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CRÍTICA Umbigo e útero
REVERBERA Raiça
CRÍTICA - A Bouche, o Mar e o Tempo
REBATE Viansatã
CRÍTICA DA CRÍTICA - As Ideias, é preciso fabricá-las(7)
RIZOMA - Convicção (7)
ENCONTRO com Paula Lice (7)
ENSAIO A VISÃO PERSONALÍSSIMA DO CLÁSSICO (7)
SELFIE - Narciso's Selfie
TRETA - 10 dicas de como lidar com a Crítica Parte I (7)
COLUNA ESPECIAL - ENCOSTO
Rebate - Iami Rebouças

A Bouche, o Mar e o Tempo - Critica de A Danação de Tristão e Isolda - Capítulo 1, por Laís Machado 

Reverbera de Raiça Bonfim do espetálo Efeito Vortéx

Crítica Umbigo e Útero - Crítica sobre os espetáculos Umbigüidades e Ulteridades, solos de Iami Rebouças.

Rebate à crítica " A Bouche, o Mar e o Tempo "de Laís Machado 

As idéias, é preciso fabricá-las, por Bárbara Pessoa

Convicção, por Diego Pinheiro

10 dicas de como lidar com a Crítica - Parte I - Gestores Públicos, por Daniel Guerra

Narciso's Selfie, Por Daniel Guerra

A visão personalíssima do clássico, por Paulo Raviere

Paula Lice, por Diego Pinheiro

Rebata à 'Crítica Umbigo e Útero' de Diego Pinheiro

Na Cola de Márcio Meirelles - Parte 1 , Por Igor de Albuquerque

a g o s t o

Daniel Guerra encontra a diretora teatral, dramaturga, atriz, produtora, escritora, roteirista e cineasta Paula Lice. 

Daniel Guerra encontra Paula Lice

CONVICÇÃO - Rizoma de Cuspe, Paetê & Lantejoulas

Por Diego Pinheiro

Por Laís Machado

A Bouche, o Mar e o Tempo

Eu poderia começar esta crítica dizendo: A Danação de Tristão e Isolda é a cara do Núcleo Viansatã. Sei que à primeira vista pode parecer redundante, mas estou falando do processo de construção de uma identidade estética que o grupo vem desenvolvendo desde o ano de 2009. Dessas identidades facilmente reconhecidas e que, para quem acompanha a trajetória são visíveis as modificações, adições e recriações fruto da pesquisa continuada.

É importante lembrar que durante o boom do movimento de Teatro de Grupo aqui na cidade de Salvador, nos anos de 2011 a 2013, o reconhecimento deste aspecto - a pesquisa continuada - tornou-se uma das grandes reinvindicações dos coletivos que chegou a atingir esferas institucionais. Dando origem ao edital de manutenção de grupos e coletivos culturais, por exemplo.

 

Uma vez que as iniciativas estéticas do Viansatã se apresentam sempre como parte de suas pesquisas, vivencias, modos de criar e de gerir, seria impossível começar a falar da Danação de Tristão e Isolda sem fazer esta pequena digressão. Mas voltemos ao espetáculo em si.

 

Uma das características do Viansatã é o atraso no início de suas atividades. Apesar do estranhamento que isso pode causar, os efeitos negativos disso são facilmente dissipados se você se disponibilizar a considerar o tempo da espera como tempo da própria experiência. Então, ao chegar no largo do cruzeiro, o convidado – como já disseram preferir chamar as pessoas que vão até eles fruir de suas proposições – se depara com os últimos ajustes de uma estrutura que nos remete imediatamente aos grupos nômades mambembes: um círculo de luz com lâmpadas apoiadas em garrafas de cerveja, os programas, livros e máquina de cartão num tabuleiro, uma caixa de formas animadas e os ajustes de som. E é claro, as vestes cerimoniais gótico punk do coletivo. Após isso, Victor Diomondes, o mestre de cerimônia, deita nesta caixa e entre murmúrios e espreguiçadas finge dormir.

Nessa hora eu já tinha desistido de tentar descobrir quando ia começar e passei a olhar em volta.

Foto de Izabella Valverde

Ser convidado pelo Viansatã é escolher estar ou não disponível. Para que os rituais propostos se façam, depende deles, mas também se torna claro que depende de você.

Crítica de A Danação de Tristão e Isolda - Capítulo 1 do Núcleo Viansatã

Toda estrutura coexistia com a vida movimentada do centro histórico. Shows e aulas de dança afro aconteciam, turistas passeavam, curiosos paravam e eram abordados sorrateiramente pelo tabuleiro. Os que “vestem personagens” saem da sede, a Bouche de L’enfer e caminham pelo pelourinho. Aos poucos o som do acordeon que os acompanhava se misturava com os atabaques e as figuras de Tristão e Isolda se misturavam por sua vez com Oxum, Xangô, Iansã, que eram homenageados em edifícios vizinhos. Entretanto, mesmo assim, ainda pareciam estranhos, como se fossem de um outro tempo e de um outro lugar. Essa sensação permanece até que eles pararam na cruz do Largo do Cruzeiro para brindar entre si. Uma cruz que eles não colocaram. Uma cruz que já estava lá. Uma cruz que tinha muito a ver com eles, mas ao mesmo tempo tinha muito a ver com o lugar. Nessa hora deixam de ser estranhos e se fundem com o espaço. Nesta hora também começaram a tocar para Yemanjá em algum lugar próximo, e foi impossível não ligar esta irrupção sonora ao mar de Isolda.

Entram no círculo e apresentam os personagens: Tristão, Isolda, Rei Marc, A Lua e a Poção/Belladona. Narram a história. Falam de Amor, Vontade, Desejo e do Tempo. Assumindo ali, definitivamente, a contação de história.

 

Assisti, durante boa parte, pela perspectiva da Lua. Marcada com um número oito. Segurando os cravos que me haviam sido ofertados por Isolda. Cravos que me tinham sido apresentados pelo grupo em um de seus eventos de outono.

 

Entretanto, usando da contação, e do teatro de formas animadas a história de Tristão e Isolda termina num piscar de olhos me fazendo sentir falta do mar.

Somos então convidados a subir para Bouche. Somos servidos com a mesma bebida apresentada no Théâtre de Vampires, somos guiados por eles e acomodados pelo espaço, onde eles separam os grupos de pessoas que chegaram juntos como fizeram em um de seus experimentos abertos e observamos as ofertas que foram apresentadas nas Mostras Caóticas se desenvolverem. Nesse momento, eu já não via Tristão, nem Isolda. E sinceramente, não sei dizer se isto é um aspecto negativo ou positivo.

Esta segunda parte era um grande energético através do qual compartilhavam os vislumbres que se tem quando se coloca nesse estado. Comida é feita, drinks são preparados, corpos se tocam, gritos se escutam, respirações se tornam sonoras tão repetidamente como se nos lembrassem de respirar e toda complexidade que envolve este movimento.

 

Gostaria de destacar, a presença de Juma Mascarenhas, que me escolheu para observá-la durante a distribuição dos lugares. A Belladona nos faz tremer juntas mesmo quando está imóvel. Nos enfeitiça enquanto mexe seu caldeirão, nos fazendo aguar por um pouco da mistura. E que vem apresentando uma sensibilidade ao entorno cada vez mais aguçada. Chegando a antecipar movimentos entre eles e entre nós.

Ser convidado pelo Viansatã é escolher estar ou não disponível. Para que os rituais propostos se façam, depende deles, mas também se torna claro que depende de você. Entrar na Bouche, é entrar num espaço que foi transformado por eles em um espaço sagrado. E, se tratando de um espaço sagrado, se nunca visitou a Bouche de L’Enfer, aviso de antemão: Não toque em qualquer coisa. Não sente em qualquer lugar. Nem tudo é permitido.

Mas, permita-se e lide com este paradoxo.

