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Confissões de Mulheres de 30, atualmente em cartaz no Teatro Módulo, se configura como uma remontagem de uma peça que estreou em 1993 e que pretendia, como diz no próprio release, traçar um “perfil sociológico e bem-humorado das mulheres de 30”. A peça é dirigida por Fernando Gomes (diretor da primeira versão da peça) e adaptada por Domingos Oliveira.

 

Enquanto estrutura não surpreende. Atende ao padrão das peças ditas “comerciais” e “besteróis”, mas enquanto temática se apresenta como um desserviço ou poderia dizer ainda como um óvni deslocado no tempo-espaço, e é neste segundo aspecto que eu concentro a minha análise.

 

No ano passado, vivemos o que foi considerado como a “primavera feminista no Brasil”. Muito se discutiu (discussões estas que continuam acontecendo) acerca da representação da mulher, dos lugares de fala, das metas e conquistas políticas, da naturalização da violência, da cultura do estupro, da objetificação feminina, da legislação sobre o corpo e prazer femininos. Tais discussões foram colocadas em diversas iniciativas artísticas dentro e fora de Salvador, e é impossível negar que em 2015, se falou de MULHER. E me parece que Confissões de Mulheres de 30 tentou aproveitar essa onda - Já que está se falando de mulher, vamos nessa.

 

Permitam-me agora compartilhar uma experiência, que por vezes servirá de ilustração no decorrer da minha fala.

 

Certo dia, por conta de um acidente, precisei arrancar um dente. Lá, não lembro como, comecei a discutir feminismo com o meu dentista, e ele me falou que tinha assistido uma peça feminista: Confissões de Mulheres de 30. Pronto. Acabou a história.

 

Creio que ele (O dentista) entendeu que para uma peça se enquadrar como uma peça feminista, basta que fale de mulher. Mas algumas perguntas importantes foram desconsideradas por ele: De que mulher falam? O que falam sobre a mulher? E para quem falam?

 

É preciso deixar claro, antes de mais nada, ter consciência de que em nenhuma de suas peças de divulgação a peça se coloca como uma peça feminista, mas essa colocação de meu dentista reitera o meu argumento sobre o deslocamento desta peça no tempo-espaço.

 

Percebam: Se vivemos uma nova onda feminista, falamos bastante em mulher, se falamos em mulher estamos falando em feminismo. Este raciocínio à primeira vista pode parecer insignificante, mas, ao contrário, me parece bastante grave, levando em consideração que nós, militantes feministas, estamos em processo de “definir” as características da onda feminista na qual estamos inseridas, e superar todas as distorções e descontextualizações nocivas que estamos vivendo no cenário político como um todo.

 

Confissões de Mulheres de 30, além de ser dirigida e adaptada por homens, inspira-se no conceito de um outro homem, Honoré de Balzac (autor do “clássico” A Mulher de 30 anos) que deu origem ao termo “mulheres Balzaquianas”. Este termo é usado para classificar as mulheres entre 30 e 40 anos, considerando esta fase o ápice da maturidade da mulher para o amor. Li em alguns lugares que esta síntese de Balzac é a melhor síntese dos desejos e angustias das mulheres de 30 anos (Claro, quem melhor para definir o que uma mulher pensa e sente do que um homem?!).

 

Esta obra é um reforço de clichês e estereótipos disfarçado de bom humor. E corrobora a naturalização das violências (principalmente emocionais) contra as mulheres. Apoiando e reforçando a imagem da mulher louca e neurótica. Em algumas cenas de maneira mais gritante do que em outras.

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Em uma das cenas, uma personagem/atriz conta que estava flertando com um rapaz em uma balada. Ele lhe ofereceu carona, ela aceitou e gostou (óbvio, ali estava mais uma maneira de prolongar o flerte). Ele pergunta se ela quer ir a um motel, ela diz que NÃO, então, ele leva o carro para uma rua de motéis. Ela escolhe um motel, e lá fica com medo de transar e se esconde no banheiro. Ele espera. Ela sai e continua “inventando desculpas para não transar”, ele insiste. Ele tira a roupa dela e eles transam. E é ótimo. É maravilhoso. E ela entra no papel da mulher que liga insistentemente para ele de tão maravilhosa que foi a transa.

 

Agora, se possível, procurem as seguintes hastags na internet – #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto – E vejam quantas das denúncias se parecem com este relato acima.  E depois procurem quantas mulheres foram processadas pelos seus assediadores, e quais são suas chances de vencer tais processos, considerando que a nossa lei protege os homens.

 

Esta é uma questão delicada demais para ser tratada com tanta leviandade. Mulheres se culpam, se arrependem e se escondem por causa de casos semelhantes. Estamos lutando todos os dias para que entendam que nosso NÃO é NÃO, para vir uma peça como essa dizer: Não, insistam, estamos “fazendo doce”, porque é isso que mulheres de trinta fazem.

 

Em alguma de suas peças de divulgação a assessoria da peça fala que Confissões de Mulheres de 30 presta um serviço ao casamento. Faz com que os maridos e namorados saiam do teatro tendo certeza de que suas mulheres são normais. Neste aspecto acho que tocaram em um ponto crucial. É uma peça feita por homens e para homens. O vídeo que roda no final, durante pelo menos uns dez minutos, com vários depoimentos de homens sobre mulheres balzaquianas, reforça esta impressão. Esta obra se importa com o que os homens pensam. Não é à toa que a primeira vez que conversei sobre esta peça foi durante uma interlocução com um homem, o meu dentista.

 

No final da peça uma das personagens/atrizes fala que recebeu uma pergunta sobre os posicionamentos políticos das mulheres de 30, e ela respondeu: “Olhei bem nos seus olhos e respondi – AQUI nós só falamos de homens mesmo”. Esta me pareceu uma tentativa da atriz de tornar este texto mais palatável, uma vez que encontrei na internet um trecho da outra montagem onde dizia: “Olhei bem nos seus olhos e respondi – A gente só pensa em homem mesmo”

 

“Ah Laís, mas a peça foi escrita a partir de depoimentos de outras mulheres, atrizes da primeira montagem e da montagem atual...”. “Ah Laís, mas mulheres se identificam com a peça e gostam e recomendam...”. Neste caso preciso lembrar que o patriarcado é uma cultura. E nós mulheres estamos atravessadas por isso. E nós, feministas, vivemos diariamente este processo, por vezes doloroso de desconstrução, tentando todos os dias amaciar esse caminho para as nossas irmãs – estamos falando agora de empoderamento e sororidade  - Mas destrinchar estes termos seria começar um outro texto.

 

Preciso dizer, por fim, que assistir esta peça foi tão doloroso quanto arrancar o dente, e se eu não tivesse uma amiga tão querida em cena eu teria ido embora mais cedo.

Uma dor de dente e "Confissões de mulheres de 30"

Esta obra é um reforço de clichês e estereótipos disfarçado de bom humor. E corrobora a naturalização das violências (principalmente emocionais) contra as mulheres.

Por Laís Machado

Rebater a crítica de Daniel Guerra foi a tarefa que me foi pedida. Exercício complexo. Mais ainda complexo quando a crítica que li me ensina sobre meu trabalho. Não tenho eu, Monica Santana, criadora de algumas das camadas de Isto Não É Uma Mulata absoluto controle da obra que construí. Então a crítica de Guerra diz desse olho que me vê – o outro com que apreendo e aprendo.

Rebate à crítica “Das fissuras Sincompadas” de Daniel Guerra

Por Mônica Santana

Rebater a crítica de Daniel Guerra num dia em que pouco consigo dar conta de mim, pois estou alma, corpo e medo engajado no caos político que forjaram para nós, torna-se um exercício ainda mais difícil.

 

Guerra – esse moço que tem esse nome inflamado – situa minha obra como didática, também como necessária. Agradeço. Sim, é um trabalho didático. Pedagógico sim. Desavergonhadamente político. Ele usou a palavra necessário. Que posso dizer se não...é mesmo. Pelo menos para mim, é necessário. Veio das minhas urgências – sendo sim, autobiográfico, como é muito daquilo que produzimos, mesmo quando não queremos -, da necessidade de falar da (in)visibilidade da mulher negra, dos estigmas e rótulos que nos são cobrados, do próprio essencialismo que  adotamos na hora de positivar-nos. Na negação encontrei a via positiva de afirmar a vocação ontológica que todas – sim, assumindo o lugar de fala de mulher, negra – temos.

 

No seu exercício crítico, Guerra preferiu não falar dos aspectos formais, com as razões que ele próprio explícita. Me pergunto se tenho que tecer as motivações dos procedimentos que

adotei. Talvez. Escolhi sim a ironia. Sim, por ser irônica, mas também por seu potencial discursivo, criativo e cruel. Acredito que na inevitável tarefa do artista negro falar, biograficamente falar, o racismo está lá...colocado em algum momento de sua vida, de sua obra. Do processo, da travessia ou do próprio discurso. Pensei nos discursos do corpo como potência – tendo nele carne e verbo, evitando os fáceis panfletarismos em que eu poderia cair na verborragia. Não posso dizer se tenho êxito. Não cabe a mim.

 

Devo dizer que ontem, ao ler uma lista onde vários artistas de todo Brasil estavam enumerados, taxados de pessoas a serem execradas, perseguidas, boicotadas, senti medo de não mais poder continuar fazendo meu trabalho. Não poder mais subir no palco e fazer meu teatro / performance que sim é político. De não mais poder falar. Sei que a escuta da minha voz, como a de tantas outras é falha e seletiva. Mas me deixem falar. Me deixem falar. Me deixem...falar. 

 

Foto de Andrea Magnoni

Anti crítica

 

ANTI, pois me oponho a minha primeira visão, burguesa, da obra.

ANTI, pois sou eu inserido em Antônia.

ANTI, pois há em Antônia, sutilmente, uma alternativa.

ANTI, pois é o nome do novo álbum de Rihanna.

 

Dizer o quanto é necessário a concepção de obras cênicas que tenham como foco o protagonismo negro, não chega a ser uma novidade para a classe artística. Sobretudo, não chega a ser uma novidade para os próprios artistas pretos e aqueles que, uma vez sentindo na pele o flagelo provocado por ter esta cor, se atormentam com o chamado. O entendimento para uma politização e consciência do que é ser negro, vindo de bairros periféricos e que, ousadamente, adentram no espaço do fazer artístico que, em suma, é extremamente asséptico e ainda intolerante a uma ação de protesto poético, como os artistas do espetáculo Antônia classificam a sua empreitada.

 

Sinto em momentos, quando alguns artistas, principalmente brancos, falam de obras que possuem esta verve – geralmente obras feitas por pretos –, que há uma espécie de incredulidade da parte deles ao tentar compartilhar da experiência proposta, ou melhor, de uma notável negação aos fatos ali expostos. Esta reação, muitas vezes, é mascarada por uma crítica fundamentada no caráter formal do que é exposto enquanto obra artística, como se dissessem “poderia ser de outro jeito” ou “poderia ter menos textão”, ou ainda, e mais clássica, “poderia ser menos panfletário e menos gritado” – bem... de fato, é o que dá para pegar por alguns daqueles que enunciam tais pensamentos quanto a obras deste tipo, a boa e velha estrutura, que nada mais é do que um radier para o que verdadeiramente importa. Livrar-se deste pensamento é complicado, mas há sempre uma grilheta.  

 

Anedota 1: A incredulidade ou a negação, de pessoas fora da margem (incluindo artistas) do que açoita o povo negro, me faz lembrar da fala de Aimé Césaire (poeta surrealista francês e que difundiu o conceito de negritude) ao ativista cubano, e também negro, Carlos Moore, quando este relatou para Césaire sobre o racismo mantido pela governo de Fidel Castro, pós-revolução: “Eu não quero acreditar em tudo o que você me disse, não quero acreditar. Mas acredito”. Enquanto isso Jean-Paul Sartre acusava Moore de imperialista.

