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setembro #16

V.2 n.7 2017

Perambulava por Pernambuco, quando a Treta bateu a porta do meu bate-papo do Face: foi Igor, o editor, me avisando que a colunista provisória desse mês seria eu. Prontamente abri várias abas no Google, confiando na guiança da agenda cultural de Recife e do site de crítica do Satisfeita, Yolanda?, que no título do release destacava “Paixão tórrida na época da invasão holandesa”, referenciando o espetáculo Ana de Ferro – A Rainha dos Tanoeiros. O romance fictício envolvia fatos históricos, o que sempre deixa o enredo mais atraente . – O brilho nos olhos foi um sim para o chamado!

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O espetáculo me chamou atenção pela riqueza das sinopses que li nos jornais da cidade. As fontes de divulgação exploraram com primor o tema da peça e me aguçaram a assistir um espetáculo dos bons, dos que apresentam um bom texto dramático, fazendo link entre o romance ambientado na boemia de um cabaré do século XVII, na região portuária do Recife, com questões contemporâneas de gênero, religiosidade e racismo. Uma trilha sonora diversificada que apostava na releitura de clássicos românticos antigos de Édith Piaf, sofrências contemporâneas de Marília Mendonça, mesclando obras como Assum Preto e Hallelujah. A peça contava com a tradução simultânea para libras do intérprete Leonardo Ramos, como elenco do Grupo Teatral Risadinha de Camaragibe (PE) e convidados.

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Movida por esta expectativa, saí do festival de palhaçaria que se apresentou no teatro Apolo e voei de Uber até achar a localização do Espaço Fiandeiros, no bairro da Boa Vista. Assim que me acomodei em pé perto do que seria uma das coxias, observei o quanto estava lotado. Todo o espaço preenchido. O público disposto em corredor e o centro da cena acontecendo nessa travessia numa armação retangular que me remeteu ao espetáculo A Bunda de Simone (2014) do grupo Base (BA), no teatro da Barroquinha; só que ao invés de chuveiros, tinha refletores, que não eram manuseados pelos atores. Um pouco mais acima dessa armação mais alguns refletores e, subindo mais, o céu, representado pelas nuvens penduradas por fios transparentes na estrutura do teto.

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A riqueza de detalhes realmente era grande: o quarto de Ana, a sala do bordel, a rua e sua luminária solitária, todo um imaginário que seria habitado também por seus contemporâneos. No alto da arquibancada do público, em pé, está o intérprete de Libras, vestido de preto e com uma luz própria.

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Panorama posto e depois de 10 minutos de espetáculo, constato que não estou entendendo nada, ou melhor, que tudo se revelou como é para mim. Procurei acompanhar nos diálogos entre Ana e seus affairs, por exemplo, o que representava sua amizade com Zambi, escravo comprado e mais tarde aliado. As intenções e as ironias passavam despercebidas, ora em razão da insuficiente projeção da voz de ambos, ora pelo sotaque holandês criado pela personagem principal. Por outro lado, sua relação com a companheira de cabaré Maria Cabelo de Fogo e o seu enlace amoroso com o governador de Pernambuco Maurício de Nassau foram permeados por excessivas gesticulações, o que reforçava o distanciamento ao invés de reforçar a cumplicidade e a particularidade das relações.

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Com essas discussões não sugiro um ideal de relação entre personagens, tampouco especulo as supostas intenções do encenador. A questão não é apontar a canastrice, que inclusive adoro nas novelas mexicanas, no teatro de revista, nos circos mambembes, nos shows das drags do bar Âncora do Marujo etc., que justamente fazem desse estilo uma poética viva. A fragilidade que encontro, tão elementar quanto difícil no jogo cênico, é o uso desse artifício para sobrepor a presença no jogo entre os atores e, consequentemente, entre o público.

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Falar em estereótipos e gestos no teatro quase se tornou uma chamada obrigatória de referência ao gestus de Brecht. Geralmente utilizamos um recurso como o gestus para promover uma autocrítica da representação social daquela personagem, ou seja, representa-se o gestus do sofrimento da dona do cabaré pela partida do seu amor para reforçar a contrapartida crítica. O gestus rompe com o realismo para apresentar o problema social e a moral vigente da qual a personagem faz parte, o que apresentaria sinteticamente a solidão das prostitutas de uma 

Por Agueda Tavares

ANA DE FERRO - DA PROVÍNCIA AO CAOS, DO CAOS À LAMA

Sobre o espetáculo Ana de Ferro – A Rainha dos Tanoeiros Obra de Miriam Halfim, encenada por Emanuel David d’Lúcard.

Era como se a paixão tórrida entre Ana De Ferro e Maurício de Nassau desvelasse as ruínas que a colonização holandesa ajudou a implantar no imaginário social do recifense: grandes construções provincianas sobre os mangues soterrados, atribuindo ao manguezal o espaço potencial de aterramento, seja pela especulação imobiliária, seja pelos olhos do conservadorismo que toda província resguarda

determinada época e as mazelas sociais que as colocaram naquela situação. Porém, a representação dos atores em questão apontou para o estereótipo nas ações, a exemplo das longas despedidas. Ana de Ferro executava o mesmo gestual de sofrimento para as três despedidas com tempos longos, como se não houvesse nuances entre a relação dela com cada despedida. Era o meio-termo: nem a crítica social nem o drama individual.

 

O intérprete de Libras foi o único que me chamou atenção nesse sentido de uma tomada de posição da história encenada, ora traduzindo as músicas, ora corporificando os personagens. Talvez por se permitir ir além do que se espere de um tradutor numa peça, Leonardo representou todas as falas como se partisse dele todo o entendimento do espetáculo.

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O belo cenário inserido na instalação precária do casarão já era o mote para as ironias e as circunstâncias do espetáculo. Era como se a paixão tórrida entre Ana De Ferro e Maurício de Nassau desvelasse as ruínas que a colonização holandesa ajudou a implantar no imaginário social do recifense: grandes construções provincianas sobre os mangues soterrados, atribuindo ao manguezal o espaço potencial de aterramento, seja pela especulação imobiliária, seja pelos olhos do conservadorismo que toda província resguarda. Assim como os colonizadores pisavam na ponta dos pés, receando o terreno incerto dos mangues, tateamos estéticas que priorizam o seguro e o belo. As entradas e saídas caóticas pelas coxias por estes atores que tentavam conter a compostura ressignificaram o ambiente no clássico randevu do recifense.

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Dadas as circunstâncias, para que forjar uma encenação que envolve “momentos realistas e simbólicos numa dinâmica de graphic novel” em detrimento de uma maravilhosa chanchada?

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Não há pecado em provar outras estéticas , ou apostar no inexplorado, até porque nossos ritos estão além dos céus e infernos dos julgamentos finais. Mas até que ponto não perpetuamos esse juízo da busca pelo ideal, do que deve ser bom e belo na arte em detrimento da demanda dos corpos dos atores e da beleza que já pulsa neles? Por que insistimos nos moldes e negligenciamos nossos pés?

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Referências

Artigo de Djalma Agripino de Melo Filho Mangue. Homens e caranguejos em Josué de Castro: significados e ressonâncias. publicado em Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.10 no.2 Rio de Janeiro Maio/Agosto. 2003.

GASPAR NETO, Francisco de Assis. O gesto entre dois universos: a noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Gilles Deleuze. Curitiba, FAP, v.4, n.1 p.1-15, jan./jun. 2009.

Laís Machado, O Contexto da Presença. Na coluna Ensaio da Revista Barril Edição N. 9 /2016

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