Estou presente frequentemente nos rituais do núcleo. Acompanho sua trajetória que respeita o Tempo e o Caos. E gostaria que aceitassem esse texto como um presente.

Vida longa ao que os mantém unidos.

Que assim seja, e que assim se faça.

C R Í T I C A

Rebate à crítica "A Bouche, o Mar e o Tempo" de Laís Machado

Nos deixou com sede o seu olhar. Somos assim. Viciados em visões múltiplas, viciados em sentir até onde cada escolha pode nos levar. Não seria diferente depois do tanto de sal que comemos juntos em sete anos, quando iniciamos pelo pretexto de encenar essa mesma história que aqui e agora escolhemos fazer. Sim. Cada palavra, gesto, som ecoa nosso caminho, que se abre para o Norte e para o Sul, para o passado e para o futuro, mas que marcamos com nossos pés de agora. Precisa ser desse jeito.

Um velho mito narrado nas pedras antigas de um bairro histórico. Poderia ser apenas isso. Mas é tudo isso que também nos move. Somos ecos de escolhas que nos são anteriores, mas o grito precisa ser nosso, com nossa voz. O lugar e as horas nos pertencem, basta termos o poder de lembrar disso. Construímos nossa – e repito, nossa –presença entre os prédios, entre as músicas, entre os sons, naquele Cruzeiro de São Francisco. E depois em nossa Bouche.

Por Victor Diomondes

Sabemos do peso que as velhas histórias trazem. Mas Artaud nos disse  para destruir tudo. Solveet Coagula. E assim conseguir aquilo que faz nosso pulso estremecer e nossa boca salivar. Dar ao espetáculo o título A Danação de Tristão e Isolda foi como nos resvalar no passado para beijar a boca do presente. Pois cada personagem – Lua, Belladona, Marc, Tristão e Isolda – são um mundo, um mar. E assim a narração da paixão de um casal feita na rua se prismou nos muitos lugares onde esses personagens habitam na casa do Viansatã. E eles servem a si mesmos em bebida, comida, música, cheiro, luz, dança. Você esteve com a Poção, e a experimentou em sua cozinha.

 

E falando em delícias, essa foi mais uma que você nos proporcionou. O prazer de ter entre nós uma artista que trilha a mesma vereda do Teatro de Grupo, que sabe que é conosco o encontro, para além do espetáculo. E mais. Que é sagrado.

Uma vez um menininho pequeno disse que somos o tempo. Então não há argumento para não termos tempo. É no Teatro Ritual que construímos nossas ações. E isso deve acontecer com toda a Vontade e a diligência que marcam quem enxerga a arte e a vida manchado de religiosidade.

 

Talvez devesse me preocupar com a falta que o mar lhe fez. Porém, com toda a certeza, me deliciei em saber que você o sentiu. Como partilhei há linhas atrás,esse é também um caminho para o futuro, para a escuridão, para a incerteza abraçada pelos ouvidos que anseiam escutar o Caos. Onde está o mar? Seria no coração dos atuantes? Nas luzes bruxuleantes das velas que recebem os convidados que adentram a Bouche? Nos espelhos da Lua? Nos drinks gelados? No caldeirão de Belladona que se derrama? De toda forma, esse é apenas o Capítulo I. Ainda há muitas e muitas léguas submarinas a percorrer. E isso me dá um tesão tão grande.

R E B A T E

A atriz, dramaturga, poetisa, performer, e produtora Raiça Bomfim reverbera o espetáculo espanhol "El Agitador Vórtex", criação de Cris Blanco, apresentado durante o festival IC - Encontro das Artes, em agosto.

R E V E R B E R A

Por Diego Pinheiro

Umbigo e Útero

Recentemente o Grupo Caixa do Elefante – Teatro de Bonecos, a partir de seu espetáculo Prólogo Primeiro, fez-me reencontrar com o fantasma de Gordon Craig. Em texto que fiz após ver o espetáculo, desejei que todos os atores fossem assombrados por esse fantasma britânico. Deveria ter sido mais incisivo, mais contundente, específico, e praguejar que Craig assombrasse todos os atores baianos, em principal os que se formam pela Escola de Teatro da UFBA.

 

Craig viveu numa Inglaterra onde se encontrar com um ator inquieto com o seu fazer era extremamente raro. Acreditando que a arte só é capaz de atingir sua plenitude quando se aproveita da artificialidade, de tudo aquilo que se pode controlar, como podemos ver nas artes visuais e na arquitetura – consequentemente, haveria de ter propósito e razão –, Craig professava que o homem não era arte, logo, o ator não era um artista. No que se refere ao ator ainda havia um agravante, a escravidão emocional; tanto na nova vertente da época, o realismo, quanto no espalhafatoso romantismo nostálgico, aquele que ressuscitaria Shakespeare, o vivo que assombrará todo um pensamento e cultura teatral dali em diante.

Justamente por esse motivo, Craig acreditava que o ator deveria se inquietar com tal questão. Providenciar um agenciamento estético que favoreça a atuação, transformando, enfim o ator num artista, um criador de perceptos. Já ele próprio resolveu tal hipotética “matando” o ator; eis a contradição ou a fortuna de Craig. Não é à toa, sabemos, que Stanislavski o convida para a direção de um Hamlet no Teatro de Arte de Moscou. Como um bom mal-intencionado engenhoso, é óbvio que o russo tinha a intenção de mostrar ao inglês que o ator poderia lidar, também, com a artificialidade, um artifex[1]. Ora, um ator que assume Craig como o fantasma que te assombra tem o dever de agir stanilavskiamente.

Em terras baianas é sempre difícil encontrar um ator ou atriz tormentoso com a sua própria produção, com a sua própria poética e sua capacidade de invenção. Aqueles que o fazem, que se desassossegam, como assim deve ser um ethos artístico, tão logo são taxados pelos deístas do “talento” de intelectualóides, performáticos ou, maldosamente, aconselhados a seguirem uma carreira mais teórica. Muitos desses atores assumem de vez a função/ofício de performer, omitindo suas genialidades que poderiam revolucionar o entendimento do que é a mais contraditória das artes. Os deístas do “talento” minam qualquer possibilidade de novos ares estéticos e não aceitam a subversão dentro da própria linguagem. “Os muitos artistas visuais” que me perdoem, mas nada é mais stanilavskiano do que ser performer. “A performance nada mais é do que o sonho de Stanislavski”, é a frase que em meio à “ilusão” proposta por Iami em seu teatro pautado na representação[2], que penso sair de sua boca.

Iami é a personificação da única possibilidade de se ser stanislavskiana na Bahia. Aquele de assumir Craig como uma de suas maiores assombrações e, sobretudo, a angustia com a sua própria produção. Consequentemente, Iami aponta (ainda) a única possibilidade de se estar em estado de performance, o entendimento preciso de unidades de ação. A atriz encara a si mesma, o seu corpo que muito recebeu, como um território para transversalidades; é assim que se apresenta em Ulteridades, dialogando com seus anseios e desejos artísticos. Um corpo puramente a serviço do que for estético, logo, como obra e

A atriz encara a si mesma, o seu corpo que muito recebeu, como um território para transversalidades; é assim que se apresenta em Ulteridades, dialogando com seus anseios e desejos artísticos. Um corpo puramente a serviço do que for estético...

Foto de João Bertonie

Crítica sobre os espetáculos Umbigüidades e Ulteridades, solos de Iami Rebouças.

O solo é o resultado prático da pesquisa de doutorado de Iami. Se em Umbigüidades há exposição do umbigo da atriz, suas questões e agruras estéticas, Ulteridades abre a questão no que tange à alteridade. Assume tal problemática a partir da construção de uma Encenação Tese, como define a própria Iami, e trazendo o útero como metáfora de um espaço onde se gere e se lança o outro; no caso o próprio pensamento, a própria atriz. A ideia de Ulteridades, ao que parece, é encarar o processo de criação filosófica e prática em artes cênicas como a própria obra, tendo a alteridade como tema, em diálogo com os expectantes. Esse é o novo buraco negro da atriz, sua fase experimental. Parir o diferente. O risco de Iami dentro do teatro da representação.