 

Contudo, parece que ainda não ficou claro que muitos de nós nasceram para trilhar uma espécie de Ọna Igbe (forma ou método do grito, urro ou lamento, ou, ainda, gritando) em arte. Para uma parte daqueles que viveram a margem, como nós pretos, e que adentram ao espaço elitista da arte, o recurso é usar deste privilégio a partir (e partir) d(as) cordas vocais – como artista negro, não sei se o grito fundamenta o meu fazer, mas sinto, por vezes, que este fenômeno me assola para uma espécie de nova construção ética. Hoje, pouco mais de uma semana que vi Antônia, lembro que, quando Fernanda Silva, que faz a Antônia, olhou para mim por alguns segundos, e falando algo que hoje não sei precisar – acho que ela cantava na verdade – senti uma espécie de incômodo. Somente hoje, escrevendo, pude entender o que aquele incômodo era em definitivo. Uma espécie de vibração, motor, que seja, que incitava em mim algum tipo de atuação. Aquilo era um Ọna Igbe.

Igbe Antônia

Por Diego Pinheiro

Foto de Andrea Magnoni

É certo que aquele Igbe vibrou por pouquíssimo tempo em mim, e que não houve mais daquilo, pelo menos ao meu ver, durante toda a ação, e fiquei um tempo esperando que ele voltasse até desistir e acompanhar, no que me cabia, aos episódios – talvez o meu erro foi esperar. Mas, para mim, toda Antônia poderia ser “igbezada”.

 

Pois o que seria isso de Igbe? Nada que flerte com conceito, nada delimitador, nada de sintético, mas uma alternativa, uma possibilidade, ou melhor, uma indicação da experiência em arte neste caso que necessita por ser desbravada. O grito, de modo óbvio, não necessariamente está na voz, mas sim a partir (e partir) d(as) cordas vocais – voltando a repetir. Talvez seja isso, no fundo, minha verdadeira crítica a Antônia, e para tantas outras obras que fiz, vi e que estão por vir: ver Igbe como caminho. Não temer ao grito, pois gritar também se configura enquanto ética performativa e ancestral negra – não há espaço para cochichos “outbacksteakhouse”. Ọna Igbe é, portanto, um caminho estético para um “afrotranscendence” (referenciando aqui o evento ocorrido em São Paulo no último ano), possibilidade ética e conhecimento imanente. Isso é desbravar a mata trançada, o corpo.

 

Ọna Igbe Ara = Desbravar a mata trançada no corpo

Ọna Igbe = Entender a mata trançada

 

Além deste protagonismo preto, Antônia aborda algo mais: o genocídio de jovens negros em bairros periféricos de Salvador. Tema pouco aventado em arte, embora com iniciativas notórias nas artes cênicas, como: Bogum – Oroboro de Diego Alcantara em 2013 do Teatro Base (e que se prepara para um retorno) e mais recentemente Erê (2015) do Bando de Teatro Olodum (que eu não vi). Contudo, o tema é amplamente discutido em outras camadas midiáticas (redes sociais e mídia de guerrilha), sendo bandeira do célebre movimento Reaja ou Será Morta! Reaja ou Será Morto. Debater este tema em outras mídias, principalmente na arte, se faz urgente e Antônia entende isso quando se arrisca na concepção deste espetáculo sem dinheiro algum. Acima de tudo, a obra tem como personagem central uma mulher negra (Fernanda Silva, a Antônia) e dirigida por outra mulher negra, Sanara Rocha.Antônia circulou por mais ou menos nove bairros de Salvador, entre eles Cabula, Canabrava, Alagados e Massaranduba, traçando um itinerário para falar para os nossos, como eles dizem, da melhor forma Alarinjo (Hubert Ogunde). Colocando o genocídio da juventude negra em foco e exaltando a força de uma mulher negra de periferia, Antônia não foge do debate sobre um estado em total militarização e que, com severos golpes, mata jovens de bairros periféricos, ressaltando, inclusive, a impunidade referente a chacina do Cabula, onde morreram 13 jovens negros. Isso é entender a mata trançada, e entender afastando o negro do folclore e dos assaltos culturais – mas isso é outro texto.

 

Mas onde entra Antígona nisso tudo?

 

Antígona não entra em nada, e é aí onde mora o problema da releitura ou adaptação.

Antônia se aproxima bem mais de Zeferina, líder do Quilombo do Urubu no começo do século XIX aqui em Salvador – hoje Subúrbio Ferroviário –, do que de Antígona – é necessário que as artistas que criaram essa obra urgente tenham extrema consciência disso. Ainda é mais próxima de Assata Shakur, ex-integrante dos Panteras Negras e persegui-

da como terrorista até hoje pela FBI. O ato de uma irmã ou mãe lutar por encontrar o corpo de uma filha (o), ou irmã (o), não é exclusivo a personagem de Sófocles. É algo que abate muitas irmãs, mães, e outros familiares, de muitas localidades carentes de Salvador. Para uma obra que lida com uma espécie de indício de experiência, o único excesso é a própria ideia de releitura ou adaptação de Antígona, posto que os pequenos excessos calham desta ideia.

Anedota 2: Falando de Zeferina e militarização, a polícia militar da Bahia foi criada em 1825 justamente para matar negros, naquele época, os insurgentes quilombolas. Zeferina estava entre estes insurgentes. É um negócio bem sucedido até hoje.    

 

O Excesso-Antígona quase me fez adentrar numa análise espumosa de Antônia – espumosa, pois burguesa. Análise fincada em ditames estruturais, que não são desimportantes, mas limitadores. É mais do que urgente enxergarmos a estrutura enquanto trampolim para algo maior, e este algo vai além do ensimesmamento artístico. Seria, no caso, uma análise de forças que se integram, veículos que percorrem estradas tortuosas – caminhos que só passam a ser quando compostos por pegadas. Estética totalmente íntima a aquele que lhe deu matéria – entender o radier como elemento, ingrediente, da total estética e não como “estética” e, depois, “discurso”, ou “ética” e depois “discurso”. Foi-me necessário enxergar Antônia através deste excesso, e como já relatado, foi justamente no momento-Igbe. Sem este momento eu poderia estar aqui a pensar ou inventar, ou conjecturar justificativas e possíveis metáforas das escolhas “técnicas” propostas para a concepção de Antônia, e, há muito, entendo concepção enquanto entendimento de uma zona, de uma mata, e não como um arsenal, catálogo de ferramentas artísticas – ferramentas estas que são assaltadas a todo momento e não transformadas; algo nas cristaleiras de arte. É por isso que Antônia deve correr de Antígona. Desbravar Igbe no corpo e entender Igbe no campo. Talvez isso ajude a não recorrermos a esta forma infértil de análise.

 

Anedota 3: Não digo que fugir deste tipo de excesso é coisa fácil, até porque as referências que chegam a nós, artistas negros, em sua maioria são brancas – não é diferente comigo –, mas é a partir disso que temos um inegável privilégio, o de adotar como motor nossa própria imanência – processo difícil este – possibilitando o aparecimento de um veículo transformado. Porém, há de se ter extrema vigilância; estarmos atentos a nossa imanência não significa, pois, estarmos exilados, ou até autoexilados, em nossas próprias raízes. Entender a imanência do corpo preto é um movimento de expansão, antena para o mundo.

 

 Logo, se Antônia assume, por completo, esta estética do grito – este ilá “afrotranscendence” – foge de estar a sombra da heroína clássica grega e aumenta o impacto de estar mais por Antônia e menos por Antígona. Ou seja, mais igbe e menos tragosoiodé.  

O Excesso-Antígona quase me fez adentrar numa análise espumosa de Antônia - espumosa, pois burguesa.

Imagem retirada do Facebook

“Ona Igbe Ara” = Desbravar a mata trançada no corpo”

“Ona Igbe” = Entender a mata trançada”

Eu fecho os olhos e penso em que consiste “Igbe - Antônia” para mim (no sentido da provocação lançada pela crítica de Diego Pinheiro), em busca dessa reposta, a qual não encontro, me limito apenas a pescar no meu campo mnemônico imagens-sonho do processo. E vislumbro, literalmente, Antônia, como uma mata trançada! Uma explosão cromática, profusa de ruídos e silêncios, abundante em fragrâncias e seres complexos.

 

Essa mata a qual lançamo-nos desbravar sem facões ou foices, em algum momento talvez tenha se cerrado em nosso entorno, obrigando-

nos a permanecer juntos, muito juntos. Atentos uns aos outros, colados uns aos outros, raspando-se uns nos outros, ferindo-nos uns aos outros! E tão logo avançamos um passo, percebi, ela havia tornado a se fechar, em silêncio, atrás de nós, impedindo-nos de recuar.

 

Éramos capazes, então, de entender de onde havíamos partido, mas não era mais possível compreender como havíamos destrançado alguns dos nós!

 Talvez em algum momento tenhamos cerrado os galhos com pequenos canivetes, ou dilacerado os nós entre os galhos com os dentes, ou ainda podemos ter queimado trechos da mata para cortar caminho, pelo tempo tão urgente, pela falta de paciência nossa de cada processo. Não era adequado, eu sei, mas, devemos ter feito isso algumas vezes e isso no fim do percurso se deixou ser notável.

 No caminho das profusas escolhas, da mata trançada encruzilhada, só se pode caminhar, caminhando. E com tempo!

 O andamento é inconstante, ele acelera, ele desacelera na música da mata, e o ritmo, até que se torne coletivo, é um tanto quanto descompassado. Mas, o tempo, Ah! Esse é quem define toda a dança! Todo baloiçar de galho ou de todo chapinhar dos passos nossos sobre a terra úmida. 

 

Eu fecho os olhos e vejo essa mata na minha frente como algo colossal! Um abismo rústico que atrai estrangeiros céticos apenas por parecer instransponível e intransitável. Muitas vezes nos machucamos somente por escolhê-la! Somente por escolher- (E)la. E lá dentro nós

temos que aprender a urrar. E nós urramos, sim! Bem alto! Mas, urramos muito mais para nos reconhecermos uns aos outros, para sabermos onde cada um de nós estava quando tudo era escuridão e de onde cada um de nós partia ou ainda a qual mata cada um de nós pertencia!

 E a mata ouviu.

 A mata nos viu!

A Mata éramos nós!

Entendeu-nos todo corpo que buscava desbravar a sua própria mata trançada!

 

E o sagrado e o nobre, de Igbe Antônia, transbordaram de nós emaranhados e de nós, emaranhados em ramos frondosos e coroas de palhas e folhas e flores.  Sentimo-nos córregos de água límpida e doce, no fim. Água boa pra índio beber. Água boa pra preto beber!

 Éramos brotos e frutos frescos, ás vezes maduros. E ao mesmo tempo éramos tenras sementes de colheitas futuras.

 Mas, também nos sentimos folhas secas e troncos queimados até o toco. Inférteis em contra-argumentos e contra-imagens...E isso dói. Faz parte do desbravar da mata, em nós, no outro, no entorno. Só que dói!

 É que era hora de desbravar a pausa, o silêncio, o vazio.

Chegou o momento de desbravar o silêncio da mata, o silêncio e o vazio da mata que atrás de nós outra vez se cerrou.

 

 

O DESBRAVAR DA MATA 

Rebate à crítica “IGBE-ANTÔNIA” de Diego Pinheiro

Por Sanara Rocha

Por Daniel Guerra

O que era pra ser uma Crítica da Crítica transforma-se em Crítica da Não-Crítica. Ou seja, falarei de sua ausência. Essa coluna, que deveria pensar críticas produzidas na cidade, abordará sua falta, traçando possíveis causas e outras possibilidades de agenciamento do problema.

 

Em Salvador, a produção de campo (que engloba as estratégias de circulação de informação e pensamento) baseia-se fundamentalmente no viés do serviço cultural, labor especificamente jornalístico. Depois de algumas semanas buscando nos jornais, encontro somente pequenas notas genéricas, divulgação de espetáculos nacionais em turnê (que geralmente possuem vasto capital midiático), comentários no mais das vezes equivocados e superficiais sobre os espetáculos regionais, e nunca um pensamento de fôlego sobre a estética teatral. E o jornalismo, mesmo que muito bem-intencionado, (vamos combinar) nunca foi muito assertivo quando se trata de arte.

