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agosto #15

V.2 n.6 2017

Nisto o Dj está certo: “a democracia é artificial” — ou algo assim. É o que ele nos diz ao microfone. Isso faz com que eu eleve, imaginariamente, em plena nave do teatro-igreja da Barroquinha, minha garrafinha verde-esmeralda aos céus. São quinhentos e treze deputados, oitenta e um senadores, onze juízes, um presidente e a coisa está do jeito que está. De todo jeito, há quem a defenda. Há quem diga: “não, essa não é a verdadeira, a verdadeira tá em outro lugar”.

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Mas agora não importa. Agora entrei nesse espetáculo, paguei o ingresso e me sinto muito à vontade. Aqui tem gente animada ao redor. À minha frente, sete dançarinos traçam evoluções no espaço, abraçados entre si como numa cordinha humana ombro-com-ombro, ritmados à música que os dois Dj’s tocam ao fundo da sala. De tão simples, a coreografia convida ao baile. Para tanto, você só precisa atender ao chamado de um deles ou ir por conta própria enlaçar a cintura alheia. Pra mim isso é fácil, tranquilo e até gostoso. Eu prezo a imagem arquetípica da marchinha, por exemplo; aqueles dois dedinhos pra cima e os pés arrastando no chão. É uma dança rudimentar que não te pede nada em troca. Não te pede que decifre os mistérios do quadril, não te pede que tire os pés do chão, não te pede que faça um pra lá dois pra cá, que gire a cabeça, solte os braços ou relaxe os ombros.

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Sempre que surge alguma situação de dança lembro dos tempos de escola, quando eu era um misto de nerd, metaleiro e personagem carismático e ficava pelos cantos, principalmente nos bancos de concreto debaixo das amendoeiras. Eu gostava de observar as pessoas e criticá-las, tomando notas ressentidas num caderno todo rabiscado. Mas o pior, o pior de tudo era o momento das danças, geralmente em aniversários, nas quais as pessoas eram felizes e dançavam Macarena todas juntas, iam até o chão com o Molejo ou se acabavam ao som de Michael Jackson, Britney Spears e Backstreet Boys. Quanto a mim, ficava num canto escuro junto a algum outro garoto tímido falando asneiras ou nada, e ainda não havia porre — ó grande miséria —, ainda não havia os goles redentores da cana. Então chegava a parte do dançar juntinho. O terror dos terrores é que nesse momento você não podia ficar apenas ali atrás, resguardado do pacto tribal entre adolescentes. Não, você sentia que tinha de fazer alguma coisa; você tinha que tomar uma atitude, até porque seu amor platônico estava ali e todos sabiam uns dos outros e todos queriam aquilo e todos esperavam que as pessoas expressassem seus desejos umas pelas outras. Afinal, essas eram as regras do jogo — a liberdade total — e você que fosse otário o suficiente pra revelar sua artificialidade. Todos esperavam que você saísse perguntando se alguma alma gostaria de dançar, pra depois ver onde botar uma e outra mão — quantas mãos — harmonizar a porra dos pés, escutar a música e tudo o mais. O mais louco é que no final dessa odisséia afetiva ainda tinha que ver se rolava o famoso beijo, essa coisa que eu nunca tinha experimentado até os dezesseis e que pra mim era um absurdo insuportável, já que eu achava que por causa disso meu pau ia cair, meus dentes ficariam podres e as espinhas tomariam conta de todo o meu corpo.

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Que grande idiota a gente é quando come o reggae da sociedade. Depois que a gente não come mais esse reggae já está velho e se preocupa com contas e médicos, pouco importando se existe ou não existe reggae, e comê-lo ou não comê-lo já não é uma questão; agora é a morte e a morte e alguns traguinhos aqui e ali. Às vezes alguma coisa ilícita pra dormir ou rir melhor.

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Enquanto isso, na Barroquinha, a dança fluía muito-bem-obrigado e a gente olhava uns nos olhos dos outros como se fôssemos anjinhos hipsters compartilhando do mesmo paraíso, onde tudo pode porque nada de sério ou de extravagante nos é solicitado. Mas, como tudo na vida, essa coisa maravilhosa que é ficar dançandinho sem pretensão nenhuma acaba. Zé fini. Aí os dançarinos começam a girar feito peões possuídos e vão caindo no chão feito amêndoas no fim do verão. Isso é legal de ver.