Iami concorda que Ulteridades ainda é um campo nebuloso em níveis práticos. Afinal, tudo que é melhor sendo explicado numa conservada tese é complicado em sua execução, nada melhor do que isso. Ou seja, estamos aqui numa zona, de fato, mais comportamental, uma verdadeira aflição quanto à atuação. Umbigüidades possui uma separação clara entre o ethos e o que é pensado de maneira sistematizada, embora estejam ali correlacionados. Já Ulteridades aponta para algo, de fato, ontológico, que é superar o que foi posto por Iami, por ela mesma, desestruturando, pois, suas próprias bases estéticas. Laís Machado (atriz e performer) diz que os poucos atores que se propuseram a pensar sobre o ofício se restringiram ao seu processo – e isso já é mais do que válido –, contudo, segundo a própria Laís, já é o momento de se pensar a totalidade da obra artística.  Se Ulteridades pode ser chamada de Encenação Tese, podemos começar a pensar, de maneira mais concernente, na possibilidade da performance do ator, sua “presença”, ser encarada como a própria encenação. Seria um adeus definitivo àquele que, pretensiosamente, diz que sua arte está na organização do olhar do outro?

Por fim, Iami exorciza o fantasma de Craig que me assombrou nesses poucos dias, após a minha expectação da obra do Grupo Caixa do Elefante, através de uma performance cênica assombrosa. Desse modo, desejo que todos os atores baianos sejam assombrados pelo útero e umbigo de Iami. Aceitem isso como sinceros votos de felicidade.

 

____________________________________________

[1] Do grego fazer arte.

[2] Teatro pautado na construção e composição de personagens por meio de ações físicas.

processo. Não é à toa que o seu solo estreado em 2000, chama-se Umbigüidades.

No lugar que se situam os dois solos, que, estritamente, tratam da trajetória e do processo de criação da atriz; solos que hoje poderíamos chamar de “demonstrações de trabalho” ou “aulas espetáculo”, é importante frisar que criticar Umbigüidades e Ulteridades é criticar o ethos artístico de Iami. Afinal é alguém que expõe seu umbigo e seu útero. Digo isso, pois o grau de exposição empreendido pela atriz é algo que poucas vezes se viu ou se verá num teatro de criação ou construção de personagens.

Lendo as críticas sobre Umbigüidades expostas do foyer do Teatro Martin Gonçalves, é visível que nomes como Marcos Uzel e, sim, Barbara Heliodora (que achou que a peça não funcionava como espetáculo – devo concordar em algum aspecto), perderam a oportunidade de criar um pensamento, a partir de suas críticas, sobre a poiesis de Iami, sobre esse ethos, que, quem sabe, poderia provocar reverberações para o “teatro do futuro” no território da Bahia. Tudo bem, concordo que o crítico de jornal tem que ser claro e sintético para com o seu leitor. Não obstante, a crítica deve ser, acima de tudo, para a artista.

 

Umbigüidades se configura como um resultado prático da dissertação de Iami Rebouças. O solo, que teve a sua estreia em 2000, relata seu processo de 20 anos de investigação vocal, mais especificamente na criações de personagens a partir da voz. De modo óbvio, esse caminho a partir da voz não restringe o corpo como um todo. Logo, e é até desnecessário dizer, a atriz pensa a voz como corpo e vice-e-versa. Entretanto, parece escolher a voz como arranque de seu processo de construção. A partir de um mosaico de personagens criados por Iami em espetáculos clássicos do Teatro Baiano, a atriz nos apresenta, sistematicamente, o seu engenhoso processo poético. Vestindo-se como uma espécie de Ricardo III shakespeariano, Iami diz o que irá fazer e faz diante de nossos olhos. Essas vigilâncias, vistas pela Heliodora como um didatismo descomedido, não impede o assombro quando surgem as personagens. O inverso de uma estética do estranhamento, afastar de quem assiste a ilusão para aproximá-lo da própria ilusão. Mas o que se constata em Umbigüidades são dois pontos importantíssimos, apresentados em dois caminhos, o técnico e o ético.

Os grandes pensadores da música estão aí provar que os sons são capazes de provocar nossos organismos de maneira fatalmente sensorial. Diria um Smetak, “capaz de verticalizar a experiência do corpo”. Iami entende isso quando se inquieta com a voz; melhor, com a sua voz. Para além da ideia de composição, que pode incidir numa voz para determinada personagem, deverá existir o entendimento de que a voz é a probabilidade de vibração e extensão, o que pode ligar um número significativo de corpos dentro de uma experiência estética. Aqui não há uma escravidão da palavra, mas, pelo menos no caso de Umbigüidades, um estudo de seu sentido. Ou seja, no processo da atriz não há uma voz escrava pela palavra, mas a palavra que é escravizada pelas pujanças vocais, o som. Eis o caminho técnico que, embora possa parecer pequeno, talvez, se analisado pelos críticos da época, livraria as artes cênicas baianas de uma servidão à interpretação das palavras. Coisa que ainda é crônica no Teatro Baiano, e isso é louco.  Já o elemento ético, apontado por Iami em Umbigüidades, é o inferno que segue o córrego para desaguar em Ulteridades.

C R Í T I C A

Rebate à crítica "Umbigo e Útero" de Diego Pinheiro

Por Iami Rebouças

Diego,

Eu me reconheço e me desconheço em muito do que falam sobre o meu trabalho de atriz. Não porque discorde do que é dito, apenas porque jamais poderei me ver em cena. Mas quando sou eu a espectadora e um ator em cena me faz vibrar, eu desejo provocar o mesmo nos meus espectadores. 

Meu umbigo é a minha ligação com a matriz e o meu útero é o potencialmente gerador. Conjugar o verbo hipocrinestai é sempre, no meu entender, um jogo de espelhos. Eu sou grata aos meus mestres, porque a transmissão do conhecimento é um grande ato de generosidade. Sou grata aos diretores e professores que me puseram para atuar, mas

Os dois solos surgiram de um permanente diálogo com os espectadores, uma vez que eu optei por não ser dirigida. Isso me fez crescer muito como artista, aprender a lidar com as minhas inseguranças e a fazer escolhas. Sinto que o caminho que escolhi para o meu trajeto como pesquisadora foi mais trabalhoso, mas me deu bons frutos. O desafio de encenar dois trabalhos acadêmicos fez de mim uma defensora da prática como produtora de conhecimento, o que deve ser aceito pela Academia como legítimo. Lendo a crítica que você escreveu tenho uma sensação tão boa de reconhecimento e fico feliz que eu tenha conseguido tocar pessoas com a minha arte. 

os meus maiores mestres ainda são os atores. Eu sou fascinada pelos atores e sempre, quando um desses "seres imaginários" me encanta, eu bebo dessa fonte. O teatro lida com o paradoxo do ser e não ser. Estar dentro e estar fora é a condição do ator em geral e da atriz em questão.

 

Esses dois solos somente se tornaram possíveis como resultados de pesquisas acadêmicas. Eu tinha preconceito com a palavra "performer". Estou assimilando paulatinamente essa minha nova condição, uma vez que me atribuem o "verbete". Como a palavra se traduz como desempenho eu aceito a alcunha. É o meu objeto de pesquisa. O desempenho em teatro como discurso, com o seu ethos, pathos e, claro, o seu logos.