 

Outrora ainda havia alguma produção. Eduarda Uzêda foi até pouco tempo uma das principais críticas da cidade, e talvez a diminuição atual de sua produção se deva a uma mudança paradigmática na forma de agenciamento do campo artístico, às crises do jornalismo impresso e a uma transformação contemporânea da estética teatral. Tais textos estavam a serviço de uma produção específica, onde os elementos da cena deveriam ser separados e avaliados em sua “qualidade”, e se ao final de tudo cada um resultasse minimamente “bom” ou “ok”, somava-se as “notas” e o trabalho poderia ser considerado um espetáculo que valeria a pena testemunhar. E os bonequinhos famosos em muitos jornais poderiam aplaudir de pé ou sentados, conforme manda o script da cena tradicional.

 

Muitos de nós atravessamos justo esse período de mudança e pudemos ver nossos trabalhos bastante mal representadas por aquela forma de escrita. Se por um lado eram reservados elogios aos espetáculos em vias de falência, por outro as proposições irruptivas ganhavam o desprezo ou — o que talvez seja pior — eram analisadas por meio das mesmas categorias subjetivas utilizadas com relação aos fantasmas do “teatro na UTI”. Nem é preciso dizer que a relação deste último com tal crítica era orgânica — havia evidentemente uma complementaridade, uma simbiose, uma manutenção política de status quo, pactuada ou não. E afinal, qual política não é estética, e vice-versa?

 

O dramaturgo e diretor teatral Gil Vicente Tavares já escrevia, no blog Teatro Nu, críticas provocativas sobre a produção contemporânea (da qual ele mesmo faz parte). Alguns de seus textos atacavam uma suposta “nova onda”, revelando clichês e recorrências formais, mas punha em xeque também a importante relação entre dinheiro e arte, principalmente com o crescimento dos editais como estratégia quase unilateral de circulação de capital. Gil trazia uma importante visão sistêmica que reinseria o teatro enquanto instituição social, e apesar de raramente alcançar o tutano do fenômeno — ou seja, a positividade da mudança sociopolítica, a conjuntura irruptiva do contemporâneo nas artes — ao menos se propunha a discutir seriamente tais questões. Hoje o Teatro Nu é um blog bastante influente e conta com outros colaboradores, mas se os textos já pensam cidade e cultura numa abrangência potente, por outro lado deixou-se o pensamento estético sobre o teatro em segundo plano.

 

Uma das iniciativas mais recentes foi o site Papo Teatral. Ali Celso Jr., Mônica Santana e Matheus Schimith acompanhavam ativamente a produção soteropolitana. Em seus textos havia uma aproximação muito interessante aos fenômenos contemporâneos, mesmo que fundamentalmente preservasse a velha cisão entre forma e conteúdo e aquele isolamento valorativo dos elementos do espetáculo, que como vimos nunca bastaria para uma imersão total na produção do nosso tempo. Estruturalmente a escrita recaía em avaliações sobre a luz, o figurino, a interpretação, o cenário e a linha narrativa, que como vimos, não são capazes de apreender toda a estrutura em sua evidência, excessos e reverberações. Mesmo que a obra se estendesse para além de seus limites, o campo era mais uma vez constrangido sob a qualificação interna, fechada, como se a crítica estivesse viciada numa avaliação pictórica ou temática do evento cênico. Também surgiam aqui e ali

 

 

certas imposições de uma falta ao conjunto, como se alguma transcendência fizesse a vez de julgadora. É claro que aqui me restrinjo a falar brevemente, numa visão panorâmica, de modo que as particularidades de cada crítico permanece sujeita a melhor análise, já que evidentemente revelariam outras potências e questões. Não se pode perder de vista que acima de tudo os três integrantes são críticos e artistas engajados na emergência geral do campo. Hoje o site se encontra um tanto quanto desatualizado, e os convido a uma interlocução direta.

 

É que sabemos que a produção por si só não se sustenta. Torna-se necessária uma circulação de idéias e análises; é preciso fomentar o campo com discussões aprofundadas sobre os trabalhos. Deve-se buscar uma dinamização multilateral da rede produtiva. É óbvio que o sistema dos editais tornou-se uma das estratégias públicas mais interessantes para a produção teatral, como que estendendo veias de circulação de capital em direção a lugares que até então não possuíam tal acesso. Mas com uma escassez tal como a que vemos atualmente, já não há como contar apenas com essa ferramenta. Para que haja produção tem de haver campo. E mesmo que realmente não se trate de uma falta de recursos, não há porque estimular a dependência com relação à má administração dos mesmos.

 

Os grupos e coletivos surgiram ativamente depois do impulso político do início da era petista e de uma reformulação curricular polêmica num dos principais centros de formação da cidade, a Escola de Teatro da UFBA. Mas agora talvez fosse hora de se perguntar até que ponto essa instância coletiva não ficaria restringida a seu próprio círculo. É claro que em alguma época a emergência dos grupos se deu como potência fundamental, fazendo penetrar uma energia renovadora por todos os lados. Com a atividade a plenos pulmões da máquina pública, dinheiro era injetado nas novas produções, produções essas que em outra sistemática obviamente não teriam a mesma chance de se revelar. Mas vemos que a história está se transformando cada vez mais rápido, e o que antes se transformava em vinte anos hoje se dá em cinco. Vejo que a era do fomento está em visível momento de fraqueza e o que importa é criar uma musculatura vigorosa e semi-autônoma, onde a produção encontre ressonância na crítica, e onde a academia não se torne apenas um osso duro de roer com relação às outras instâncias.

 

Lugares de encontro tais como foram propostos recentemente pelo Ateliê Voador, VianSatã e Teatro da Queda são de uma enorme importância. O fato de tais eventos serem patrocinados pelo Estado não testemunha contra o argumento - apenas aponta para um aumento da complexidade analítica. Com essas iniciativas encontramos uma oportunidade de superação do disse-me-disse tão recorrente no meio artístico, de enfrentamento de paradigmas inescusáveis (e muitas vezes invizibilizados) e geração de novos meios de circulação, difusão e informação. O teatro evoluiu muito desde as irrupções de coletividades e novas ferramentas de fomento, porém ainda é posicionado de maneira atrasada no coração de um tempo que não suporta instituições pesadas. Existe sempre a necessidade de vento fresco. Se o teatro carrega um peso tão tradicional que o torne difícil de ser balançado por uma rajada natural, que ao menos aprendamos a construir nossos próprios ventiladores.

O teatro evoluiu muito desde as irrupções de coletividades e novas ferramentas de fomento, porém ainda é posicionado de maneira atrasada no coração de um tempo que não suporta instituições pesadas. Existe sempre a necessidade de vento fresco.

LAÍS MACHADO - Bem, para começar, de que maneira você gosta de se apresentar?

 

MÔNICA SANTANA - Menina, nunca pensei sobre isso. Eu posso dizer que eu tenho três profissões. Tem o teatro. Tenho experiência da atriz, da crítica, dessa atriz que escreve. Eu sou comunicadora-educadora, ligada aos direitos humanos. E tem a Mônica assessora de imprensa. Que não aparece, né? Que precisa que os outros apareçam. Tenho esses três lugares e acho que me apresento sempre me adequando a essas três posições.

 

Na verdade, é engraçado que como educadora você faz com que aquele com o qual está fazendo atividade, com quem você está lidando, que ele apareça. E como assessora também, com o assessorado. Nesses últimos tempos que o trabalho Isto Não é Uma Mulata teve mais visibilidade, é que eu tenho aparecido mais e preciso ficar dando as credenciais. É meio esquisito também (risos), porque você tem que ficar falando o que você faz. No fim das contas, a gente é pelo que a gente faz.

 

LM. Aquela pergunta básica, que eu já vi você respondendo várias vezes, mas vou seguir o protocolo. Sobre Isto Não é Uma Mulata: como o projeto começou, o que te motivou e que caminho tomou?

 

MS. Bem, começou quando eu estava lá pelo mestrado e uma amiga me convidou para participar de um congresso de pesquisadores negros. Eu estava pesquisando sobre Clarice Lispector, né? Então eu construí um solo a partir e em diálogo com a obra de Clarice Lispector. Esse trânsito de perceber o corpo e o prazer dentro de Clarice Lispector, e isso na cena. Depois desse convite, eu comecei a perceber que aquela personagem era uma mulher burguesa. Aquela personagem daquele livro era uma mulher branca.

 

LM. Qual livro?

 

MS. A Aprendizagem ou o livro dos prazeres. Uma mulher branca burguesa de um período x no tempo, que tinha um empoderamento, uma tomada de posse do corpo. Mas eu comecei a me perguntar como é que seria isso com uma mulher negra. Não foi isso que eu coloquei no solo. Não sei se você assistiu, mas minha voz tá ali. Não tem como descolar minha voz ali. Mas algumas circunstancias daquela personagem, não são minhas circunstancias. E ir para esse congresso me colocou numa crise de pensar sobre isso. E aí eu comecei a ler coisas. Porque até então eu não tinha muitas leituras sobre questões raciais. Embora no trabalho como educadora esses temas perpassassem, mas de fato eu não tinha essas leituras. E aquela experiência de ir para esse congresso, de apresentar lá, de ver os outros trabalhos que estavam sendo apresentados ali me fizeram pensar e começar a sentir necessidade de falar algo a respeito.

Por exemplo, teve um dia em que eu coloquei uma questão: eu estava numa festa com duas amigas brancas que eram super assediadas, e nesse dia eu tinha plena consciência de que eu estava ótima. Que eu estava bonita e ninguém chegava em mim. E eu sempre convivi com essa pira. Mas nesse dia eu pensei: não, eu estou me sentindo ótima (porque sempre tem aquela coisa de como é que você está se sentindo, sua autoestima como é que está). E eu lembro que eu escrevi um texto muito ingênuo, mas também muito raivoso a partir dessa percepção. Como é o olhar nessas circunstancia da paquera, dos encontros, sendo uma mulher negra. E foi engraçado porque todas as minhas amigas brancas que leram disseram...”não ...nada a ver”, e as minhas amigas negras se reconheceram. E aí eu senti que tinha uma necessidade de falar, mas ainda sem saber direito como. E aí eu li um texto sobre o curso de formação de mulatas. Um curso para mulheres aprenderem a serem mulatas. E as meninas muito satisfeitas com isso. Isso dentro do Sesc Senac do Rio de Janeiro. Tem um conteúdo programático, as meninas fazem seleção. E eu fiquei...porra! O que é isso? Enfim, eu comecei a perceber que eu tinha um campo. E comecei a ler. E aí eu senti cada vez mais necessidade de falar. E eu já vinha me tornando uma pessoa monotemática.

Aí em 2015 eu vi que eu realmente precisava fazer, e foi um processo onde essa necessidade de falar saiu por vários poros. Nos desenhos (eu já vinha desenhando essas coisas), na escrita, só faltava botar na cena. No corpo. Na cena. 

 

LM. Eu até comentei isso com você quando eu fui assistir. Como eu vivi também esse processo (na adolescência principalmente) você percebe que só cabe para você a violência. Aquele assédio violento. Não o da paquera, do afeto.

 

MS. É, fica muito no grosseiro ou no exótico. E o engraçado é que o projeto foi ficando mais político do que eu imaginava que fosse ficar. Porque as questões de saída eram sim as questões afetivas. Talvez eu realmente tenha dificuldade de falar dessas coisas, de colocá-las em cena. Eu queria falar de duas coisas: a loucura e a afetividade. E acabou que estão lá. Não como uma cena sobre, mas estão lá.

Do afetivo eu comecei a lembrar de coisas que no momento eu até ficava confortável, mas que hoje eu não sei se suportaria.  De você estar ficando com um cara branco que nunca ficou com uma mulher negra. Eu acho que eu nunca ficaria com um cara branco agora... não é por nada, mas uma das coisas em que acredito hoje é que o amor é um ato político. Os afetos são atos políticos. O que desperta o interesse no outro são atos políticos. Então hoje eu não conseguiria manter uma relação estável com um homem branco. Eu era menos irritadiça que hoje, hoje não suportaria “porra...sua cor...”. Pensaria logo: Porra! Estou “exotizada”.

