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novembro #18

V.2 n.9 2017

PARA QUE O CÉU SEJA CÉU

Conversa de vagalumes sobre o espetáculo Para que o céu não caia, da Cia. Lia Rodrigues de Danças

Por Por Saulo Moreira e Ana Lígia 

I. Anotações Iniciais

 

Nota 1: Há mais de um ano, uma amiga me apresentou o livro A queda do céu. Há quatro anos, tenho pensado e me exercitado na amizade. Amizade: gesto de estar amigx / gesto político de existir.

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Nota 2: Há muito tempo tenho sido mobilizado pela dissolução do binômio ético | estético. A discussão é antiga e por isso contemporânea. Quero estar em relação de fluxo – estar em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos.

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Nota3: Estar na amizade é estar no fluxo. Só x amigx me ensina a ler em intensidade.

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Nota 4: Ana, há mais de um ano, me apresentou o livro A queda do céu. Aprendo com Ana a ler em intensidade. Ou seja, quero ler as palavras e as coisas sem apontar as faltas. Quero encontrar as velocidades do outro-coisa-vida.

 

II. A queda do céu: para que o céu não caia

 

“A queda do céu, este livro, ao mesmo tempo relato de vida, autoetnografia e manifesto cosmopolítico, convida a uma viagem pela história e pelo pensamento de um xamã yanomami, Davi Kopenawa”. Esse é o enunciado inicial do prólogo de Bruce Albert. A queda do céu é uma escritura de dois amigos: o yanomami Kopenawa e o antropólogo citado acima.

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Há quase um mês, no dia 25 de outubro, convidei Ana para experienciar comigo Para que o céu não caia. Ana topou. Ali mesmo, no Teatro Vila Velha, antes de o espetáculo começar, fiz outro convite para minha amiga – escrever um texto-rizoma para a Barril. Ana topou outra vez[1]. Este rizoma-texto foi feito na troca de áudios pelo whatsapp. Cada áudio é um broto que poderá transforma-se em um bulbo. Exemplos de outros bulbos: a cebola, os lírios e as tulipas.

Antes de apresentar a transcrição dos bulbos, é preciso dizer mais do manifesto cosmopolítico criado pelos dois amigos Davi e Bruce. Embora tenha sido escrito por dois amigos, A queda do céu são as palavras do xamã Yanomami Davi Kopenawa.

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Nota de rodapé 15[2] (trechos): “Davi Kopenawa foi iniciado no xamanismo no início da década de 1980. Realizar uma sessão de xamanismo se diz agir como espírito, agir sob influência do pó de yãkoana. O pó é fabricado a partir da resina tirada da parte interna da casca da árvore Virola elongata”.

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Ou seja, as palavras de Kopenawa são gestos ecológicos movidos por energias ancestrais, cuja organização sacode tanto o pensamento da metafísica ocidental cristã quanto a lógica de um saber racional imanente. Ou seja, estamos numa zona de uma outra metafísica – são profecias de um corpo incorporado. Os espíritos das vespas, os xapiri, falam com e através de Davi. 

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No prefácio do livro, escrito por Viveiros de Castro, lemos o seguinte trecho como alguém que grita: “Temos a obrigação de levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Kopenawa. Passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais cheia de esquecimento”.

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As palavras de Davi nos convoca a ter uma relação atenta e cuidadosa com a natureza mítica das coisas. A profecia de Kopenawa é a profecia de um avatar – ela pousa no coração do hemisfério sul. E nos surpreende não por ser exótica mas pelo fato de poder ter sempre estado oculta quando terá sido o óbvia[3].

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Davi Kopenawa: “Desejo, portanto, falar-lhes do tempo muito remoto em que os ancestrais animais se metamorfosearam e do tempo em que Omama nos criou, quando os brancos ainda estavam muito longe de nós. No primeiro tempo, o dia não acabava nunca. A noite não existia. (...) Foi depois de o céu ter caído, que Omama nos criou tais como somos hoje”.

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Para a mitologia dos Yanomami, aprendemos, há dois conjuntos principais de narrativas: como surgem os espíritos xamânicos (xapiri) e a criação do mundo e da sociedade atuais. 

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Somos resultados da primeira queda do céu e se nós, povo de mercadoria, continuarmos ultrapassando os limites da natureza apenas para satisfazer nossa modo egóico desenfreado de acumular, o céu cairá outra vez.

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Apenas os xamãs Yanomamis sabem chamar os Xapiris para que dancem a fim de conter seres maléficos do mundo e combater as epidemias, além de manter o céu no seu devido lugar, mas com o extermínio das florestas e dos últimos povos indígenas e seus Xamãs, os espíritos fugirão para sempre, abandonando o mundo em um caos e assim chegará a queda do céu.