R E B A T E

Por Bárbara Pessoa

Difícil começar a escrever sobre um texto cujo autor se desconhece. Sobretudo, se o texto é uma crítica e, por isso, deva trazer em si um senso de responsabilidade e de ética em relação à obra criticada e seu autor. O anonimato, desresponsabilizando o crítico, por ser desconhecido, invalida, deslegitima a escrita? Fiquei me perguntando. Aqui, refiro-me a @a_eleodora, perfil criado, anonimamente, na plataforma Instagram e que, há mais ou menos um mês, tece críticas sobre espetáculos teatrais em Salvador: “O insta da rota baiana teatral. Uma homenagem a Bárbara Heliodora. Não são obrigados a concordar. Não comento besteirol.”, assim se define x desconhecidx autor/a. Prossigamos.

No início deste mês, a_eleodora escreveu, em sua página, sobre o espetáculo Narcissus, ao qual fui assistir em dia de última apresentação. A performance corporal, na primeira cena, do ator Danilo Cairo, somada à ideia trazida, inicialmente, de que todo rio treme quando vai desaguar no mar, pois, por não querer deixar de ser rio, não entende que o processo, na verdade, é de tornar-se mar, muito me alegraram e, entusiasmada, adentrei no universo da obra.

a_eleodora inicia sua crítica explicando que Narcissus aborda “as diversas facetas do narciso contemplado no século atual”. Partindo dessa ideia, e acreditando que tal abordagem vem em tom de crítica, pretendendo gerar uma possível reflexão, por parte de quem assiste, chamou-me atenção o comportamento do público presente que parecia apenas divertir-se com aquilo que a peça apontava como sendo alguns dos equívocos de nossa rotina contemporânea: a vaidade excessiva, a futilidade, a reverência ao nada. Estaria aquele público em situação privilegiada em relação a uma crítica generalizada direcionada a um modo de vida predominante na sociedade atual? Ou o espelho, do narciso, não refletiu o suficiente para que a plateia se enxergasse como sendo o próprio objeto da análise apresentada? Nesse sentido, devo concordar com a_eleodora quando diz que o diálogo com o público não é bom. Não por haver algo de conteúdo incompreensível diante de nossos olhos (como sugere a_eleodora no final de sua crítica), mas porque há algum ruído, na trama estabelecida entre narrativa e plateia, que, nesse sentido, faz com que esta se julgue sujeito da risada, quando, na verdade, é o objeto mesmo. E não é o caso de rir de si mesmo, rir de nervoso, rir no aprendizado, rir-se, mas, pareceu-me, simplesmente,o riso de quem não se enxerga no que está sendo formulado, de quem não se implica ou, no caso, não foi implicado.

a_eleodora atribui esse ruído à ausência de uma história sendo contada, pois, segundo elx, “cenas jogadas aleatoriamente, mesmo quando executadas por bons atores, acabam impedindo uma compreensão melhor, afastando-nos.” E conclui o ponto de vista, ponderando: “Não quero entrar no mérito de outras divisões teatrais categóricas, mas, ao menos, converse melhor com o público.”

Independente do que ou de quais seja/m, exatamente, essas outras “divisões teatrais categóricas”, a afirmação de que possuem méritos em suas escolhas cênicas não lineares, ou seja, diversas daquela que “conta uma história”, defendida pelo/a autor/a da crítica de que aqui trato, já dissolve a própria consideração de que é a falta de história que afasta a plateia. Pela própria menção aos méritos, ainda que de maneira não aprofundada, dessas outras formas de se fazer teatro, pode-se inferir que é, sim, possível que se joguem cenas ao público e, ao mesmo tempo, se alcancem os tais méritos. Se Narcissus não os

Mais do que não haver “nada de errado em experimentar”, como autoriza a_eleodora, acredito que a criação deve mesmo estar no campo da experimentação para que, de fato, algo aconteça no domínio artístico. Desperdício é falar do que já está dito.

As ideias, é preciso fabricá-las.

obteve, não foi pelo modo como foi encenado, já que este modo pode funcionar, mas talvez pelo próprio o que foi encenado. O tema abordado no espetáculo terá sido mesmo uma ideia boa, como afirmou a_eleodora no início de seu texto? Aliás, o que é mesmo ter uma ideia? Das muitas respostas a que se pode chegar, a mim agrada o pensamento de que é preciso que haja necessidade para que algo seja produzido, criado, inventado. Produção, criação, invenção de algo que não existe, mas que precisa existir. Talvez, a reflexão sobre o afastamento entre Narcissus e seu público esteja nesse campo, o da própria criação. Logo em seguida, e como conclusão do pensamento anterior, a_eleodora faz um apelo aos criadores em teatro: “[...] converse melhor com o público. Faça-o voltar, espalhar por aí. Simplesmente, transforme.” Não consigo dissociar tal convocação da argumentação que teci anteriormente. Ora, a transformação, seja no campo individual, seja na esfera coletiva, e a evidente relação entre os dois, só podem se dar a partir da experimentação de algo novo, o novo transformador. E, quando trago essa indicação, é ainda para tratar da relação da obra e de sua recepção e também para corroborar a exposição que fiz algumas linhas acima. Mais do que não haver “nada de errado em experimentar”, como autoriza a_eleodora, acredito que a criação deve mesmo estar no campo da experimentação para que, de fato, algo aconteça no domínio artístico. Desperdício é falar do que já está dito.

Da perspectiva de uma não atriz, gosto sempre de relatar meu encantamento com a entrega de certos atores. Sempre me pego sentindo medo no lugar da/o atriz/ator: medo de proferir certa fala, de expressar algum gesto, de movimentar-se, de dar a cara a tapa. E reconheço, na atuação de Danilo, a mesma entrega e expressão corporal bem executada referidas por a_eleodora em sua crítica. É bom ver alguém lhe mostrando algo que você se julga incapaz de fazer. O outro como um espelho de possibilidades e caminhos que você não experimentou. É como um segredo à vista, mas, ainda assim, não desvelado. É também um jogo entre imagem e auto imagem.

Senti falta de ter enxergado, em Narcissus, a relação entre o velho e o moço, comentada por a_eleodora. A crítica no Instagram refere-se a esses dois extremos como algo que “poderiam ser [mais bem] aproveitados, se devidamente contextualizados.” Concordo que a exploração desse campo poderia ser um bom caminho para tratar do narcisismo, afinal, o Tempo, indiferente a qualquer amor pela própria imagem e, dessa perspectiva desapegada, para tornar-se visível, “vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica”, como nos diz Proust em À la recherche du temps perdu.

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

R I Z O M A

E N C O N T R O

Quando morei no Campo Grande escrevi uma peça que, até hoje, só uma pessoa chegou a conferir. Não tenho os critérios para saber se ela funcionaria ou não nos palcos, e confesso que nunca me esforcei muito para vê-la encenada, mas me diverti bastante escrevendo. O Campo Grande é meu lugar favorito em Salvador. É o olho do furacão, o centro gravitacional da cultura baiana, o lugar para onde tudo converge, o centro de um círculo onde estão os melhores museus, salas de concerto, espaços de exposições, cinemas, teatros. É em suas ruas onde, para o bem e para o mal, as notícias acontecem. Tenho para mim que uma conversa sem compromisso se desenrola com mais fluidez se na Praça do Campo Grande. E mesmo com tudo isso, o que mais frequentei lá foi exatamente a silenciosa biblioteca da Escola de Teatro.

Ironicamente, ali encontrei o romance Teatro, de Bernardo Carvalho, enquanto a peça Os Físicos, de Dürrenmatt, ficava no Instituto de Física. Também foi lá onde peguei quase todos os volumes da coleção Teatro Vivo, aquela dos charmosos livrinhos vermelho-sangue (dela só não li Rostand, Brecht, Weiss, Strindberg, Camus, e Oswald). A vantagem de seguir uma coleção é que você acaba descobrindo muita coisa que provavelmente não conheceria de outra forma. O único critério que usei para ter lido dramaturgos como Genet, Wilder e Pinter, de quem pouco sabia, foi por estarem lá. Ainda mantenho a intenção de ler a coleção inteira.

