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outubro #17

V.2 n.8 2017

Estava dirigindo e pensando sobre a escassez de agendas culturais dignas na cidade. A isso soma-se a visível retração da produção artística, o que deve ser resultado da dissolução estratégica das máquinas públicas e da ineficiência dos artistas em compreender o mercado. Este, aliás, é coisa recente. Antigamente você fazia um retrato de Jesus e garantia a feira do mês. Ou pintava o rei, a rainha e seus filhos. Hoje você tem que criticar a sociedade e ao mesmo tempo arrancar o dinheiro dela.

O vidro está sujo. Aciono o para-brisa e lá vem o jato d’água. “Mercado, Jesus”.

 

Eles devem existir. “Em algum lugar, eles devem existir”.

 

Ligo o ar-condicionado.

 

O calor treme no asfalto. Durante o engarrafamento uma imagem me sobe à cabeça. A de um cadáver atacado por urubus displicentes, daqueles que não precisam estar famintos para extirpar nacos de carne, deixando-os às moscas depois das bicadas. Se fosse um meme, nos urubus haveria uma seta dizendo “2017”, e no cadáver, “eu”, “você”, “Brasil” ou “mundo”. Estou na cena de abertura de Oito e Meio, de Fellini, e nem sou Marcello Mastroianni.

Tudo isso pode ser apenas uma sensação. Ou talvez sofra dos influxos da história. O ano mal começou e já chega ao fim. Dois mil e dezoito promete seus horrores. Dia desses presenciei uma amigo chorando na sarjeta. Ao redor, todos com suas bolas de cristal em riste; no horizonte, tribos, urban tribes. Na boca do progressismo uma pá de conceitos requentados dos eighties. A Dove e a Avon sacaram antes de nós. E O Boticário.

Não sei por que, mas penso em Okja, aquela variação tosca de Free Willy. “Meninos mimados não podem reger a nação”, canta na rádio um Criolo versão sambista.

Ou podem ser meus trinta anos.

 

O programa musical é interrompido por uma propaganda do Humor de Santo. “O primeiro stand-up umbandista do Brasil”.

 

O acaso nunca me deixa na mão! Chego em casa e vou direto à Internet. Descubro rapidamente que o comediante Paulo Mansur fará suas apresentações no ISBA. O ingresso custa 60 reais, o que calculo equivaler a seis cervejas de 600 ml (Skol, Brahma ou Antártica). Se, como já havia pretendido, eu não pisar num único bar durante todo o fim de semana, tudo ficará em paz, tanto no bolso quanto no espírito. Vou lá conferir esse achado.

Já no ISBA compro uma pipoca, enquanto espero a hora da entrada. O pipoqueiro começa a reclamar dos policiais (uma viatura ronda o quarteirão). Diz que deixou de trabalhar como ambulante no carnaval depois de ver o funcionário de um hotel ser confundido com um ladrão. Terminou caído no meio da rua, espancado e pisoteado. Eu deixo claro que também deploro a situação e pergunto se há uma lixeira onde jogar o saquinho de papel. Ele abre a portinha de ferro e arremesso o lixo lá dentro. Agradeço, trocamos sorrisos e passo à fila de entrada, depois de lavar as mãos sujas de manteiga.

Em cima do palco e em primeiro plano, um ebó. Um alguidar com pétalas de rosa acompanhado de uma garrafa de 51. O resto do palco está nu. As luzes, vermelhas e amarelas, raramente mudarão durante a performance.

Desce um pano de projeção. Põem um vídeo bastante tosco em que se relacionam músicas populares com orixás, assim como fazem com os signos do zodíaco. Iemanjá está representada na música Onda Onda (Olha a onda) e Ogum, numa música de Fagner. Os Erês baixam em Brincadeira de Criança, do Molejão, e Oxumaré dá as caras através de Xuxa Meneghel: “Vou pintar um arco-íris de energia/ Pra deixar o mundo cheio de alegria/ Se tá feio ou dividido/ Vai ficar tão colorido”.

 

A pequena plateia, comprimida nas fileiras do meio, começava a engatar o mecanismo das risadas quando eu decidi migrar para a parte vazia da direita, onde não incomodaria os espectadores de trás com a luminosidade do celular. Eu não costumo fazer anotações durante os eventos, mas ao perceber que deveria lembrar de coisas muito específicas decidi registrá-las, mesmo que fosse com a ajuda do portátil.