E eu acho que eu já vivi essas situações de “exotização”, que num dado momento quando você está construindo uma autoestima, depois de tê-la negada, você não suporta mais. E nessas situações da “exotização”, quando você não está entre pessoas negras, as pessoas não entendem e até acham massa. Quando eu fui à Argentina, que é um lugar onde não tem negros, as pessoas ficavam loucas porque estavam vendo uma mulher negra. Eles gritavam. Não era o jeito aqui da Bahia. Gritavam mesmo. Eu sofria um tipo de assédio que me incomodava. E eu estava com duas amigas brancas (aquela branca baiana) e as meninas achavam ótimo. Só que eu me senti “exotizada”. Um bichinho no zoológico. E isso não era legal.

 

LM. Esse era um assunto que eu queria tocar com você. Sobre a imagem da mulher negra lá fora. O que você percebe disso?

 

MS. Eu fui três vezes para fora do País. Na Argentina foi o mais gritante. E lá eu vivi isso de andar e as pessoas gritarem. Tinha acabado de passar Chica da Silva e eles gritavam “Chica da Silva!”. Vivi situações de o garçom querer me beijar. Quando fui a Paris, que é uma cidade negra, apesar de não se vender essa imagem, eu percebi uma coisa: um descolamento. A gente vive a imagem da Bahia-África, mas é uma África mítica. Não é a experiência de agora. A gente viveu uma experiência diaspórica e essa experiência da saudade. Mas não se tem o reconhecimento quando você está diante de africanos. A gente realmente é mestiça. Às vezes tinha uma semelhança entre o olhar do branco e do africano, porque a gente é outra coisa. Pelo menos essa foi a minha experiência. E da última vez que eu fui (Paris), eu fiquei hospedada num lugar e a pessoa extremamente gentil, e a pessoa me contou uma conversa onde perguntaram a ela quantos homens eu tinha levado para lá. Essa fala me incomodou muito. Com isso eu não quero dizer que me sinto ofendida com os “muitos homens”, mas pela conotação que isso tem. Não era empoderamento sexual. Se eu fosse uma jovem alemã, talvez isso não fosse uma questão, embora, talvez, ela tivesse um empoderamento para levar os boys lá.

 

LM. E a partir de suas referências, ao que você acha que se deve essa visão da brasileira lá fora? E vc acha que é possível mudar isso?

 

MS. Olha, eu estou estudando muito pro meu doutorado...

 

LM. Seu doutorado vai ser mais ligado a essa temática?

 

MS. Sim. Estou mais interessada em seguir estudando identidade. Em princípio eu não tentei artes cênicas, porque eu acho que as nossas discussões em artes cênicas são ainda muito “eurocentradas” e sem problematizar isso. Embora tenha a etnocenologia, que tem esse papel de deslocar um pouco as coisas, a gente não pensa o teatro grego, o europeu como etnocenológico, porque também são.  Se vendeu essa imagem de teatro universal e não se questiona.

Então eu acho que eu teria mais pares de leitura em Cultura e Sociedade. E de fato eu estou mais preocupada em como é que grupos minoritários criam processos discursivos e se reinventam na contramão daquilo que foi inventado pelo outro para eles.

Eu acredito sim que daqui a um tempo a gente possa reverter esses processos. E que a gente está num momento de reversão de discurso. Ainda a duras penas, mulheres negras estão podendo falar sobre si. Tecer discursos sobre si. Sobre aquilo que elas acham que são. Ou positivar o que querem positivar e negar aquilo que acreditam que devam negar. Desconstruindo os estereótipos.

Stuart Hall, que tem me influenciado bastante (e o pensamento dele influenciou muito o trabalho), problematiza como que a gente consegue, na afirmação positiva de ser negro, de ser uma mulher negra. Como que a gente consegue não nos essencializar. Como é que a gente consegue implodir o pensamento binário, não o reforçar. Sem cair na armadilha de ser negro é essencialmente isso ou aquilo. Ser uma mulher negra é isso ou aquilo. Esse ‘essencializar’ é cair num fechamento sobre a gente. É negar a pluralidade que somos.

 

LM. Até porque se você parar para pensar, falar o povo negro é uma redução dos povos africanos que foram trazidos para cá. Que tinham habilidades e prioridades, línguas, histórias, muito distintas. É a velha história de se pensar um continente inteiro como se fosse um País como se faz com o continente Africano. Afirmar uma essência não deixa de ser uma maneira de reduzir.

 

MS. Pois é. É um dever. Ainda não sei como fazer isso, mas deve-se buscar romper essa lógica. Como é que a gente consegue construir relações menos binárias?

Eu acho que a gente está trabalhando por isso, e talvez por isso esses discursos fascistas que tem ganhado tanta força, estejam tão presentes agora. Porque não se dá conta de lidar com um mundo tão multicultural que está se expressando e rasgando essas estruturas. E é uma questão mundial. Já foi essa história de pureza. Vocês queriam uma globalização? Chegou. Lide com isso.

E uma outra coisa que eu acho, que tem a ver com as leituras, que vão trazendo fichas que vão caindo. Hall traz o pensamento de entender a raça e o racismo como categorias discursivas e não problemas biológicos. Isso já caiu por terra. Essa ciência que buscava explicar comportamentos a partir de aspectos biológicos. Mas como é que isso é reformulado na linguagem? Porque o racismo é linguagem.

Não acho que será a curto prazo. Mas sou otimista.

A gente vive uma violência no Brasil muito bizarra. A gente sempre viveu a lógica da nossa carne valer muito pouco. A gente vive um contexto de guerra velado. Mas não tem mais como calar essa voz. E por isso incomoda tanto. Essa discussão do politicamente correto.

Racismo e machismo são questões de linguagem e nós, artistas, temos que entender isso. A gente sabe que pela palavra a gente performa o mundo. A gente fere, acaricia, constrói, a gente faz. Não pode achar que você pode falar qualquer coisa e que tá de boa. Um artista não pode estar falando esse tipo de coisa.

 

LM. Voltando para Isto Não é Uma Mulata, como foi para você a indicação ao Braskem na Categoria Revelação?

 

MS.Olha. A gente ia fazer 6 apresentações, então, Raíça Bonfim (produtora da Gameleira Artes Integradas – responsável pela produção de Isto Não é Uma Mulata) lançou a questão: “Se a gente fizer seis a gente não concorre, vamos fazer mais duas?”. Mas eu pensei: gente, esse trabalho não é pra Braskem. Eu não estou inferiorizando meu trabalho, não. Acho que ele tem muita potência, mas eu entendo que essa zona em que eu estou, que vai de uma dramaturgia causal, que não é de um trabalho de construção de personagens, que não é de um determinado lugar de teatro que eu acho que uma premiação dessa natureza está mais disposta a considerar. E Olga Lamas e Raiça Bonfim (Gameleira Artes Integradas) disseram “Gata, vamos lá. E acho que tem uma potência sim. Entra num catalogo da cena do ano”. Enfim...achei potente. Nunca achei, por causa dessas coisas que eu já pontuei, que fosse um trabalho que a curadoria consideraria. Quando a indicação chegou eu tomei como surpresa.

Mas também achei engraçado estar na categoria revelação. Eu não acho que eu seja conhecida como atriz, mas eu já fiz algumas coisas. Fiz parte de grupos que são importantes como o Grupo Vilavox, por exemplo. Mas também acho que eu não caberia na categoria melhor atriz. Pela estética do que eu estou produzindo. E ao mesmo tempo, eu estou num trabalho que é absolutamente autoral, embora tenha uma equipe que cria comigo. Eu não sou só atriz do projeto. O lugar que me coube foi aquele.

 

LM. E o que você acha dessa categoria revelação? Porque, para mim, muitas vezes parece que se coloca ali o que não conseguiram enquadrar em nenhuma outra categoria.

 

MS. Acho que é isso mesmo. No meu caso e no de Raíça Bomfim, que foi uma pessoa decisiva nesse projeto, e está no cenário a muito tempo, já foi indicada com o grupo e está concorrendo em revelação com o solo Ofélia.

Eu acho que a gente tem hoje tem alguns problemas. Acho que é um problema da lógica de premiação, que já não dá conta da estrutura de produção artística. Como a polêmica que rolou no Oscar. Algumas coisas não cabem mais. E ali está uma pauta do racismo que nem chega aqui ainda, nas nossas premiações brasileiras.

Nesse ano até que tem um Braskem com a cara da produção da cidade. Mas acho que tem um problema como as premiações conseguem dar conta desse teatro que já não é mais aquela lógica. Esse teatro que já está a muito tempo deslocado. Com outras questões e tal.

Acho que mais problemático ainda é a categoria especial. Ela é muito louca. Porque qual é a lógica? Você não tem base de comparação. Tinha que ter uma categoria que desse conta da produção. Como vai avaliar qual é o trabalho mais potente? O de um iluminador ou uma produção? Que critério é usado? Eu acho que você pode avaliar entre iguais. E por que falo da produção em especifico?  Porque a gente esquece do quão difícil é fazer produção. Criar condições para fazer o espetáculo. Que é decisivo para o processo artístico e a gente tira isso da arte. Fico bem feliz porque uma produção foi considerada. Fernanda bezerra com a produção de Sade. Mas como você vai avaliar o trabalho dela com os outros? Cara, você tem um espetáculo inteiro na categoria especial (Ruína dos anjos). Como eu vou comparar o espetáculo com o trabalho de Rino Carvalho? Não é diminuindo nenhum dos trabalhos, mas são muito diferentes.

Mas a gente está numa cidade que tem um prêmio. E aí a gente fica cobrando desse prêmio que ele dê resposta a tudo. E ele não vai dar. Então, classe artística, se movimente e crie seu prêmio. Que pode não ter grana, mas pode ter visibilidade, notoriedade, reconhecimento para o trabalho das pessoas. Acho que a gente precisa, cada vez mais, sair desse lugar de ficar reclamando. É preciso criar outros prêmios. Acho que a classe já poderia ter essa maturidade para estar gerando isso.

 

LM. Como foram os públicos de Isto Não é uma Mulata?  

 

MS. Bem.... Eu estou bem feliz. Eu fico até estranhando, mas os retornos que chegaram foram muito positivos. Não que o trabalho não tenha questões, mas o retorno tem sido muito feliz. Se eu pudesse eu nunca mais fazia sem debate. Porque você tem dimensão do efeito, como é que, de imediato, aquilo chega.

Isso que eu falei da loucura, que eu queria ter colocado.... em Alagados tinha um grupo de mulheres que estavam acompanhadas de uma psicóloga. É um grupo que foca no atendimento a mulheres negras, que foca em problematizar as neuroses geradas pelo racismo. E eu queria colocar isso na minha cena. Porque faz parte da minha história familiar. E a leitura de Frantz Fanon, que foi um psicanalista que pensou e colocou em questão como é que a psicanalise não dá conta de falar das neuroses causadas pelo racismo e das doenças que a diáspora gerou. E eu ficava pensando nele, nas minhas questões e queria muito colocar isso em cena, mas achava que eu não tinha conseguido. Mas está lá, e essa mulher falou sobre como isso aparece na cena, como é importante falar disso e o que é essa loucura que adoece milhares de mulheres e homens negros. E foi muito valoroso ouvir isso. Me emocionei muito quando ela trouxe isso. E esses debates de fato... cada elemento que eu uso veio de uma escolha, de um pensamento de um trabalho, mas o autor de qualquer obra artística não tem domínio sobre a obra que ele está gerando. Então vão emergir questões que lhe escapam, e esse momento do debate tem sido um momento em que eu posso aprender sobre o trabalho. E tem sido muito feliz, principalmente esses dois dias em Alagados. As apresentações em Alagados foram muito fortes, retornos muito significantes e emocionados.