Além das edições em si, também gosto muito daquelas maravilhosas introduções, abarrotadas com fotos de montagens de cada peça. Careço da imaginação visual dessa gente do teatro. Não deixo de me impressionar toda vez que vou a uma peça, mesmo que o texto seja uma porcaria. Oscar Wilde, que bem poderia estar na coleção, escreveu um ensaio só sobre as vestes em Shakespeare, você pode imaginar? Entendi pouca coisa, claro; sou péssimo com nomes de roupas. Mas o que quero salientar é que sempre acho tudo muito bonito, mesmo com pouco conhecimento técnico – aquele deslumbramento pueril do ignorante.

 

Ainda assim, comparando as produções atuais com aquelas das fotos, creio que anda faltando algo nas recentes encenações de peças clássicas. Todo mundo sabe o que é clássico, mas tem uma galera que insiste em querer uma conceituação para tudo, então vá lá, consideremos aqui a definição mais divertida, de Mark Twain: clássico é uma obra que ninguém quer ler, mas todos querem já ter lido. Sinto falta de produções de clássicos que nos apresentem o trabalho de um dramaturgo, e não uma visão personalíssima de um diretor. Nos educamos na literatura, no cinema, na música, com as obras tais como nos foram apresentadas por seus criadores. Aí alguém vem me falar de Pierre Menard e não sei o que, mas sabe que o Guerra e Paz é mesmo aquilo, apesar de ser uma tradução; que malgrado a experiência ser outra, o Ladrões de Bicicleta do DVD é o mesmo do cinema; que Beethoven em MP3 continua sendo Beethoven. Já o texto de uma peça de teatro, ainda que passível à leitura – também à tradução, à filmagem e à gravação em áudio –, depende dessa visão particular de uma equipe.

Nunca tive a chance de ver nos palcos os meus clássicos favoritos – Longa Jornada Noite Adentro, Um Inimigo do Povo, Esperando Godot e Noite de Reis. São peças apenas lidas; infelizmente, não são exceção. Entretanto, já vi um incompreensível Shakespeare com soul ao vivo, um Tchekhov em cadeiras de escritório, um colorido Nelson com furadeiras simbolizando um estupro coletivo e um Miller Dogma 95, apresentações

A visão personalíssima do clássico

Por Paulo Raviere

que me atraíram principalmente por causa dos dramaturgos. Note que elas fazem total sentido se você conhece o enredo, se já leu, se já viu no cinema – e muitas vezes são ótimas! –; mas pouco servem como apresentação da obra. Em minha parca experiência como frequentador de teatros, as únicas exceções foram um Molière (essa, tão fiel – sem aspas ou conceitos agora – que foi em francês) e um Beckett, cuja mera escolha indica uma visão personalíssima – uma pena que não foi o Godot.

 

E, sim, sei que as turmas de estudantes e profissionais do teatro devem estar enfastiados de tanto estudar, ensinar, encenar os mesmos clássicos por gerações, e querem dar seu toque, talvez escrever suas próprias obras; mas existe algo de errado em querer ver, sei lá, Édipo como rei de Tebas, em vez de um chefe do tráfico de heroína, Otelo como o violento mouro de Veneza, no lugar de um adolescente americano? Tampouco discordo de Barthes, que afirmou naquele famoso ensainho de Mitologias que o cabelo de cada Cleópatra vai seguir a moda da época em que ela for representada, e por fiel que tente ser, jamais será a Cleópatra histórica, ela que não pudemos conhecer por fotografias. Entretanto, sempre sabemos que se trata de Cleópatra quando a vimos, mesmo aquela cássia eller do seriado Roma.

O mesmo não é necessariamente válido para as novas encenações de peças antigas. Imagino que houve uma época em que elas eram muito parecidas e repetitivas, até que alguém resolveu adaptar o texto ao um contexto contemporâneo – porque todo mundo já sabia do que se tratava. Nada mais natural. Qualquer dono de restaurante a quilo sabe que ninguém quer almoçar o mesmo arroz com bife todos os dias.

A questão é que, hoje em dia, nem todo mundo que vai ao teatro ver um clássico conhece a peça, nem deveria precisar. A transgressão se transformou em norma. Ninguém encena mais os clássicos como clássicos. Não de maneira consistente, não com frequência. Cadê a trupe, o grupo, o diretor especializado em mostrar as peças de maneira convencional? Onde está nosso Laurence Olivier, nosso Zeffirelli? Se há, sinceramente desconheço. Macbeth com LSD pode ser muito massa, mas também quero um Macbeth com coroa dourada na cabeça; A Mandrágora com trajes bufões, A Casa de Bonecas numa mansão antiga, A Importância de ser Ernesto com sanduiches de pepino de verdade. As produções personalíssimas são interessantes e estranhas – mas precisamos também sentir aquele interesse e estranhamento do primeiro contato com o tradicional.

Os atores estão enfastiados, mas as gerações se amontoam e o mundo é inédito para muita gente – há um público de teatro que nunca viu uma produção que não tentasse ser inovadora. Não defendo que sejam abolidas, mas que coexistam com produções mais usuais, antiquadas mesmo, até como meio de formação de um espectador mais eclético e cosmopolita, que seja capaz de contrastar o antigo com o novo, de entendê-los melhor. Uma produção tradicional de um clássico, dadas as condições, seria um ato revolucionário. Creio existir espaço para ambas. Já faz algum tempo que saí do Campo Grande, que saí de Salvador. Entretanto, pelo que leio nos textos desta mesma revista, pelo que converso com frequentadores de teatro, esta lacuna continua. Se produzissem Longa Jornada Noite Adentro eu seria capaz de percorrer os 450 quilômetros que me separam da capital só para vê-la. Enfim, que este texto seja lido não como um apelo, mas como uma sugestão.

E N S A I O

Considerando que a reverberação da crítica na nossa cidade ainda oscila entre o silêncio rancoroso e a histeria biliosa, decidimos escrever este humilde manual dividido em duas partes. Ele deverá ajudar gestores e artistas a portar-se frente a objeto tão estranho. Com esta iniciativa esperamos evitar choques traumáticos, infartos, hemorróidas ou qualquer dessas enfermidades psicossomáticas demasiado frequentes em classe tão vulnerável.

 

I. Se vossa senhoria é gestor público (federal, estadual ou municipal):

 

1. A primeira coisa que se deve fazer quando se é um gestor público é entender vosso lugar entre os demais cidadãos. Se vossa senhoria é um gestor público e continua sendo artista, por hora deverá agir como se realmente estivesse ocupando um cargo provisório, a bem dizer, sendo delegado pela sociedade civil a administrar temporariamente certas coisas públicas, neste caso, políticas culturais.

 

2. Munido desta humildade provisória de burocrata investido de poderes provisórios, deverá prezar pela escuta mais que pela fala, pela consideração mais que pela opinião. Há uma certa etiqueta bastante recomendável e cada vez mais rara, que consiste em tornar vossa figura mais respeitável que intimidadora, mais solícita que provocadora.

 

3. Cuidado com a emissão de opiniões em lugares públicos. Entendendo que o campo artístico de qualquer lugar é bastante restrito e afeito a fofocas e futricas, lembre-se sempre que as paredes tem ouvidos. Um artista é amigo de outro artista, que é amigo de outro. Quando estiver caminhando por corredores de teatro, bastidores, repartições e oficinas de cenografia, aconselha-se a quietude e, quando irreprimível, emissão de opiniões apenas a pessoas mais próximas, sempre a meia voz, para que outros não escutem. À sociedade não interessa saber o que pensa intimamente um gestor, a não ser quando tal opinião venha traduzida nesta ou naquela ação social.