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Porque parece que o corpo, nosso cavalo, quer ir junto, e, com a luz caindo e voltando e caindo de novo, os corpos deixam espectros no espaço como as fotos de Mário Cravo, não sei se o pai, o neto, o júnior ou o espírito santo, e levantam e caem novamente e os Dj’s fazem sons de

Por Daniel Guerra

DESPACITO

Sobre Looping - Bahia Overdub, de Felipe Assis, Leonardo França e Rita Aquino

Foto de Patrícia Almeida

carro acelerando cada vez mais alto e os dançarinos se abraçam de novo, mas agora sem a gente e correm de um lado pro outro e vruumm até quase derrubar alguém do público, mas não, eles se sustentam com a força do abdome a dois centímetros do nosso nariz, até porque eles são dançarinos profissionais e só caem se têm de cair, só se batem se têm de se bater e só cansam se têm de se cansar e vrrrrruuuummm isso vai num crescendo tão forte que dá vontade de entrar e entrar e entrar e vrrrrruuuuuuuuuummmmmmm!

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Devo confessar. Ando gostando daquelas obras que me deixam devanear sozinho, entregue apenas aos limites do meu próprio imaginário umbilical. Ando tendo esse desejo, é claro, a despeito das artes cênicas, meu campo de formação, onde permanece a utopia de abdução do público por uma força violenta qualquer, seja ela trágica, cômica, tragicômica, erótica, política, terrorista,  antiterrorista, grotesca ou sentimental. Gosto, sim, de ver meu tapete de sapiens devidamente retirado em prol da beleza no caos, mas a realidade inescapável é que na maior parte do tempo tenho preferido coisas que me deixem mais sossegado, que se prestam a um tempo mais dilatado, mais distanciado, menos assediado por sensações. Ou então algo que me faça babar. Algo como um seriado idiota ou algum desenho animado psicodélico. Isso é o que eu chamo de “botar o espírito pra passear” — como fazem com os cachorros de apartamento.

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Looping me deixou muito à vontade nesse sentido. Quando os dançarinos se põem de quatro lá na frente e se viram de costas para nós como se entrassem numa dimensão paralela, podemos finalmente descansar nas paredes, sentar no chão e entregar-nos aos prazeres da elucubração. É quando eles vêm vindo, lentamente, sempre de quatro e de costas, carregando no lombo as caixas de som feitas especialmente para a situação, as quais um jornalista cultural poderia facilmente classificar como “o grande trunfo desta belíssima produção”. Muitas imagens são liberadas a partir daí. As que mais me tocam, no fundo dos meus pensamentos mais alheios, são os ecos que surgem das caixas de som. São lamentos sertanejos, coros de igreja, pregações, marchinhas de carnaval, vozes de multidão.

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Dia desses fui ler Walter Benjamin. Ele defende que a ideia das “massas” — tal como as entendemos hoje — é bastante jovem: contemporânea à Revolução Industrial. Disso deduzo que a criação de uma multidão sirva, dependendo do contexto, a usos totalmente distintos. Existe a multidão dos movimentos trabalhistas, a multidão dos shows de sertanejo, a multidão dos fascistas, a multidão dos consumidores de presentes de Natal, a multidão das festas de largo, a multidão dos evangélicos. Não existe apenas um valor social positivo ou revolucionário para a multidão em si. Deve ter gente que ama a multidão, deve ter gente que daria tudo para estar fora dela. Lembro-me da mãe de Tarkovsky n’O Espelho, burocrata soviética. Da proletária norteamericana cega em Dançando no Escuro. Lembro-me de ter ficado impressionado ao ler um relato antropológico no qual se expunham os métodos violentos utilizados por um determinado povo indígena no controle ou extermínio de idosos, doentes, bebês deficientes e adolescentes rebeldes. Por essa eu não esperava. “Logo os índios?”. Tal comoção que senti, já sei, é a herança de uma geração que comemorava o dia do índio com penachos de cartolina na cabeça e chamava floresta de natureza.

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Alguma coisa me acorda. Retorno pro espetáculo. A música está alta. Umas quarenta pessoas dançam alegremente. Decido que já dancei tudo que tinha pra dançar na primeira parte, e devaneei tudo que tinha pra devanear na segunda. Na terceira, vou tomar um pouco de ar. Compro uma cerveja. De fora, a igreja fica muito mais bonita. Me lembra algum filme de Fellini, ou a capa de algum disco de Caetano. Mal dou o segundo trago, aparece um dos dançarinos, todo suado. Pede uma cerveja. Brindamos. Não resisto e lhe pergunto: “Não vai trabalhar, não?”. Enxugando a testa, ele me diz: “Porra, tô cansado”.     

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