Quanto por outro lado foi o dia que eu apresentei para um grupo maior de jovens, de escola pública, pouco habituados a estarem no teatro. E você sabe como é um monte de adolescente juntos. Eles não estão nem aí para você. Estão ligados é nos “Brother” deles, e você, muito provavelmente, será a pessoa que eles vão sacanear. Adolescente é isso. E aí eu fiquei naquela situação de estar fazendo e eles naquela vibe de adolescente. E isso me fez chegar num nível de agressividade que eu ainda não tinha alcançado. Eu tive que pensar: Qual é a linguagem que eu sei que vocês estão ligados? Então vamos nela. E aí eu vi que rolou um “porra! Ela tá falando comigo”. “Não desvia o olhar não que eu tô falando com vc”. E rolou. Foi intenso, mas rolou. Foi forte. Foi toda uma conjuntura que me deixou muito feliz de apresentar lá. Fora o espaço que foi muito acolhedor. A figura de Jamira Muniz (Coordenadora do Centro Cultural de Alagados) também, que é uma pessoa foda. Foi uma experiência muito feliz.

E uma coisa é você apresentar para os seus pares. Quando eu fui apresentar o trabalho em Praia do Forte, a convite de Larissa Luz e Fernanda Bezerra, para abrir o show dela (Larissa Luz também é uma cantora, uma artista que está trabalhando muito essa questão da afirmação da mulher negra). E a gente foi na van conversando sobre isso, porque tanto o meu trabalho quando o dela não são o tipo de trabalho que figuram na Praia do Forte. E foi foda. Primeiro que eu não apresentei o espetáculo. Foi mais uma performance. Deixar essas figuras passearem por ali. Fiquei um longo tempo limpando, varrendo a rua. E ao mesmo tempo em que eu estava invisível para quem não era da cidade, as pessoas de lá, os ambulantes que trabalhavam ali, sabiam que eu não era dali e começavam a assistir. E quem ficou até o fim, foi a galera de praia do forte. E eles concordavam, “pô, que massa”. Não estou dizendo que eu estou entrando naquela lógica binaria que eu critiquei lá no início. Claro que tiveram pessoas brancas, turistas que assistiram, e depois me chamaram para conversar...assim como pessoas dali que me acharam uma maluca. Mas tem um dado momento em que a gente enxerga uma paleta de cores. E essa paleta foi visível em alguns momentos, sim. E eu achei potente, sim...foi uma experiência que eu queria repetir em outro lugar.

 

LM. Essa lógica binária ainda existe. Essa perspectiva ainda existe. E a gente está atravessado por esse olhar. Vivemos um processo de desconstruir essa perspectiva, mas ela ainda existe. Você acha que Isto Não É Uma Mulata é para ocupar os espaços negros e convocar a todos, ou é um espetáculo para ocupar os espaços brancos de poder, dizendo um “se respeite”? Ou você acha que isso não existe?

 

MS. Eu acho que os dois. Por exemplo, fui assistir a um espetáculo em que uma amiga (Heloisa Jorge) participa no Rio de Janeiro, e o espetáculo se chama Race, e trata de racismo. Fiquei com várias questões sobre o texto, encenação, mas fiquei lá com minhas questões; Depois teve um debate. Primeiro que chegar num teatro em Botafogo, super fofinho, que é o teatro de Andrea Beltrão e Marieta Severo, e na hora que eu cheguei eu era a única mulher negra para assistir. Isso me causou um incomodo. Aí chegaram mais dois, me aproximei. (Risos). Ninguém estava me tratando mal, mas eu me sentia desconfortável. No fim das contas éramos 5 pra assistir, num teatro lotado. E na hora do debate, a questão foi sobre patrocínio. E eu fiquei... “gente, uma hora e meia de peça falando sobre racismo, com 5 negros na plateia, e falando numa perspectiva incômoda”. Quer dizer, quem não está habituado às questões, pode pensar que não entendeu direito o que ele está querendo, mas para um negro que está pensando essas questões, olha de cara e fala: Hum, um texto sobre racismo, escrito por um branco norte americano, provavelmente de relativo sucesso...ele pode até acreditar que ele está sendo super imparcial, mas ele não está. É uma visão de branco.  Por mais gente fina que ele seja, e ele precisa assumir isso.

No dia em que eu assisti, vi que não houve debate sobre o espetáculo, e vi que as pessoas não estavam ali para discutir sobre isso. E eu fique louca para apresentar na zona sul do Rio de Janeiro. Eu acho que o meu trabalho é agressivo, e eu queria ir pra esse embate. Que eu posso sair ferida, ter vários retornos não tão bacaninhas quanto eu tenho recebido. Mas eu fiquei inquieta.

 

LM. Em algum momento você pensou em ter uma equipe negra? Se sim, quais foram as dificuldades e o que isso representava politicamente pra você?

 

MS. Eu me perguntei, sim, num dado momento, mas o que aconteceu com Isto Não É Uma Mulata, foi assim: Quem está ali trabalhando comigo é amigo. E eu tenho amigos negros, brancos, trans, cis, plurais e tão comigo e me fortaleceram na vida. Quando eu escrevi, um ano antes, eu tentei alguns editais, e tentei formar uma equipe negra, mas os editais não rolaram. Então quem aceitou fazer comigo sem grana? Toparam por acreditar na proposta. Eu tenho uma equipe muito plural. As produtoras são Raíça (Bonfim) e Olga (Lamas), e também é complicado para mim classificar Raíça como branca. Não sei, mas também ela não está num lugar em que ela teve as vivências de uma mulher negra... então é difícil de classificar. Olga uma mulher branca. Elas estão comigo, me abraçaram, e muita coisa aconteceu por causa delas duas. Cássio Caiazzo e Deílton José, dois homens negros, da Península de Itapagipe, colaram comigo em figurino e cenário. Luíz Guimarães, que tem um entendimento da sua origem indígena, André Oliveira que é um homem negro que veio de são Paulo e que fez essa direção musical, e trouxe outros discursos para cena. Andrea Magnoni, que é uma mulher branca, absolutamente conectada com as questões de diversidade, que faz um trabalho maravilhoso com fotografia, e acho que será lembrada. E fazer o ensaio com ela foi foda. Daniel Guerra e Roberto Jaffier, dois homens brancos. E gosto muito do vídeo que a gente fez, que era para ser um teaser, mas acho que é uma peça que tem um discurso próprio. E Nayara Homem, que foi dos criativos a primeira pessoa com quem eu lidei. Quando ainda não tinha quase nada, e ia fazer uma performance no Dominicaos, e fui na casa dela, e eu ainda não tinha nem falado sobre Fanon, que é o autor de um livro chamado Pele negra,  máscaras brancas. E ela trouxe essa ideia, de fazer uma máscara branca que fosse de desmanchando. E que foi uma coisa que veio dela. Pessoas de outras linguagens que chegam para somar.

 

LM. Eu pergunto isso pela dificuldade, em encontrar pessoas negras ocupando outras áreas. E umas mais difíceis do que as outras, como vídeo, fotografia... Produção é a que mais vem mudando. E até pensando na nossa realidade, quem é que pode colar? Mesmo que ache a ideia massa?

 

MS. De fato, é o que eu estou falando...Cássio por exemplo, é um artista negro que pôde fazer isso. Cassio era uma pessoa com quem eu não tinha intimidade. E quem sabe num outro momento que eu tenha recurso eu possa viabilizar... Mas eu também não sei se eu quero. Agora que eu tenho uma equipe que colou comigo de graça, e quando tiver grana chamar outras pessoas, não sei...não sei se tem resposta.

O que eu acho fundamental, e quero ver, são negros ocupando todos os espaços.

Mas acho que ainda não é assim por dois motivos: Em salvador tem essa cultura de ver e chamar as mesmas pessoas...e é claro que quanto mais você faz, mais experiência você ganha, tem treino, erro, acerto

 

LM. E mais ouvem seus nomes também (risos).

 

MS. E aí eu vejo, “ah! Mas fulano nunca fez nada...não sei...” . Aí eu falo “porra! Você também não tem dinheiro. Arrisca. Essa pessoa precisa experimentar pra fazer”. Como a pessoa vai crescer?

Que é a fala de Viola Davis “O que diferencia as mulheres brancas das mulheres negras são as oportunidades”. E isso é para tudo. Pode ser que ela erre, mas pode ser que ela acerte.

 

LM. Como qualquer outra pessoa, porque isso é uma sensação que eu tenho: parece que dentro deste meio, imagino que em todos, mas falando no nosso, qualquer pessoa erra e acerta. Mas parece que o artista negro precisa ser MUITO BOM. Para começar a ser escutado, assistido, para ter diálogo. É como se o erro do artista negro fosse menos tolerado.

 

MS. Eu me lembro da Helena de Taís Araújo. Ela foi muito criticada. E quantas atrizes brancas são ruins e estão na tv porque são bonitas? E a novela tinha grandes problemas dramatúrgicos, mas ela foi linchada. Ela não tem direito de estar fraca em uma novela. Eu quero que Taís Araújo tenha o mesmo direito de errar de Gabriela Duarte.

 

LM. Para finalizar, como foi o seu processo de “embranquecimento”? Seu processo de tomada de consciência foi no congresso, mas como foi o seu processo? Eu vivi isso, converso com muitas mulheres que viveram isso. Ainda mais nós, que somos mulheres negras de pele mais clara, o processo é muito mais discreto.

 

MS. Hoje eu tenho consciência de que a estrutura do espetáculo foi a minha história: a gente começa no lugar invisível. Ai você começa a perceber que para ser notada você precisa ser branca, e vai fazendo esses procedimentos para parecer branca. Até que você começa a achar que nem é tão preta assim. Até que você percebe que a pele não sai. Que tem um peso colocado sobre você, e você vai carregando. E nesse peso vem aqueles adjetivos que as vezes são bons, mas às vezes te “exotizam”, te animalizam, de hipersexualizam... Até você dizer que “chega! Não quero essa porra”. E aí corre atrás desse processo de afirmação de si.

LAÍS MACHADO E MÔNICA SANTANA

Foto de Andrea Magnoni

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A escatologia jamais poderá deixar de se valer das prerrogativas do clichê. Eles nos são úteis há milênios. Fazendo bom uso de uma frase feita e de sentenças prontas podemos começar muito bem um discurso sem soarmos pretensiosos, assim distanciando-nos da iconoclastia, da 

originalidade. E o interessante é que podemos buscar raciocínios equivalentes em aspas que convocam à mesma mesa naturalistas marcianos e escritores sauditas de autoajuda.

 

“Quer pouco: terás tudo/ Quer nada: serás livre”. “Eu não quero promessas. Promessas criam expectativas e expectativas borram maquiagens e comprimem estômagos”. O primeiro é Fernando Pessoa, a segunda é Tati Bernardi. Por aí.

 

No nono dia deste mês marcial fui ao teatro Gamboa Nova ver o Pequeno manual dos amores em andamento sem saber nada sobre nada. A expectativa era a de quem constrói sua modesta quarta à noite alicerçada numa peça escolhida a esmo na agenda cultural.

 

Tinha uma noiva ébria fingindo beber da boca de uma garrafa fechada de Johnnie Walker. Tinha uma cantora de forró (amiga do diretor) que subiu ao palco com um sanfoneiro (amigo da cantora). Tinha encenação de improviso ao estilo Quinta Categoria (MTV) e Barbichas. Tinha reprodução ipsis litteris da piada de Gregório Duvivier sobre a pronuncia brasileira do nome Woody Allen. Tinha esquete histriônica sobre a viadagem enrustida na cultura do futebol. Tinha homenagem ao professor presente na plateia. Tinha até, acreditem, piada sobre Paulo Coelho. 

 

Tinha bastante coisa para entreter os conhecidos do grupo sobre o palco.

 

Nada disso me incomodou: reclamar de amigos se divertindo é meio estúpido. Resolvi não me achacar. Afinal, a amizade é das coisas que ainda valem a pena. Além disso, há o argumento pragmático. Eu, no caso, sou formado em Letras. O que se espera de um profissional da minha área? Trabalhe numa escola pública, finja que ensina e os alunos fingem que aprendem. Com sorte você sai vivo. O ser humano se forma em teatro, finge ser engraçado, a plateia no escuro finge se divertir. Justo. Daí poderíamos partir em direção a um forte etmoepistemológico bem pedante a respeito do conceito de fingimento na arte (fictione/fingere/mimese/até quando no início era o verbo). Há coisas mais, porém.

 

O problema naquela noite estava comigo. E com Candeias. 