4. Se houver uma iniciativa crítica na vossa cidade, e ainda mais, se esta for uma das únicas iniciativas críticas na vossa cidade, muito cuidado ao rotulá-la. Se por exemplo vossa senhoria for pego maldizendo algum colunista desta mesma iniciativa por “excessivo intelectualismo”, tal opinião impensada poderá render-lhe alguns problemas. Principalmente porque o que se espera de uma pessoa pública é que seja minimamente afeita à intelectualidade. Deve ser curiosa, estudiosa, pesquisadora, e se possível, sábia; e mesmo que não possua nenhuma dessas qualidades, posar como se as tivesse é mais recomendável que recusá-las como sendo defeito dos outros.

 

5. Se o gestor público caçoa da intelectualidade alheia pode querer dizer que este indivíduo despreza tal qualidade em si mesmo, o que projetará visões nada agradáveis sobre vosso caráter, e em alguns casos poderá colocar em xeque vossa orientação política frente a opinião popular. Por exemplo, se vossa senhoria, como artista, prefere tal tipo de arte àquela, pode ser que as pessoas comecem a pensar que, como burocrata contratado provisoriamente, esteja usando o cargo para promover vossas próprias convicções estético-políticas, amigos e artistas afins. E se a esta consideração soma-se o ter ouvido falar do vosso desprezo à intelectualidade, pode ser que entendam que vossa senhoria esteja usando o cargo para executar um programa político de regeneração de uma arte caduca, que aliás vossa senhoria deve praticar há muito e de bom grado. E se trabalha para um partido reacionário, deverá triplicar o cuidado — e mesmo assim, nunca será o bastante.

Por Daniel Guerra

10 dicas de como lidar com a Crítica

Parte I - Gestores Públicos

Em breve, “10 dicas de como lidar com a Crítica — Parte II: Artistas”

6. Deve-se fazer um esforço em compreender a importância da crítica em qualquer campo de produção, mesmo que vossa senhoria, intimamente, não goste dela ou nunca tenha lido um livro sequer. Falar de uma iniciativa crítica, ainda mais quando esta é formada por “uma juventude inquieta e provocadora”, exige muito respeito e cuidado.

 

7. A priori, para uma pessoa pública, toda crítica deverá ser tida como naturalmente boa. Toda crítica deverá ser boa porque todas são iniciativas do pensamento de um povo em dado momento e em dado lugar, além de constituir um dispositivo de fomento e difusão cultural, sendo portanto, fruto direto da própria concepção de cultura, que por sua vez é ou deveria ser objeto do vosso trabalho e pensamento diários.

8. A sociedade civil pode e deve falar tudo e criticar tudo, inclusive a vossa gestão. A opinião é livre para os demais cidadãos, e restrita para um burocrata em cargo representativo. O gestor cultural pode e deve falar apenas algumas coisas, e criticar apenas por meio de ações válidas e visíveis para a sociedade. Suas orientações políticas devem ser claras, de forma a possibilitar debate e embate. Mas não se recomenda que vossa senhoria exponha demais suas opiniões estéticas em redes sociais, pois tal demonstração gratuita de si mesmo só tende a revelar uma egolatria superior à desejada, e preferência de certos gostos em detrimento de outros. Lembrar-se sempre: a egolatria deve ser um luxo reservado apenas aos artistas, que aliás o fazem sempre e de bom grado, com maior ou menor elegância.

 

9. No entanto, se fermenta em seus interiores uma opinião muito bem formulada e que pense ser de extrema importância para os concidadãos, deverá expressá-la da melhor maneira possível, elegante e — se possível — alegremente, sem nunca fazê-lo por meio de indiretas e provocações. O ressentimento, a arrogância, a prepotência e as indiretas devem ser privilégios optativos, circunscritos apenas a não-burocratas de toda espécie, incluindo aí artistas, e, é claro, críticos.

 

10. Por fim: se um artista mui considerado por vossa senhoria reclamar da vossa gestão publicamente, de forma que outros escutem o chamado para o debate e compareçam, vossa senhoria deverá comparecer mais escutando que falando, como exposto no ponto 2. Nunca deverá terminar a conversa convidando o artista em questão para uma reunião a portas fechadas — dado que em muitas cidades do nosso país a política de balcão ainda é uma praga difícil de exterminar — o que poderia soar como se vossa senhoria estivesse com nostalgia da época em que tudo se resolvia com um aperto de mãos entre homens cordiais.

 

Em breve, “10 dicas de como lidar com a Crítica — Parte II: Artistas”

T R E T A

Piso as botas no pátio do Goethe-Institut, peço um quiche de alho-poró, escolho uma mesa, olho ao redor e me sinto bem cool. Sou o artista solitário. O crítico. Meu olhar é arguto e sagaz, vim de banho tomado, estou pronto para o trabalho.

Vou ao banheiro, e abrindo a porta encontro-me com um senhor que deve ter lá seus sessenta anos se olhando no espelho. Jogados de qualquer jeito na pia encontram-se uma sacolinha de papel da Óptica Opção e um jornal aberto num jogo de palavras cruzadas recém terminado. Nos encaramos de soslaio no espelho e estamos aqui para ver “Narcissus", novo espetáculo do grupo Toca de Teatro. Decidimos finalmente: ele vai à latrina, e eu vou ao mictório.

 

Na bilheteria tinham me dado um programa de impressão e dobragem cuidadosas, o qual agora, voltando ao pátio, abro e começo a fruir como se fosse o prelúdio do que vem por aí, contrariando a opinião daquele professor universitário que insistia em nos convencer de que uma “verdadeira obra de arte” prescindia de programas e demais explicações.

Discordando mentalmente dele pela milésima vez em dez anos, desdobro o cartão e topo com o ator Danilo Cairo fotografado em várias posições dentro de um rio. Me incomoda bastante o shortinho cor-da-pele para esconder a nudez, e, já contrariando o pensamento anterior, faço votos de que isso não seja um prelúdio do que vem por aí.

 

Vou seguindo o rebanho de espectadores para dentro do teatro e Rui Manthur recebe cada um de nós com um sorriso no rosto, o que me acende muitas questões. Ao sentar na poltrona (sempre junto aos corredores, por questões práticas e supersticiosas) lembro que vivi situação similar em “Egotrip”, quando fomos recebidos com apertos de mão e abraços calorosos, estranhos e desconhecidos, distribuídos por uma equipe de atores ou comissários de bordo. Não sei se isso está virando um novo padrão nos teatros; só sei que me lembra os bonecões dos parques de diversão, ursos, periquitos e mickeys que nos dão aquele último estímulo de afeto antes que desistamos de entrar com nossos primos demoníacos no Túnel da Morte.

 

Pausa solene, porque gosto dessa parte: em qualquer peça feita num teatro, com suas luzes e terceiros sinais, há uma força incomensurável entre o momento da espera e o momento da peça começar. Há aquele instante de luz apagando, que, como sempre imagino, deve ser o equivalente do corpo e da consciência fazendo o mesmo processo dentro de nós. Sempre pensei que essa tensão era tão imensa que caberia a qualquer espetáculo apenas continuar ou contrariar esse sentimento de começo que só o apagar progressivo da luz de um teatro pode causar.

 

Lá no fundo vejo Danilo deitado de lado formando uma bela figura, algo como um Nijinsky em “L'après-midi d'un faune", parado languidamente atrás de um voal. A luz macia, a música quase Debussy, o teatro do Goethe, a digestão do quiche, o ar-condicionado, tudo isso me faz pensar: como sou virtuoso, como somos naturalmente bons por estarmos aqui fruindo Arte, fruindo coisas Clássicas, fruindo coisas Belas. Tem muito tempo que não sou tomado por isso. No entanto.

 

O tempo vai passando e o corpo dançarino dá lugar a uma palavra recitativa que me arremessa das águas fundas do começo a mil léguas de distância do teatro. Súbito há uma quebra; do clássico se vai ao contemporâneo em apenas uma mudança de música. Danilo vai vestindo um colete de lantejoulas azuis e óculos roxos redondos, tudo isso pontuado por música eletrônica, fazendo gestos que me lembram a coreô típica de mágicos de araque.