Por Daniel Guerra

ERA UMA VEZ, NUM STAND-UP UMBANDISTA DE BRASÍLIA

Sobre “Humor de Santo”, de Paulo Mansur

Segue-se então uma infindável apresentação das marcas apoiadoras, cada uma com um tempo generoso de permanência na tela. O mais impressionante são as reações das pessoas às marcas: "Nossa, que lugar é esse?", "Você já foi aí?", "Olha Lulu, um dia a gente tem que voltar lá, com tio Lauro e vovó Cida.

Ao fim, alguns bons minutos são dedicados a veicular todos os endereços virtuais do Humor de Santo, incluindo o canal do youtube, onde deveríamos inscrever-nos para acompanhar “esses e muitos outros vídeos”.

Sobem a tela de projeção.

 

Paulo Mansur, homem de trinta e poucos anos, branco, loiro e atarracado, entra no palco como quem acaba de saltar da cama. Passando a mão na frente da cara de cima a baixo - um tique constante -, começa a falar num tom situado entre a indiferença e a hiperatividade.

As piadas seguem o mesmo roteiro que vejo na maioria dos shows de stand-up, com a diferença que aqui o vocabulário migra de um cotidiano hegemônico (escritório, engarrafamento, relacionamento heterossexual, viagens de avião, manias, doenças) para os códigos específicos da umbanda (canções, toques, terreiros, filhos de santo, orixás, espíritos). Muitas vezes tive a impressão de que se trocássemos os orixás por signos do zodíaco, a diferença entre o stand-up umbandista e o comum seria um alguidar e uma garrafa de cachaça.

Mas Mansur descrevendo as distintas formas de incorporação é impagável. Entre as muitas possessões que elencou, consegui anotar as três melhores: tem a incorporação embaixadinha, cujo “cavalo” dá saltinhos para trás estendendo a perna como quem chuta repetidamente uma bola imaginária, tem a incorporação topada-no-dedo-mindinho-do-pé, que dispensa descrições e, finalmente, a incorporação galinha pintadinha, sobre a qual deixo ao leitor o prazer da imaginação.

Lembro-me da primeira vez que estive num terreiro de umbanda. Foi em São Paulo, no ano passado, levado por um casal de amigos. Acostumado à cultura candomblezeira de Salvador, foi-me estranho ter de subir os degraus de um pequeno prédio comercial até o terraço, para pegar uma senha e esperar o momento da consulta. Me senti numa espécie de dentista espiritual. Do lado de fora fazia frio, e nos longos bancos de madeira se aglomeravam dezenas de paulistas tristes e agasalhados. Dentro do terreiro e separados de nós por grades de alumínio e vidraças foscas, os médiuns executavam seus cantos e coreografias. Até que chamaram meu número. Um tanto desconfiado, fui lá ver o Exu-Mirim. O Exu, no caso, era uma senhora que fazia gestos infantis. Não sei se rolou muita química entre nós. Já cansado da minha cara de cu, o maroto me dispensou presenteando-me com alguns doces, uma barata de plástico e sementes de mamona enrolados numa trouxinha de folhas que mantive por meses na minha estante.

Depois voltamos pra casa e, como minha amiga era uma médium em desenvolvimento, começou a falar das presenças que começava a ver, escutar ou sentir constantemente na sua própria casa. Falei da saudade do meu avô, o que é comum quando estou bêbado. Ela foi no banheiro e, quando voltou, contou que viu um homem negro, alto e de cabelos brancos no corredor. Ele tinha mandado um recado pra mim. Que meu avô estava muito bem, obrigado. Me arrepiei umas trinta e cinco vezes naquela noite.

As luzes estouram na minha cara.

A plateia é revelada. O comediante olha pra cá e fala: “Olha aquele cara, sozinho lá atrás”.

Eu demoro um tempo pra entender. Dou um sorriso. Ele saca que eu saquei. Ele me achou. “Tem sempre um cara solitário no fundão. É desse tipo de gente que o médium mais tem medo. Vocês pensam que médium não tem medo? Tem pra caralho, mano! Tipo, vocês também tão vendo aquele cara ali atrás né? Ele tá ali mesmo, né?”. Sorrio para as pessoas ao redor, que me olham extasiadas. Com os olhos apertados, tento entender o que aquela voz distante insiste em me perguntar.

“Véio, tu é umbandista?”

Não.

“Tu tem religião?”

Também não.

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