

Se conserto leva à ideia de reparação, recuperação, restauro e, concerto, de consonância, harmonia, composição, “conscerto” me situa no lugar da elaboração. Falo elaboração no sentido que intuo, a partir de meu processo mesmo em análise, ser o psicanalítico de compreensão/percepção sobre algum aspecto pessoal que esteve abandonado e produtivo a um só tempo. Se incluo desejo no raciocínio e o tomo como verdade, “conscertá-lo” seria realocá-lo como elemento fundamental de determinada obra. Nesse caso, a obra sendo a vida mesma.
A viagem é pessoal e intransferível e, por isso, sinto-me confortável o suficiente para expor os pensamentos, acima descritos, que brevemente me povoaram quando li que estaria em cartaz Processo de Conscerto do Desejo, de Matheus Nachtergaele, na Caixa Cultural.
Escrever a selfie sobre esse espetáculo me pareceu a coisa mais acertada no momento em que pulei do título do solo para sua descrição. O ator homenageia a própria mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, incorporando o seu eu lírico em cena, e se torna, já nesse momento, também motor para minha antiga e sempre atual divagação: a minha própria vida “desconscertada” com a morte da também Maria, nesse caso Helena Pessoa, minha mãe.
Já enquanto aguardava a chegada das 20h, ainda sozinha, pensava sobre outros momentos em que vi o ator que logo mais se apresentaria. No cinema, na TV, no teatro, Matheus sempre me raptou e eu sabia que sua performance, para além da principal motivação daquela montagem, causa de meu entusiasmo, seria um espetáculo em si. Logo no início de Processo me pus a fantasiar: queria ser Matheus Nachtergaele em cena.
Após a entrada dos dois músicos que o acompanharam por toda a travessia e com um vestido preto longo a la Norman Bates em seus momentos mais insanos em Bates Motel, aparece nosso ator a performar (pela conversa, pelo canto, pela declamação) aquilo que os poemas e os fatos lhe sinalizaram sobre sua mãe.
Por Bárbara Pessoa
DESCONCERTADA
Sobre Processo de Conscerto do Desejo de Matheus Nachtergaele
Foto do site www.tribunadoceara.uol.com.br
Pela poesia encarnada naquela noite diante de meus olhos, vislumbrei a intensidade de uma pessoa que celebrava a tristeza e dançava, ao anunciar no imperativo, por exemplo, que nada demorará mais como antigamente: então comemoremos! Frases, ditas ao longo do solo e fugidias nesta tarde de sábado, reafirmaram em meu corpo a beleza que há em ser desmedida e que ser isto é também ser por vezes agressiva, por outras, ingênua, mas dificilmente previsível. É quando me recordo de um antigo affair que, ao perceber certo embaraço meu com meu próprio jeito de ser, perguntou-me em uma de nossas primeiras conversas: Bárbara, e que valor há nas pessoas contidas? Volta e meia, ainda me pego tentando responder.
Ao final do espetáculo, um amigo que sentava à frente conclui sobre aquele que acabava de se apresentar: por isso que a pessoa é louca, né? Bem, se Matheus é louco, eu não sei, apesar de que, do ângulo de onde olho, com certeza é – bom pra ele. O fato é que aquela frase me fez digressionar sobre os tantos modos possíveis de se darem os inevitáveis “conscertos” quando a morte, as perdas, as rupturas – disparadoras de crise em potencial – chegam pela violência cotidiana, pela lógica desumana, pela guerra irracional.
Na manhã daquela quarta-feira, não houve aula na escola onde trabalho, pois “precisa-se combater as drogas”, independentemente de quantos corpos passarão sem vida carregados por outros corpos que temem também aquela morte. E as crianças com quem convivo diariamente revelam em suas narrativas como essa conjuntura as faz encarar a tal morte (que nos faz pensar e nos exige criar) de um ponto de vista compreensivelmente banalizado.
Se eu e Matheus temos elementos pujantes similares, como o tabu e o trágico, em nossas histórias com nossas mães, ou melhor, nas histórias de nossas vidas, neste momento, essa perspectiva da morte acaba me soando bastante privilegiada, o que me incomoda um tanto. A reflexão sobre esse lugar, longe de querer deslegitimar qualquer maneira de sentir, reforça em meus pensamentos a imprescindibilidade de outros “conscertos” individuais e consequentemente coletivos.