Por Daniel Guerra

Narciso's Selfie

Sobre “Narcissus”, do grupo Toca de Teatro

Agora ele começa a falar diretamente conosco, olhando-nos no fundo dos olhos como Narciso devia ter olhado para seu reflexo na superfície do lago. Mas assim como no diálogo do Reflexo com Narciso, entre mim e ele, naquele momento de encontro visual, não há muita possibilidade de escuta. Sinto que ele está arremessado nas profundezas de sua representação, assim como eu, nas profundezas das minhas.

Ele sobe o corredor ao meu lado, e agora pressinto que vamos ter outro tipo de conexão. Ele já está com o pau-de-selfie apontado para nós e vem com um troféu Braskem na mão. Ele me pede que segure a estatueta e sentencia, tirando sarro: “É seu sonho né?”. Dou um sorriso encabulado e generoso de espectador cumprindo sua marca, ao que a platéia gosta e sorri a vontade. Fico meio abobalhado com aquele prêmio na mão e ele desce a escadinha de volta ao fundo do lago que se tornou o palco.

Voltamos a nos perder. Intelectualmente, percebo que testemunho uma representação das várias facetas do mito de Narciso, algo como uma mitologia comparada, que aliás, termina sempre juntando coisas que intimamente não gostariam de figurar no mesmo balaio, se tivessem escolha.

 

Danilo sai de cena e deixa Manthur fazendo e dizendo mais algumas coisas ali no palco, para logo depois retornar, agora com um vestido laranja translúcido, segurando uma caixa de papelão bastante trivial e entoando uma vozinha num registro que eu reconheço desde os tempos em que fez o Macunaíma de Hebe Alves. Soa uma musiquinha bem besta ao fundo, daquelas que se escuta em filmes pretensiosamente sentimentais, e ele fala pateticamente pra nós. Aqui alguma coisa me fisga pra fora do meu lago. Não sei o que é. Talvez seja a soma de todos esses elementos toscos na minha frente, a musiquinha, a caixinha a la Romero Britto, a voz forçada, o recurso do autobiográfico como dispositivo contemporâníssimo para fisgar os corações de espectadores sempre neuróticos demais. Mas não. Talvez sejam os olhos de Danilo mesmo, nos quais vejo um brilho estranho, de quem verdadeiramente acredita no teatro como forma de existir. Que doido isso. Que doido voltar a ver isso em alguém. Que doido entrever esse momento em meio a águas tão turvas. De repente aquela vozinha tosca me apreende e me arremessa às profundezas de minha própria existência. O tosco nos uniu. É como eu sempre digo: do tosco viemos, ao tosco voltaremos.

 

Esse momento dura pouco. Mais algumas palavras, movimentos dançados, críticas-diretas-à-sociedade-narcisista-contemporânea, e retorno sem querer meu olhar ao troféu Braskem, ao Michael Jackson de latão dourado deitado na cadeira vaga ao meu lado, que disputa espaço com a sacolinha de papel da Óptica Opção do senhor que encontrei no banheiro. Seus olhos parecem gostar muito do que veem. Passo o resto do espetáculo tentando decifrar aquela mirada, olhando pra lá e pra cá como quem vê uma partida de ping-pong entre o senhor e o espetáculo, tentando capturar o momento da ponte. Seu rosto revela uma alegriazinha não-específica, como quem diz: “Como sou virtuoso, como somos naturalmente bons por estarmos aqui fruindo Arte, fruindo coisas Clássicas, fruindo coisas Belas. Tem muito tempo que não sou tomado por isso.”

S E L F I E

Na cola de Márcio Meirelles

PARTE I

Por Igor de Albuquerque

Apesar de toda a sombra lançada por seus mistérios, Salvador continua sendo uma cidade clara. Aqui, óculos escuros são imprescindíveis para evitar uma velhice precoce. No verão –   leia-se mais da metade do ano –, os seres que enfrentam as tardes e manhãs sob o sol vão apertar o rosto sempre que deixarem para trás espaços protegidos da luz natural. A parte do Passeio Público reservada ao teatro Vila Velha é um pedaço dessa realidade reluzente: paredes brancas, edificações baixas, céu aberto e a baía de Todos-os-Santos ao fundo. Tornando ainda mais eloquente esse festim da claridade, das nove à uma, os alunos da Universidade Livre refletem o dia em suas vestes brancas, exigência do curso. Márcio Meirelles, que criou a   Livre, há muito tempo não usa outra cor: calça, camisa e havaianas brancas. A cueca não cheguei a ver, mas não é difícil imaginar a cor. Eu, inclusive, também pus minhas roupas mais alvas nas vezes em que estive por lá.

 

A atriz Maria Clara Falcão explica o porquê do branco: “É mais para padronizar mesmo. Escolher uma cor só. Imagina se alguém vem de verde, ou outro tom que destaque, e a pessoa vai fazer um monólogo, por exemplo. Ela acaba se sobressaindo, né?! Tem que ficar todo mundo em igualdade. Mas poderia ser uma outra cor que padronizasse também”. Maria Clara é natural Riachão do Jacuípe. Veio para a capital em 2011 para cursar engenharia civil, mas depois de se formar decidiu trocar o canteiro de obras pelo tablado. “No início, tentei conciliar a engenharia e o teatro, mas não deu muito certo. Eu tava perdendo as oportunidades que a Livre e o Vila oferecem, não tava sendo proveitoso. Aí joguei pra cima”.

 

A Livre parece mesmo tomar muito tempo, pois Fernanda Veiga Mota, que fez parte da primeira turma formada pelo programa, segue na mesma toada: “Eu acho que toda formação de ator é uma experiência difícil, e a Livre é um programa especial. Ela mexe com o emocional e com o problema do limite. Durante esses três anos foi muito difícil porque eu tive que negociar o tempo inteiro sobre até onde eu estaria disponível para o projeto, porque se você deixar, ele suga todo o tempo que você tem”. No caso de Fernanda, não foi possível conciliar uma residência com a apresentação de “Através do espelho e o que Alice por lá” no início de 2016. A atriz de 30 anos talvez não obtenha o certificado do curso, “pois é como se ela não tivesse apresentado o TCC em uma graduação”, disse Márcio Meirelles andando com passos rápidos na calçada do prédio de Ivete Sangalo.

 

Além dos ensaios, aulas e demais atividades desenvolvidas pela manhã, à tarde a Universidade Livre tem um calendário intenso de oficinas e cursos abertos ao público. Os alunos podem também trabalhar no próprio Vila Velha para complementar o pagamento da mensalidade de 350 reais. Márcio Meirelles decidiu implantar o sistema de moeda social de modo que as horas trabalhadas na bilheteria, produção, técnica etc. se convertam em abatimentos no fim do mês. Resumindo, não é raro ver alunos que chegam no teatro às nove da manhã e só saem de lá quando o espetáculo em cartaz termina.


Atualmente, os vinte e três estudantes da livre estão se preparando para viver a história mais famosa de Verona. Romeu e Julieta marca, a um só tempo, a estreia de uns e a despedida de outros, pois a encenação da peça será a primeira apresentação dos que entraram este ano na Livre, mas também será a terceira e última dos que ingressaram em 2014. O processo de montagem é complexo e bem di-

vidido, como o próprio texto de Shakespeare. Márcio convidou uma ruma de gente para ajudá-lo no processo. A professora da UFBA especializada em Shakespeare Elizabeth Ramos foi convidada para falar sobre o autor e sobre tradução; Joana Lavallé, da Unirio, deu uma aula sobre o espaço nas artes cênicas e sobre o teatro elisabetano; Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, colaborou com um curso de uma semana. Mas esses são apenas alguns poucos exemplos. Márcio explica que Universidade Livre não é uma iniciativa de um homem só dando um sorriso maroto: “Até agora são mais de oitenta colaboradores”.