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Para que o céu não caia, é necessário que ajamos e logo. De qual maneira? Como ética e esteticamente podemos nos conectar, ainda que essa conexão se dê numa baixa voltagem quando comparada a uma macro oligarquia neoliberal, como podemos (nós, artistas) ecoar o pensamento profético de Davi?

 

Essas perguntas são atualizadas na sinopse do espetáculo Para que o céu não caia:  “Como imaginar formas de continuar e agir? Como o que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?”.

Encontramos na vontade da Cia. Lia Rodrigues de Danças, uma tentativa[4] de um corpo performativo. “O corpo performativo é um corpo-contágio, um corpo-encontro, um corpo-desmantelo e seus efeitos. Trata-se de um corpo que não proclama uma expressão além de si mesmo; não metaforiza, nem literaliza, mas sim age e recria-se no ato, recriando assim o outro que o espreita e interpela”[5].

 

III. Áudio-bulbos

 

Áudio-bulbo 1: E aí, vamos começar os diálogos do Kopenawa?

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Áudio-bulbo 2: Aninha, tudo bem? Bom dia! Vamos começar! Ana, tem uma coisa que estava lendo aqui que se cola muito com Para que o céu não caia. É a nota de rodapé 17. Está na página 612. Ó que interessante – a dança de apresentação desses seres imagens (aí tá se referindo às vespas – espíritos – xapiri) reproduz a dos primeiros ancestrais humanos/animais no mito de origem do fogo e constitui o protótipo superlativo da dança dos convidados na abertura das grandes cerimônias intercomunitárias. Esta é realizada em torno da praça central da casa, individualmente no início, depois em grupo. Então isso está muito colado com aquilo que experienciamos. Batendo no chão com os pés, os homens dançam girando sobre si mesmos. As mulheres agitam galhos novos de palmeira enquanto se movem para a frente e para trás. O que me chama atenção é: dançam girando sobre si mesmos.

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Sabemos da importância dos movimentos circulares (da roda) nos terreiros indígenas. Poderíamos linkar aqui com toda prática de corpo que gira nos terreiros de candomblé, mas deixemos isso para outro momento.

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A natureza é circular. Círculo que se parece com uma espiral – nos movimentos de retorno há respingos, fugas, desvios, é o mesmo-diferente.

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Os dançantes de Para que o céu não caia, depois de se melarem de um pó branco, depois de se melarem de um pó preto, depois de nos fazerem girar sobre nós mesmos (nós: espectadores dóceis das salas burocráticas dos teatros eurossentados) no retângulo do espaço, depois de soprarem o pó que vira pó de nuvem, depois de sermos tomados por um cheiro de café (pó de café é distribuído por todo o espaço), depois de rastejarem em gritos apocalípticos (gritos apocalípticos que escutamos toda hora em nossas timelines e nos corredores das ruas da cidade), depois de olharem nos olhos do outro que pode ser eu mesmo, só depois descobrimos que esse depois, por estar na geometria circular do ritual, é um antes. O antes que se dá no depois, talvez nos trinta últimos minutos do espetáculo, é de corpos espiralados muitos próximos um do outro.

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Corpo espiralado que vira corpo-feixe. Não tem mais fora e dentro do círculo. Eu assisto, mas meu olho já está revirando. Uma mulher grávida quase vomitou ao meu lado. O cheiro do café, o calor do suor, são quase trinta minutos de corpos que se espiralam e entram nesse devir faísca. Esses corpos são os corpos dançantes da Cia Lia Rodrigues, mas já não o são mais. São sujeitos lutando para que o céu não caia, lutando para não temer, lutando. Ao mesmo tempo, eles entram em outro devir – devir vespa. Agora eles são as vespas – os xapiris. Eles estão dançando ali na minha frente e eu sem saber rezo e danço para que o filho da moça grávida possa conhecer as florestas e os riachos.

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No áudio-bulbo 3 eu contei que era muito tomado pelo início do espetáculo, mas agora, no momento da escrita, percebo que esse início não é início no sentido de uma origem, mas um corpo que quer dançar e se prepara para uma incorporação (estética-ética).

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Concluo, portanto, que sou tomado por todas as dimensões performativas daquela cena de uma maneira muito parecida (embora diferente) quando vou nas festas da roça de Pai Bené lá em Lauro de Freitas.