 

No início do processo, o rapaz que se dizia diretor performava de maneira bufa coreografias do arrocha e interagia com o público dizendo como aquilo o emocionava. Silvano Sales e outros artistas embalavam a primeira fase da noite, que funcionava no sentido de trabalhar a empatia com os espectadores escondidos na penumbra. Para o bem ou para o mal, hoje não há como ignorar a lira de Pablo, todo mundo na Bahia – e

quase no Brasil – tem um pé dentro ou fora do arrocha. A putaria da dança, a qualidade controversa dos arranjos (playback de teclado, saxofone), o coração rasgado, sofrido e ridículo a um só tempo. Voltando à intro, o tom utilizado pelo ator/diretor foi aquele já bastante conhecido pela classe média baiana: dizemos gostar de arrocha, mais pela esculhambação da coisa que pelo movimento, mas ao mesmo tempo cultivamos os mais tenebrosos preconceitos dentro de nós. Desses deliciosos paradoxos.

 

Adolescente, eu imitava Silvano Sales. Com o punho dobrado e as ancas em oito pulsante, eu forçava a garganta em trava entoando os: “Quando você me deixou/a minha vida desabou”, “A ferro e fogo não dá”. Meus amigos adoravam a atualização dos versos em meu talhe esguio e próximo; todo um outro do alien pobre de Silvano1. Era o folclore: a música que de fato emocionava a galera de Candeias sendo apropriada por mim em ridículo para entreter a classe média debutante. Até hoje quando eu tô bêbo eu faço isso.

 

À parte tais apropriações nitidamente subordinativas, a questão do humor permanece intrigante. Mês passado, Paulo da Costa e Silva publicou um texto no qual põe em perspectiva funk carioca e rap paulistano: em SP o rhythm and poetry segue sua trilha sonora sisuda rumo à articulação política, no Rio, os MC’s transformam o funk em gênero humorístico zoando tudo e todos em sua adesão sensualista ao presente. A verve da comédia cultivada nos seios de MC Carol e na pança de MC Bin Laden faz pensar no riso dirigido ao arrocha pelo pessoal no Pequeno manual dos amores em andamento, o riso que nós lançamos. 

 

O funk se zoa, o funk zoa todo mundo; há um projeto autoconsciente. O arrocha não se zoa nem zoa ninguém2, o arrochada é zoado; geralmente pela classe média. Dão risada da dança, da vestimenta e até da cara do pessoal; um riso de fora para dentro, numa relação meio sádica meio cínica, visto que no estágio contemporâneo Pablo e outros artistas fazem shows em lugares em que pobre não vai: Armazém de Villas do Atlântico, Barra Hall, etc.

 

Tudo isso pra dizer: na noite que fui ver a peça em questão, não ri nessa hora de zoeira com o arrocha. Talvez porque esteja ranzinzando mais com os outros que comigo mesmo no decorrer dos anos. Uma reflexão útil para se fazer nessa seção de autocrítica.

 

Por fim, digo que há esse clipe de Pablo: Casa Vazia. Vê lá no Youtube.

 

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1 Duvido que algum deles tenha mais dinheiro que SS hoje.

2 Considerar exceções. Vide música recente de Silvano Sales “ Eu levei foi gaia”

Por Igor de Albuquerque

Por Daniel Guerra

DAS FISSURAS SINCOPADAS

Vivemos um período bastante complexo, e freqüentemente essa complexidade transparece de forma paradoxal. O fato é que vai tornando-se mais e mais visível - não só na arte - um descompasso problemático entre representação e acontecimento, identificação e diferença. O paradoxo é o seguinte: se de um lado estamos cientes de que uma forma de representação do mundo (ou até todo um sistema de representação) morreu, de outro há emergência e luta por novas estratégias representativas - e mais especificamente, de representatividade política e social.

 

Mas é curioso o fato de que mesmo em meio a essa complexa conjuntura, existam aqueles que optem por uma volta esquecida ou cínica aos regimes de identificação legados por uma história evidentemente colonialista. (Toda imagem carrega, quer queira quer não, essa história). Sobre isso o campo teatral soteropolitano soube testemunhar sempre. Porque até hoje não se colocou seriamente em xeque o regime da representação no campo da estética cênica, e o que se busca no mais das vezes - e de forma geralmente fracassada - é uma revitalização do teatro baseada naquela velha idéia de identificação imediata entre público e obra tal como era buscada nos famosos “tempos dourados do teatro baiano", quando a cultura do axé-pra-gringo-ver era relacionada com o fato concreto de que o turismo e as políticas da cultura eram pensados sob a mesma ótica. Hoje, passados alguns anos e com outra geração tomando a dianteira do pensamento sobre a cena, vemos que aquele brilho dourado-dendê era basicamente circunstancial. Agora não há mais pelo que lamentar, e os problemas do presente são tão complexos que não permitem o luxo da nostalgia.

 

Elegi analisar a obra de Mônica Santana porque aí se coloca em evidência a fissura paradoxal entre a morte da representação e uma busca de representatividade, entre presença da diferença (singularidade) e regime de identificação. Mas ela não faz como os caracterizados acima; não escolhe uma volta nostálgica (e aliás, impossível) à representação. Situa-se num ponto crítico e articula suas intensidades. Portanto essa é uma boa ocasião para a discussão sobre a contemporaneidade no teatro.

 

Subsiste em Isto Não É Uma Mulata dois planos que por vezes se comunicam e por outros se afastam. É que sua estrutura, potencialmente performativa (revela-se como intenção), se dá ao mesmo tempo - falando tosca e rapidamente - como “espetáculo de representação”. São signos o que vemos serem emitidos pela atriz. E estes signos estão carregados de informação. Informação identificada não só à manifestação política da atriz (como sempre faz questão de pontuar, mulher negra) como ao fluxo emergente do assunto da representatividade nas redes sociais, na grande mídia, e é claro, no cotidiano mais imediato. A questão então, seria não se perguntar “como este espetáculo executa bem ou mal tais ou quais representações” mas sim “como este espetáculo, que se propõe justamente a problematizar a representatividade, trata a representação? Como se dá a articulação deste pensamento cênico?”

 

É claro que se poderia analisar unicamente aquela superfície de informação. Os analistas do discurso encontrariam aqui material abundante, assim como todo um campo de produção teórica feminista e negra (do qual a própria atriz faz parte ativa, como jornalista e pesquisadora em arte). Mônica não cessa de apresentar ao público, tanto verbal quanto gestualmente, índices de sua performance diária, empoderamento e incessante auto-investigação. Tudo isto ali delineia-se muito claramente, e se há sessões em que ocorre uma comoção intensa é porque há sem dúvida uma identificação direta entre público e ato. Vemos que essa identificação é efetiva porque está conectada ao fluxo dos tempos e à imanência conjuntural das urbes.

 

Há necessidade. Então a atriz torna-se representante de uma voz coletiva e testemunhamos a execução efetiva de um teatro didático de identificação política, de forma que escrever uma crítica sobre a “qualidade do espetáculo”, elencar “destaques” bem executados entre os elementos formais da cena ou sopesar a “interpretação da atriz” seria recair nos principais equívocos reproduzidos por tanto tempo pelas escassas críticas da nossa pequena-imensa soterópolis.

Vou permanecer portanto justo na fissura entre a estrutura de sua performatividade pretendida

- que afinal encontra-se concentrada no aspecto autobiográfico - e a superfície de representação simbólica, discursiva - que é a tônica geral do trabalho.

 

Como presenciei o espetáculo no Teatro Gamboa Nova (em sua primeira temporada), fico com ele. Pois bem, a escolha deste teatro, somada à posição frontal em relação a um público sentado e na maior parte das vezes escondido pela escuridão reforça um caráter expositivo do texto-manifesto. Digamos que todo manifesto seja, na sua raiz, expositivo. Mas existem formas e formas de expô-lo. A forma deste manifesto em particular retoma a expositividade fundante e a desenvolve ainda mais. Então vemos um texto-corpo-palavra tomando forma à nossa frente, de maneira consecutiva, causal e linear.

 

Tomemos como exemplo o primeiro movimento: há o discurso-imagem da faxineira, em que a atriz vem “limpando” o espaço do teatro dedicado ao público. Depois ocorre uma progressiva transformação/revelação da atriz-em-situação, começando pela sua subida ao palco. A partir daí o espectador fica com alguns rumos a tomar. Ou ele diz: a) eu sabia desde o início que era atriz mas mesmo assim eu “compro” - porque entendo “racionalmente” a idéia e concordo; b) eu não sabia, me espanto, coloco em xeque minhas questões racistas naturalizadas; c) eu sabia desde o início mas não compro porque mesmo entendendo, “intelectualmente” não concordo com aquilo; d) não importa se sabia antes ou não, o que importa é que eu me identifico de corpo e alma e memória com aquilo, então não só compro como também apoio; e ainda e), f), g) e milhões de outras possibilidades.

 

O que acontece é que, ao decorrer do desenvolvimento da primeira imagem, as ramificações possíveis (a, b, c, d...) vão dando lugar novamente a um só caminho de afunilamento. É realmente a estrutura de um texto expositivo. Existe ali na frente um corpo-suporte de idéias e informações bem desenvolvidas anteriormente ao acontecimento, e sua consequente e progressiva revelação a público. Então, se a imagem-faxineira, quando se transforma, abre-se em milhões de rumos imprevistos de espectação/relação, logo depois é trazida de volta ao curso normal e uno do discurso-rio. É como se aqueles afluentes abertos anteriormente - para continuar com a metáfora - voltassem para o mesmo leito original, numa operação de enrijecimento semântico. E então o corpo-suporte continua a nos mostrar signos: em forma de gestos, de apropriação de objetos, de palavras. É como se o palco fosse uma grande tela em que as palavras e gestos passassem ao decorrer de sua duração. Então o manifesto vai sendo falado (não apenas pela voz), e o espectador vai se pondo a par daquela forma retórica.

 

Ora, é claro que se vê um deslocamento político-performativo. Afinal é a autobiografia de uma atriz negra que está em questão. Isso é evidente. Existem informações sendo passadas, existe um corpo que é materialmente e semioticamente - na “superfície mais profunda, a pele” - o que diz. Mas por exemplo: o que moveria e provocaria um espectador a priori não-identificado ou até resistente, já que o manifesto teria a intenção de ser manifestado e fazer manifestar? Tão logo formulo essa pergunta me pergunto a mim mesmo se é necessária, se não feriria a intenção da própria criadora, que pode muito bem ser específica. Pode ser que a intenção seja realmente e radicalmente pedagógica, emergencial, aliás, como em muitos manifestos: inflamar, ensinar, informar, servir de exemplo etc…No entanto, no movimento final do espetáculo ocorre uma grande irrupção da política do corpo-em-vida (na sua singularidade) por sobre a política da representatividade e sua tendência cristalizadora. Mônica se veste de passista de escola de samba, e a partir de então é todo um corpo-samba e uma verborragia irônica totalmente sobrepostos, um passando a rasteira no outro, e os dois juntos dandovoadoras no espectador. Este movimento performa; quero dizer, coloca a crise na passarela - movimento em aberto, disposto a múltiplas entradas. Ora, se um corpo é o que fala, por isso mesmo essa fala estará carregada de corpo, de suor, de “falhas” - que aliás já não são falhas e sim novos discursos brotados do instante.

