançar não é ter uma ideia, filmar não é ter uma ideia, cantar não é ter uma ideia, fazer tudo isso ao mesmo tempo não é ter uma ideia. Pode ser, mas não necessariamente. Criar é ter uma ideia.

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Ademais, se um indivíduo produz o que quer que seja sem pretensões estéticas, ele é um indivíduo produzindo alguma coisa sem pretensões estéticas (filmar um cachorro passando na rua ou ele performando do jeito que bem entender). O esvaziamento se torna protagonista numa produção pretensiosamente artística que não partiu de uma ideia. O que fez esse artista “sentar na cadeira pra escrever”?

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