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Áudio-bulbo 4: Ana diz muitas coisas postas no áudio-bulbo 2. Antes de começarmos a trocar os áudios ela compartilhou o que havia escrito em seu caderno de anotações:

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Desde o começo, somos levados a nos deslocar em cena junto com os atores, e a tensão prestes a desabar sobre os nossos corpos é a de que desconhecemos profundamente o outro e a sua dança com o universo. As texturas e as roupagens, permeadas por diferentes estágios sensoriais (que vão de um estar no mundo de modo a encarar firmemente o outro até um movimento avassalador de desamparo), reiteram o artifício de algo que se assemelha a uma loucura: a deles? a nossa? loucura de quem?  Sentimos que o menor deslocamento nos parece enorme. A impressão que se tem é a de se estar em um teatro em 4D, com os sentidos atiçados para só então podermos alcançar a alteridade, uma troca de lugares simbólicos, em que assistimos perplexos os passos tão demarcados de uma dança indígena a ativar a cosmologia de uma cultura altamente complexa. O que vemos quando participamos de Para que o céu o não caia talvez seja justamente a avalanche incontrolável de perguntas e de percepções a nos colocar em uma espécie de devir-índio durante as cenas que se desdobram diante de nossos olhos; um devir urgente – isso é algo que se possa dizer sobre o devir? –, necessário e que dure o tempo que for preciso

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Áudio-bulbo 5: ...

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Áudio-bulbo 6: ...

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Áudio-bulbo 7: ...

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Áudio-bulbo 8: ...

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Áudio-bulbo 9: Entro em crise e pergunto se o espetáculo beira ao virtuosismo e se não há uma cooptação do discurso de Kopenawa. Aquilo que trago no início desse texto é uma laboração póstuma dessa minha crise. Houve um momento em que caí na dicotomia caduca estético versus ético (nosso corpo é bombardeado o tempo todo pela moral que divide forma e conteúdo, alma e corpo, estética e ética – é difícil escapar). Pensei: o espetáculo não é meramente estético? Até que ponto ele se lança na zona do performativo? Só agora, na escrita desse texto, percebo que essa dicotomia está rasurada e isso já foi dito antes da exposição dos áudios. Ana trouxe uma fala no último áudio-bulbo muito marcante e decisiva para a reversão de meu entendimento.

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Último áudio-bulbo: O espetáculo não é meramente estético? Eu entendo para onde vai seu questionamento, mas acho que ele é um questionamento muito perigoso, precisa ser muito bem colocado. Eu fico pensando: a natureza dessa pergunta, se nasce pra você, é porque o espetáculo não funciona como uma questão política mesmo. Eu acho que só individualmente mesmo a gente consegue responder. Do meu lado, eu penso – o simples fato de alguém montar um espetáculo a partir da profecia do Kopenawa, mesmo que o espetáculo mostre um virtuosismo, eu penso que já é tão válido, eu penso que já é uma lufada de vento na nossa cara, eu penso que já é uma palavra que andou, já é um sentido que já está sendo alterado. Para que o céu não caia não sei se é suficiente para o céu não cair, mas é um ponto de luz.

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Ana continua. Ela pergunta e responde: O tempo de luz que esse espetáculo projeta é suficiente para que o céu não desabe? Na ferocidade com que a gente destrói o mundo, esses vagalumes são suficientes? Talvez não, mas eles são imprescindíveis.

 

IV. Vagalumes, apesar de tudo

 

O pensamento que Ana aciona é um pensamento bioluminescente e lembra o cheiro e a cor da cúrcuma no chão depois do último sopro que é dado no espetáculo.

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Para que o céu não caia é a sobrevivência dos vagalumes (vespas brilhantes).

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Terminamos, inevitavelmente, ao lado de Didi-Huberman: “a bioluminescência tem por função atrair as presas ou defendê-las contra o predador. A dança viva dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas. E nada mais é do que uma dança do desejo formando comunidade”[6].

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[1] Igual a Queda do Céu, esse texto-rizoma-texto só existe porque existe uma amizade entre mim e Ana. Ana Lígia Leite Aguiar é professor adjunta de Literatura Brasileira na UFBA e mãe do incrível Joaquim. Ana tem agenciado, entre outras coisas, discussões sobre e com as minorias indígenas.

[2] Essa nota se encontra na página 612 na paisagem nomeada Devir-outro do livro A queda do céu.

[3] Impossível, ao ler Kopenawa, não lembrar a canção Índio, de Caetano.

[4] Falamos tentativa porque tentar já é o movimento, já é a coisa, já é o gesto. Nada garante que o céu não cairá.

[5] Citação de Pablo Assunção B. Costa do texto Eleonora e o corpo performativo – poéticas do ato, materialidades do encontro. Esse texto se encontra no livro Ações, da performer Eleonora Fabião.

[6] Trecho do livro Sobrevivência dos Vagalumes do filósofo Didi-Huberman.

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