Então temos o corpo que samba (“na cara da sociedade”?)… Ele poderia cair, ele poderia ir sambando pra rua, ele poderia fazer qualquer coisa. Poderia cuspir na minha cara, por ex. a do “crítico performado" que escreve agora. Mas surpreendentemente (e agora sou realmente um crítico disponível ao abate) esse corpo volta à moldura do palco, volta pro discurso e pra passagem de informação. Mas também joga outra pedrada no final, que é quando Mônica fala diretamente pra gente: vejam, eu posso ser o que eu quiser. Aqui o manifesto extravasa do texto pela sua própria afirmação enquanto retórica, e suas rotas são imprevisíveis. É paradoxal mas assim é sua efetividade. Antes, percebia-se a maioria das ações dessa maneira: “ela quer falar isso e aquilo, então usa essa metáfora e aquela, aquele objeto etc.” Mas o final do qual trato faz o contrário: “eu vou falar isso e já estou falando” (sem metáfora-apoio). Aqui a atriz abandona o manifesto como discurso antecipado e coloca o corpo na roda como manifestação irruptiva desse manifesto mesmo. Existe uma ironia ácida que aciona e provoca outras possibilidades do estar. Nos destranquiliza…

  

Mas tudo isso são possibilidades. Talvez um manifesto político não necessariamente tenha de transparecer como tema, como forma da informação. Quando se trata de um pensamento cênico — diferentemente do retórico ou midiático — o político encontra ocasião de extrapolar a linearidade e tomar para si a problematização de suas próprias estruturas. Mas afinal, por onde atua a política senão por estruturas? Temas e informações são resíduos, e não à toa certo tipo de jornalismo (cada vez mais frequente) seja evidentemente carniceiro, e a multiplicação de tags e hashtags testemunham a favor do argumento.

 

Acionar outras possibilidades do estar significa acionar também outras possibilidades do pensar e do politizar, e é claro que estas por sua vez acionam a produção de novas formas de representatividade  — ou sua negação. Isto Não É Uma Mulata abre uma necessária e potente discussão sociopolítica, mesmo que no sentido do pensamento estético recorra a estruturas que reprimam a própria radicalidade performativa que daí emana. As estruturas, conscientes ou não, determinam o discurso e vice-versa, de maneira que se há signos transgressores de um lado, pode ser que por um outro atuem signos obscuros, subterrâneos, herdeiros últimos de uma história em visível processo de falência (como já pontuei, tal falência abarca a morte da representação enquanto unidade irrevogável). E o que é afinal o espaço de um teatro senão e antes de tudo morada de fantasmas? Não que não se deva reabitá-lo, espero que me faça entender…

 

Tomei o cuidado de acompanhar o trabalho ao decorrer de sua própria imanência, e a partir do ponto de abertura mais potente interrogá-lo retroativamente, enquanto outros insistiriam em impor faltas criadas por uma transcendência valorativa qualquer. Neste ponto, seguindo a reverberação do próprio espetáculo, sinto a necessidade de expor meu lugar de fala (sempre precário aliás, consequência da dieta política que me imponho diariamente) — e não nos enganemos, isso ainda é a obra atuando, isso é sua estética, sua estrutura, que ainda age e reage… aqui e agora. Pois bem; o neocrítico que vos fala, nascido e criado em Salvador, é (de)codificado como homem branco (mesmo que se debata dentro dessa definição — e os melhores diriam com um lindo sorriso irônico: “pode se debater à vontade meu caro…”). Mas é evidente que isso não autoriza à cegueira, muito pelo contrário. É certo, basta olhar para os lados: principalmente nesta cidade o racismo determina todas as relações, e de forma sistêmica, multilateral; ou seja, ninguém deveria sequer dar-se ao luxo de se pensar fora da situação. Para qualquer um minimamente atento tudo de repente fica muito complexo — e isso fere por todos os lados… Mas a complexidade nunca foi desculpa para o silêncio.

Foto de Andrea Magnoni

Até hoje não se colocou em xeque o regime da representação

Depois do escuro que sempre relembra que o teatro é feito de morte, Darth Vader de Olinda aparece na cadeira giratória envolto em fumaça. Então o primeiro riso da platéia é a senha e a marca. Darth retira o capuz e aparece Ricardo Kannário trazendo na voz séculos e séculos de teatro baiano, com óculos escuros dizendo que é Ramlet (com erre e não agá). Com um sotaque não necessariamente soteropolitano, mas aquele sedimentado sotaque soteropolitano de teatro soteropolitano, Ricardo-incorporação-de-séculos-de-teatro-soteropolitano-Kannário levanta fazendo vibrar energias de teatro essencial. Mas Ricardo Stoklos é muito melhor que a velhota. Seu corpo sequer precisa mover-se demais. Meyerhold trabalhou ali, junto com Déda, dois santos por uma cabeça, dizendo “menos é mais”. Porém que nada, o menino já veio de berço e mostra toda a ginga incorporada em anos de lida. “Menos é mais o caralho, eu levanto um dedo e eles riem”. Com uma externalidade monumental, elegante, sacana, calculada e calma, agora é Ricardo Brecht: tem todos os fios nas mãos e os vai manipulando. Tem um Ricardo vendo o que o outro Ricardo faz - tem um Ricardo que chora por dentro ou por fora, enquanto outro, por fora ou por dentro, sorri vendo Ricardo chorar. Mas nunca o Brecht baiano: o Brecht de Cunha, o Brecht de Marfuz, o Brecht de Dourado, o Brecht de Ceccucci, o Brecht de Vargens, o Brecht do Vila, o Brecht de Júlia. Ricardo Brecht é o Brecht alemão, o alemãozão original, o que me leva pra Alemanha e depois pra Inglaterra, porque as luzes de ribalta me colocam em contato romântico com o maior teatro popular do mundo, o elisabetano, em que coexistia sombra com riso, e onde os artistas realmente ganhavam dinheiro com o suor do trabalho. Shakespeare: o público está na minha mão. É verdade. Teatro mínimo de Ricardo Castro III, que com pouco (fita crepe) faz um milhão. Vive disso, e isso transparece - é pura paixão, vem como signo visível. Mas ele não transpira, não, não, não… porque além de ser Ricardo Castro III, amigo de Shakespeare e Queen Elisabeth e do público Real, é também

Ricardo Stoklos, só que melhor que Stoklos porque com apenas um dedo abala todas as estruturas. Faz um teatro de citação também, como James Joyce gostaria de ter visto: Ricardo Bloom. Frases que eu não entendia mas que o público entendia e apareciam aqui e ali estimulando as glândulas sorridentes muito facilmente. Mas no frigir dos ovos o que ele é mesmo é Ricardo Fo. Ricardo Fo Deu porque esse mero gesto fez a platéia ir ao delírio (aquele que consiste em bater com a palma de uma mão na outra mão fechada) e eu aprendi muito nesse momento, pra mim foi genial; e Ricardo Fo Deroso, porque é um monstro sagrado e vive há muito tempo de teatro. Ricardo Fo é parceiro de Fernanda Mo, Paulo Au e Sarah Ber, assim como de Iami Re, Carlos Be e Marcelo Pra entre tantos outros orixás. Viverão para sempre em nossos corações como o axé music na cabeça do povo. Ricardo ama seu público, e isso é perceptível ao final de tudo, no agradecimento, que aliás lembra os agradecimentos dos teatros classicistas, que com a luz de ribalta fica ainda mais bonito, bonito mesmo; aquele movimento em que o braço se estende pro lado como num balé e o pé fica na ponta discretamente na mesma hora em que a cabeça e tronco caem pro lado oposto. Mas calma, voltemos… Antes da luz de platéia ter acendido ocorreu a grande visão. Naquele lapso do blackout, uma senhora muito parecida com as outras (maquillage-superperfumadas-com-seus-maridos) surgiu na cadeira ao lado, brilhante com um fantasma. Olhou nos meus olhos e com um sorriso disse: “o público também é uma escolha estética”. Escutei como se escuta nos sonhos, onde uma frase de Sócrates pode surgir da boca de uma girafa. Senti um pequeno calafrio e antes de responder qualquer coisa a luz já se havia acendido e Mme. Uzêda desapareceu deixando apenas um sentimento de “fica a dica” no ar. Eis o tipo de coisa que só pode acontecer na nossa Salvador de todas as Dinamarcas.

SER E NÃO SER

Por Daniel Guerra

Foto de Shirley Stolze

PRESENÇA E ASSOMBRO

 

No ano passado, via Edital de Grupos e Coletivos Culturais, o Teatro Base trouxe o LUME Teatro para um intercâmbio com o grupo nos nomes de Carlos Simioni e Renato Ferracini. Tal feito foi o resultado de quase 5 anos tentando trazer os integrantes do LUME. Além do intercâmbio, cada um se dispôs a uma ação aberta ao público: Simioni apresentou a sua potente demonstração de trabalho, Prisão Para Liberdade e Ferracini organizou uma aula aberta – muito instigante – chamada Conceituações Sobre o Corpo em Arte. Durante todo o intercâmbio com os atores do LUME – eles vieram um por vez –, me propus a não só agenciar essa troca de saberes pragmáticos, mas também de organizar conversas, tanto após as horas de trabalho quanto, pela noite, numa mesa de bar. No conjunto de conversas que organizamos, principalmente no bar – Simioni indo bem mais vezes ao Bar Ancorador -, existiram dois momentos onde minhas motivações artísticas foram estremecidas, fazendo-me crer que estava preso numa espécie de palingenésica, num ciclo de reencarnações artísticas, numa perdição que, uma vez esvaziada dentro do vai-e-vem do processo labiríntico, me anestesiou – soporífico pela osmose. 

 

O primeiro destes dois momentos surgiu quando eu perguntei a Simioni para onde eu canalizaria a “presença” – venho me distanciando progressivamente de um teatro representacional e não me interessava, naquele período e em primeira instância, ao que era entendido por “presentificação”; pensamento em evolução dentro de algumas iniciativas performáticas. Depois de beber mais um gole da cerveja, ele respondeu que não sabia, e que no fundo essa pergunta teria uma relevância no que tange a alguns cernes, bases e fundamentos do próprio acontecimento teatral. Naquele instante dialogamos sobre a tão difundida “arte do encontro” e, nas entrelinhas, parecia me dizer algo como “isso é problema seu, resolva”. O segundo momento foi justamente após a aula aberta de Ferracini, quando em uma conversa com algumas pessoas que tinham assistido a palestra ele comentou: “Eu vi muita coisa em teatro, dança e performance, já custa muito para eu me assombrar ou me surpreender com algo”. Essa informação de Renato fez com que eu analisasse minha “longa e extensa prática teatral de cinco anos”, e me assustei em perceber que eu guardava a mesma sensação de não-espanto. Isso me fez revisitar alguns empreendimentos com os quais me assombrei, entre acontecimentos baianos e não-baianos nas artes cênicas. Mais à frente citarei alguns eventos ocorridos em Salvador.

 

 

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: UMA ACEITAÇÃO

 

Contudo vejo que há uma espécie de movimento ou de aquiescência estética de que tudo em arte já foi feito, que já houve aberturas suficientes – em principal se tratando de avant-garde europeia e das inciativas não-arte e/ou pós-modernas. Que não há mais nenhuma porta a ser aberta e que, fatalmente, nos resta a análise do fazer tendo como parâmetro tudo o que foi transformado – sempre me foi curioso ler pesquisas em artes cênicas, as desenvolvidas nas pós-graduações, onde o artista, analisando a sua própria obra, se coloca como um crítico que estava a léguas de distância daquele acontecimento. Essa minha percepção se dá, obviamente e inevitavelmente, a partir do que acontece na Bahia e especificamente em Salvador. Não se trata, pois, de uma repulsa ao que acontece, inclusive a bem feitoria nas artes cênicas baianas é uma espécie de motor para grande parte dos artistas e esse bom fazer está calcado no que é entendido sobre um “bom teatro”.

 

A atuação no que tange ao bom teatro – que, de fato, e a partir de suas engenharias, é bom – implica em muita coisa, não somente no modo de fazer, mas de como se produzir, como adentrar e se manter no mercado, como competir ou se equivaler a outras mídias, prisão a possíveis gêneros estéticos e, especialmente, de como analisar e criticar as obras, e esse método consome a produção em artes cênicas há anos. Tal estrutura crítica ainda sendo usada como forma para analisar obras que atuam em outras zonas, o que é complicado.

 

Logo, se apresenta uma outra força que questiona esta estrutura, as classificadas como pós-dramáticas, performativas – as que dialogam nos eixos de risco – e que se lançam numa experimentação de multilinguagens (ver mais abaixo). Essa colisão lança as artes cênicas para um problema ôntico, pois nos aprisionamos sempre nos fenômenos mais acessíveis (principalmente aos olhos e ouvidos) optando por não dilatarmos os sentidos para o que é visto, vendo além do que acontece e além da estrutura. Aceitando uma condição alea iacta est, sendo escravo das reações do “público” ou de outros artistas. Logo, seria necessária uma libertação de uma cristalização perceptiva e/ou criptográfica da estética em artes cênicas, uma espécie de reforma que pode ser, com efeito, bastante quimérica.