 

Romeu e Julieta será apresentada ao público em dezembro, mas como a montagem do espetáculo se faz na lógica do work in progress, quem estiver curioso para ver a quantas anda o trabalho pode acompanhar os experimentos do grupo. Assim, os familiares veem como estão gastando seu dinheiro e os amigos dos envolvidos também se divertem.

A manhã de 23 de agosto desenhou poucas nuvens no céu. Era o dia do quarto experimento de Romeu e Julieta e os atores estavam ansiosos para iniciar a caminhada que partiria do passeio público em direção à praça do Campo Grande. Os Montecchios trajavam pijamas e os Capuletos usaram tutus vermelhos e brancos. A ideia era fazer o primeiro ato peça no caos da urbis: as duas famílias se insultariam mutuamente até chegar debaixo do pé do caboclo, onde, por meio de improvisos, recriariam as texturas da briga que abre a tragédia. Havia muita tensão e energia no ar – nada que chegue a surpreender considerando a idade dos atores, mas Márcio deu a recomendação antes do fight começar: “o exercício é ficar em silêncio e ouvir todos os sons da rua”. Então, atravessado o portão do Vila Velha, o grupo se dispersou entre as duas calçadas que ladeiam a Avenida Sete; ofensas e palavrões começaram a voar sobre os carros apressados naquele trecho de velocidade que estanca no sinal vermelho do Hotel da Bahia.

 

Nem todos os atores participavam da cena propriamente dita, pois alguns alunos assumiram a parte técnica do negócio: uns distribuíam queijo com goiabada –  Romeu e Julieta – espetados num palito de plástico para os transeuntes, outros entregavam flyers com informações sobre o espetáculo. No limite da publicidade e da poesia pândega. Havia ainda uma equipe de audiovisual registrando a ação. O fato mais curioso desse misto de ensaio aberto e performance de rua aconteceu no final do primeiro ato. Márcio Meirelles e seus alunos se reuniram em torno de alguns espectadores e filmaram suas opiniões a respeito do que tinham acabado de ver. Diante das lentes um jovem skatista se materializou: Raphael Albuquerque, quinze anos de idade, o crítico secundarista vestia a farda do colégio Odorico Tavares. “Parece que vocês estão brincando com  a gente. Não tem peso e força. Vocês usaram pouco o corpo. Está banal. Acho que seria bom pensar em algo mais expressionista. Tem que fazer com a mesma raiva que a gente tem quando leva um corno de nossa namorada”. Os olhos decepcionados dos atores e da equipe mal podiam acreditar.

 

Na volta, performaram mais uma vez o ato. Um ator (de saia e torso nu) chegou a abraçar um cachorro de rua ignorando o risco de ser mordido ou de pegar uma doença. Foi a última coisa a ser feita antes de voltarem para a sala de ensaio. Lá dentro, alguns atores reagiram à crítica do jovem Raphael ridicularizando-o através de uma imitação sarcástica. Para Márcio, porém, a intervenção daquele rapaz teve um outro significado: “Tinha mais teatro naquele menino do que em tudo o que a gente fez hoje”.

E N C O S T O

COLUNA ESPECIAL

Na Treta Daniel Guerra escreve um Manual, para que a relação entre certos gestores públicos e os novos críticos da velha cidade possam prosperar.

Diz que a indireta é um bem de uso exclusivo do povo. E do crítico também, claro.

Daniel também escreve uma Selfie a partir do espetáculo “Narcissus”, e reflete duas vezes ou mais o lago de Danilo Cairo. Joguinho de espelhos.

 

E, surpresa das surpresas, Igor de Albuquerque estreia a nossa nova Coluna Especial, o ENCOSTO! Aqui o colunista deverá investir-se do papel de jornalista investigativo, e munido de sua presença, um caderno e uma caneta, deverá “encostar” em algum processo feito recentemente na cidade, e escrever a partir disso uma matéria de mais fôlego sobre a produção teatral. O Primeiro Encosto será sobre o Vila Velha, a Universidade Livre, Márcio Meirelles, e mais especificamente, sobre o seu novo processo, “Romeu & Julieta”.

 

Devemos falar também que, ao decorrer do mês de setembro acompanhamos o FILTE - Festival Latino-americano de Teatro da Bahia, produzindo críticas imediatas, as quais anexamos num documento já disponível no site.

 

Agora arrombe nossas portas. Bem vindos de novo!

Ah, o número sete! Não nos levem a mal, caros amigos, mas aqui reservamos algumas surpresas pra vocês. Afinal, porque diabos o espectador ou o leitor deveriam sempre ficar nos seus lugares, como se diz naquele velho ditado: “o cliente sempre tem razão?”. Aqui vocês vão ter que labutar um pouquinho. Porque não? Joguemos todos os nossos chapéus lá em cima. Primeiramente, comam farinha, depois leiam a Barril! Aliás, mastiguem, transformem a Barril em farinha, depois vomitem tudo no meio da sala, no meio da cena, no meio das redes!

Tudo bem, calma.

 

Há sempre uma maneira de permanecer boiando na surface. Mas, aviso aos navegantes: quem quiser ir atrás de tesouros e peixes sinistros, não será em vão que entrará na deepweb dos meio-tons, das armadilhas, das coisinhas subliminares, das indiretas, das intrigas, da ginga e dos macetes acrobáticos. A crítica também deverá ser uma arte!

 

Já falamos em outro editorial da nossa eterna corda bamba, nosso fio da navalha: de um lado, o poço jornalístico da linguagem hashtag-papinha, de outro, o academicismo pueril, cristalizado entre o tradicionalismo birrento e o pós-tudismo super cool. Entre tudo isso nós, e é claro, vocês, ó coisa inaudita, massa misteriosa, intratável, poderosa, o público, o leitor!

Por exemplo: na Crítica apresentamos o olhar engajado de uma crítica com relação a um espetáculo. Ah, isso pode? Mas é claro que pode, contanto que se escrevam as pontes. Laís Machado foi ver “A Danação de Tristão e Isolda - Capítulo 1”, do Núcleo Viansatã de Teatro Ritual, e juntou análise estrutural com ecos do seu corpo (a)dentro. Ao que eles rebateram, fazendo eco ao eco.

Diego Pinheiro viu em Iami Rebouças uma performer, nos espetáculos “Umbigüidades” e “Ulteridades”, ao que ela responde, no seu Rebate: Claro, porquê não, uma performer! Ali vemos o olhar agudo do crítico e o verbo calmo de uma artesã dos tablados.

 

Raiça Bomfim, convidada a fazer um Reverbera, escolhe o espetáculo “El Agitador Vórtex”, apresentado durante o festival IC - Encontro de Artes, e, ativando sua Cris Blanco interior, joga com a tosqueira e atinge uma atmosfera brincante, cinematográfica, operística, irônica e Nouvelle Vague.

 

E então vem a Crítica da Crítica da vez, Bárbara Pessoa, criticando, creiam, um críticx anonimx de Instagram, tendo como pano de fundo o lago narcísico do espetáculo “Narcissus”, do grupo Toca de Teatro.

No Rizoma, Diego Pinheiro traça um gráfico ao estilo “Lula Culpado” (Relatório do MPF), em que insere o novo espetáculo do GDC (Grupo de Dança Contemporânea da UFBA), “Cuspe, Paetês e Lantejoulas” numa genealogia que convidará o leitor a ler e reler, ver e rever, em suma: suspeitar.

No Encontro, Daniel Guerra é recebido por Paula Lice na sua própria casa, para uma conversa delirante e agradável ao lado de samambaias e um cachorro hiperativo de nome Lino.

O Ensaio fica a cargo do escritor Paulo Raviere, que, convidado por nós, produziu um texto sobre o lugar dos clássicos no teatro, questão inusitada para o século em que vivemos, mas que deixa muitas perguntas sorrateiras ao pé da porta do leitor/artista/espectador.

 

editorial ed 7

V.1 n.7 2016

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