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setembro #16

V.2 n.7 2017

Se conserto leva à ideia de reparação, recuperação, restauro e, concerto, de consonância, harmonia, composição, “conscerto” me situa no lugar da elaboração. Falo elaboração no sentido que intuo, a partir de meu processo mesmo em análise, ser o psicanalítico de compreensão/percepção sobre algum aspecto pessoal que esteve abandonado e produtivo a um só tempo. Se incluo desejo no raciocínio e o tomo como verdade, “conscertá-lo” seria realocá-lo como elemento fundamental de determinada obra. Nesse caso, a obra sendo a vida mesma.

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A viagem é pessoal e intransferível e, por isso, sinto-me confortável o suficiente para expor os pensamentos, acima descritos, que brevemente me povoaram quando li que estaria em cartaz Processo de Conscerto do Desejo, de Matheus Nachtergaele, na Caixa Cultural.

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Escrever a selfie sobre esse espetáculo me pareceu a coisa mais acertada no momento em que pulei do título do solo para sua descrição. O ator homenageia a própria mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, incorporando o seu eu lírico em cena, e se torna, já nesse momento, também motor para minha antiga e sempre atual divagação: a minha própria vida “desconscertada” com a morte da também Maria, nesse caso Helena Pessoa, minha mãe.

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Já enquanto aguardava a chegada das 20h, ainda sozinha, pensava sobre outros momentos em que vi o ator que logo mais se apresentaria. No cinema, na TV, no teatro, Matheus sempre me raptou e eu sabia que sua performance, para além da principal motivação daquela montagem, causa de meu entusiasmo, seria um espetáculo em si. Logo no início de Processo me pus a fantasiar: queria ser Matheus Nachtergaele em cena.

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Após a entrada dos dois músicos que o acompanharam por toda a travessia e com um vestido preto longo a la Norman Bates em seus momentos mais insanos em Bates Motel, aparece nosso ator a performar (pela conversa, pelo canto, pela declamação)  aquilo que os poemas e os fatos lhe sinalizaram sobre sua mãe.

Por Bárbara Pessoa

DESCONCERTADA

Sobre Processo de Conscerto do Desejo de Matheus Nachtergaele

Pela poesia encarnada naquela noite diante de meus olhos, vislumbrei a intensidade de uma pessoa que celebrava a tristeza e dançava, ao anunciar no imperativo, por exemplo, que nada demorará mais como antigamente: então comemoremos! Frases, ditas ao longo do solo e fugidias nesta tarde de sábado, reafirmaram em meu corpo a beleza que há em ser desmedida e que ser isto é também ser por vezes agressiva, por outras, ingênua, mas dificilmente previsível. É quando me recordo de um antigo affair que, ao perceber certo embaraço meu com meu próprio jeito de ser, perguntou-me em uma de nossas primeiras conversas: Bárbara, e que valor há nas pessoas contidas? Volta e meia, ainda me pego tentando responder.

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Ao final do espetáculo, um amigo que sentava à frente conclui sobre aquele que acabava de se apresentar: por isso que a pessoa é louca, né? Bem, se Matheus é louco, eu não sei, apesar de que, do ângulo de onde olho, com certeza é – bom pra ele. O fato é que aquela frase me fez digressionar sobre os tantos modos possíveis de se darem os inevitáveis “conscertos” quando a morte, as perdas, as rupturas – disparadoras de crise em potencial – chegam pela violência cotidiana, pela lógica desumana, pela guerra irracional.

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Na manhã daquela quarta-feira, não houve aula na escola onde trabalho, pois “precisa-se combater as drogas”, independentemente de quantos corpos passarão sem vida carregados por outros corpos que temem também aquela morte. E as crianças com quem convivo diariamente revelam em suas narrativas como essa conjuntura as faz encarar a tal morte (que nos faz pensar e nos exige criar) de um ponto de vista compreensivelmente banalizado.

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Se eu e Matheus temos elementos pujantes similares, como o tabu e o trágico, em nossas histórias com nossas mães, ou melhor, nas histórias de nossas vidas, neste momento, essa perspectiva da morte acaba me soando bastante privilegiada, o que me incomoda um tanto. A reflexão sobre esse lugar, longe de querer deslegitimar qualquer maneira de sentir, reforça em meus pensamentos a imprescindibilidade de outros “conscertos” individuais e consequentemente coletivos.

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