 

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: VER O QUE SE QUER VER

 

Isto posto, é evidente – mas também posso estar enganado – que tanto os artistas quanto o público em hipótese (especificamente, aqui, aquele que não é do meio artístico), buscam, por caminhos diferentes, uma empatia quando se relacionam com as obras – essa empatia, muitas vezes, pode ser “um ver o que se quer ver” – e, em algumas medidas extremas, aprisionar na Sibéria iniciativas que se colocam em outra frequência que não o do expectante.

Este “ver o que se quer ver” consiste na expectativa do artista-expectante, quando se coloca diante da obra de outro, de ver naquilo as suas próprias projeções estéticas que, comumente, podem estar arraigadas no bom teatro, quando não, em outros supostos interesses estéticos e pessoais como os de algumas ações desconstrutivas. No entanto, para o público em hipótese há uma esperança de ver no teatro, ou em qualquer iniciativa cênico-performativa, o que, possivelmente, ele vê em outras mídias. Porém, diferente do artista que ocupa o lugar de expectante, o público em hipótese sustenta esta expectativa a priori, mesmo que inconscientemente, já que é o mais aberto para possíveis assombros “descriptografados”.

 

No que se refere ao artista diante da obra de outrem é perceptível esta possível conformação do que é posto enquanto parâmetro artístico, e isso se evidencia em duas vias que se unem no campo das projeções estéticas citadas acima. Seria, o caso de ‘gostar’ por cumprir com a expectativa de um bom teatro e/ou virtualidade dessa recepção ou a indiferença – que é pior do que não gostar – por não cumprir as necessidades subjetivas, as possibilidades viáveis elencadas nesta projeção do receptor em questão. Além disso existe também uma problemática social, que seria negar as propostas cênicas que dialogam em outras frequências – e eu não falo somente do que não é dramático, mas, inclusive, do que é. Essa repulsa é sustentada com tenacidade por alguns de nós. Essas negações frequentemente são responsáveis por cisões, criação de ilhas e pulverização de diálogos que poderiam conduzir a um novo pensamento estético dentro das artes cênicas baianas.     

 

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: NOSTALGIAS EM EXTREMIDADES  

 

A suposta ideia de que o teatro baiano vive numa eterna crise, também é sustentada por nostalgias. Seja pela saudade dos tempos áuricos entre os anos 80 e 90 onde houve uma explosão de produções teatrais, momento de destaque para diretores como Fernando Guerreiro, Luiz Marfuz, Paulo Dourado – sendo muitas vezes referenciada, também, como a época dos grandes produtores culturais – ou pela saudação as iniciativas artísticas dos anos 60/70 no Brasil, a exemplo de Zé Celso, Hélio Oiticica e a poesia concreta, para citar alguns exemplos – sei que são exemplos insuficientes para ilustrar a profusão artística daquele período. O saudosismo dos anos 80 e 90, geralmente é referenciado por uma parte da classe que acredita numa falência da máquina produtiva, que, por consequência, afasta o “público” das produções teatrais baianas. É, a certo ponto, uma visão de que há escassez qualitativa nas obras cênicas baianas. Há também a crença em uma improdutividade – agora o elemento quantitativo –, que está na negação de algumas inciativas, a exemplo das obras que têm o risco enquanto motor. O outro grupo acredita que a forma de produção em artes cênicas, principalmente a ensinada nos âmbitos acadêmicos, está datada, empoeirada; blindando, por vezes, o acesso a um pensamento crítico mais concernente “do que foi”, o que ocasiona em muitas vezes na repetição de estruturas que flertam, inclusive, com os pensamentos estéticos que negam. Enquanto de um lado se corre para uma retomada progressiva do “público”, inclusive a partir de uma retomada do bom teatro – e até acho que isso vem dando certo, e isso é valoroso –, do outro há uma busca por uma colagem de ferramentas que abarque outras formas de criação artística, estreitando relações com a performance, audiovisual, dança e outras linguagens, além de uma apropriação semiótico-cultural, operando em zonas Multi-Inter-Trans disciplinar. Um enfrentamento entre estrutura e mercado.Ambos os caminhos são extremamente válidos e importantes, mas creio que somente pensar ferramentas, misturas ou “como o público pode voltar a se interessar pelo que se produz nas artes cênicas” é insuficiente para uma reviravolta estrutural que possibilidade a transformação de um corpo que insiste em estar anestesiado. Isso, em suma, seria o problema ôntico, do que nos é posto, logo, um problema fenomenológico, já que não se coloca em questão as bases da estrutura, o que fundamenta “a coisa”, mas, sempre, a própria estrutura, a própria máquina a nível Bahia – ciclos sem saltos quânticos. Pavis em A Encenação Contemporânea – em minha opinião o seu melhor livro, posto que vemos um crítico totalmente em crise – sugere uma outra análise do que ocorre na França (também ressaltando algumas ações estrangeiras) em termos de artes cênicas, uma análise que alie a necessidade semiológica com a fenomenológica. Talvez seja uma alternativa essencial, tanto para o artista quanto para o crítico, uma oportunidade de visar uma possibilidade outra, não somente na experimentação de uma outra forma de análise ou dentro do processo de criação, mas também experienciar algo além fenômeno, criando e analisando, e quebrando uma dependência ao mercado e a técnicas catalogadas. Isto é, gerenciar uma crise nos fundamentos estéticos.

 

PROPOSIÇÃO LASCIVA

 

Ou seja, para um novo pensamento estético no cenário teatral baiano, seria mister uma proposição ontológica, se isso é possível, emancipando-nos de uma dependência criptográfica que não só se fomenta de nossa realidade simbólica ou ôntica, mas também das reproduções dos símbolos/mitos estéticos. Superar o que está posto é necessário para o assombro, ir além da estrutura. Questionar, por sua vez, as bases estéticas. Segundo Heidegger, “o nível de uma ciência determina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais”. Ora, qual seria afinal o

conceito fundamental das artes cênicas?

 

Acredito que seria o próprio conceito de presença – ou algo que se equivale a este termo –, termo este que já deixou muita gente maluca em nosso campo artístico. Mas, por mais que pareça uma visão ainda incipiente, de um possível conceito fundamental em artes cênicas, escolho este termo enquanto fundamento pelo seu admissível sentido mais tradicional, o de entre, de “sendo”, uma temporalidade ou uma “tensão do tempo”, como visto em Heidegger, aliado a uma força perceptiva e, fundamentalmente, relacional a partir de um movimento que só consigo chamar de “um fora dentro”. Tentando abarcar outros sentidos – e justamente o sentido -, fugindo das circunstâncias propostas do entendimento de presença (dilatação, tensão, beleza, tônus, força e etc.).  Ou seja, é neste fundamento, que, de modo sistêmico, mora uma revolução estética em artes cênica em minha humilde, e talvez leviana, visão. Enxergar presença como possibilidade para o assombro, como fenômeno e diretriz além fenômeno. Logo, área de transformação e criação. Puro acontecimento talvez. Daí nasça uma estrutura emancipada, articulada por uma nova crise no conceito dentro das artes cênicas baianas.  

 

Presença = Gerúndio Performativo

 

TRÊS EXEMPLOS

 

Pensando nisso, tentei me recordar de algumas possíveis obras, aqui de Salvador, que se aproximaram desta crise, que anunciam esta possibilidade. Citarei elas sem recorrer a uma análise detalhada do acontecimento, porque ambas inspiram outros textos e caminhos muito diferentes de análise. Primeiro um acontecimento recente: Reino de Thor Vaz (2015), que a partir de uma verborragia retórica, e criando uma espécie de alegoria, um palestrante, agencia uma atmosfera de desorganização psíquica para com quem compartilha daquilo. Por este viés a presença se apresenta a partir de uma relação conturbada de mim para com Thor. Essa “perturbação” é evidente em muitos que se inserem naquele espaço. Uma Dança Para Omin, Orobroro de Laís Machado (2013): embora Oroboro, tenha minha participação – logo, peço aqui licença para esta citação – o solo de Laís nada teve de minha mão a não ser uma sugestão de onde apresentar o acontecimento – Laís, a poucos dias da “estreia” de Oroboro, jogou fora tudo o que eu tinha dirigido, criando uma outra coisa em casa. Quanto a esta obra de Laís, era assombroso, estranho e até imprudente como as pessoas, no ato ritual que finalizava esta obra, se lançavam para a performer – cortando os panos que a prendia, buscando consolo, inclusive, na própria artista. Neste sentido, a presença estava no “sendo” de uma maneira que até hoje não é compreensível, só era claro que houve um esquema rigoroso composto pela performer, onde parecia que ela levada as pessoas pela mão sem necessariamente tocá-las até o momento de uma total ritualização – Laís recebeu mensagens de pessoas, durante um bom tempo, falando de como elas estavam lidando com a resolução do que as tinha afetado. Essas duas obras, de Thor e de Laís (performances vistas por poucos), anunciaram, para mim, um teatro em seu sentido mais cru, ou cruel, de exposição, que não só convoca um assombro como também me faz repensar a ideia de presença. Outra obra, que não necessariamente se insere no âmbito teatral, mas numa ação performativa, é a proposição estética Biquíni Quadradão de Yuri Tripodi (2014). Ali, numa qualidade de proposição como, acredito, é defendida pelo artista, Yuri reinventa uma existência, um caminho que, cada vez mais o consome. Por esta via a ideia de presença é esgarçada numa qualidade de intervenção direta na rua e de afeto ao outro, uma ação direta na composição de um possível novo comportamento: presença como a própria estrutura de enfrentamento. 

 

 

O que eu vejo como problema ôntico nas artes cênicas da Bahia – ou até como um grande problema das artes cênicas – é justamente o nosso enraizamento num processo estrutural que já dura anos. Num processo estrutural que ou se valoriza ou se nega, mas sempre nele mesmo, mantendo os fundamentos sempre intactos. Acredito que não há assombro sem um abalo sísmico no que motiva uma disciplina. Entretanto, não é uma proposição que preza por algo informe, mas sim por uma possibilidade de nascimento de novas estruturas, de novas formas, inclusive, de existências em arte, possibilitando outra configuração do olhar, da análise e da criação, e, fundamentalmente, encerrando o fluxo nostálgico. Pode ser que tudo isso não passe de uma alucinação, abantesmas que não levam a lugar nenhum – ou que somente eu tenha essa necessidade de assombro, desejando ver ou criar o que não esperava. Mas prefiro observar como uma proposição, hipótese, que seja. Uma tentativa de nos libertarmos de um pensamento estrutural que se encerra sempre nele mesmo, alcançando outras camadas além de uma conformação das circunstâncias dadas.

 

  Eco do Silêncio, foto de Urbano Neto.

ARTES CÊNICAS NA BAHIA

Problema Ôntico

Por Diego Pinheiro

V.1 n.1 2016

Fissuras sincopadas - Crítica ao espetáculo Isto não é uma mulata , por Daniel Guerra

Reverbera de Olga Lamas do espetáculo Escape

Igbe Antônia - Crítica do espetáculo Antônia, por Diego Pinheiro

Rebate à crítica " Fissuras sincopadas' de Daniel Guerra

Crítica da não-crítica, por Daniel Guerra

Ser e não-ser, por Daniel Guerra

Uma dor de dente e  as mulheres de 30, por Laís Machado

por Igor de Albuquerque

ARTES CÊNICAS NA BAHIA, Problema Ôntico, Por Diego Pinheiro

Mônica Santana, por Laís Machado

Rebata à crítica 'Igbe Antônia' de Diego Pinheiro

C R Í T I C A

R E B A T E

Reverberação de Olga Lamas da Peça-Game ESCAPE, do grupo Era Game Studio.

R E V E R B E R A

C R Í T I C A

R E B A T E

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

T R E T A

R I Z O M A

E N C O N T R O

E N S A I O

S E L F I E

m a r ç o

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