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CRÍTICA - O Bobo
REVERBERA DE M.M
CRÍTICA - Paulada
REBATE DE Paula
CRÍTICA DA CRÍTICA 4
TRETA 4
RIZOMA 4
ENCONTRO 4
ENSAIO 4
SELFIE 4
REBATE - C. Rodrigo

Tudo pode ser, se quiser será

O sonho sempre vem pra quem sonhar

Tudo pode ser, só basta acreditar

Tudo que tiver que ser, será

 

Tudo que eu fizer

Eu vou tentar melhor do que já fiz

Esteja o meu destino onde estiver

Eu vou buscar a sorte e ser feliz

 

Tudo que eu quiser

O cara lá de cima vai me dar

Me dar toda coragem que puder

Que não me falte forças pra lutar

 

Vamos com você

Nós somos invencíveis, pode crer

Todos somos um

E juntos não existe mal nenhum

Vamos com você

Nós somos invencíveis, pode crer

O sonho está no ar

O amor me faz cantar

 

Lua de cristal

Que me faz sonhar

Faz de mim estrela

Que eu já sei brilhar

Lua de cristal

Nova de paixão

Faz da minha vida

Cheia de emoção

 

Tudo que eu fizer

Eu vou tentar melhor do que já fiz

Esteja o meu destino onde estiver

Eu vou buscar a sorte e ser feliz

 

Por Laís Machado

[SUB]Texto

Romeu e Julieta no aniversário de 60 da Escola de Teatro da UFBA

Tudo que eu quiser

O cara lá de cima vai me dar

Me dar toda coragem que puder

Que não me falte forças pra lutar

 

Vamos com você

Nós somos invencíveis, pode crer

Todos somos um

E juntos não existe mal nenhum

Vamos com você

Nós somos invencíveis, pode crer

O sonho está no ar

O amor me faz cantar

 

Lua de cristal

Que me faz sonhar

Faz de mim estrela

Que eu já sei brilhar

Lua de cristal

Nova de paixão

Faz da minha vida

Cheia de emoção

 

Lua de cristal

Que me faz sonhar

Faz de mim estrela

Que eu já sei brilhar

Lua de cristal

Nova de paixão

Faz da minha vida

Cheia de emoção.

O bobo, o príncipe, o risco - Crítica de O Bobo, por Igor de Albuquerque

Reverbera de Mamba Negra e Malayka SN do espetálo Romeu e Julieta

Paulada da Selva - Crítica à performance Paula Silva Selva, por Daniel Guerra

Rebate à crítica " O bobo, o príncipe e o risco "de Igor de Albuquerque 

Maçã, moinhos e espirais - uma aspiração cênica, por Águeda Tavares

Rizomapa do acontecido,  por Daniel Guerra

[SUB]Texto - Romeu e Julieta no aniversário de 60 da Escola de Teatro da UFBA, por Laís Machado

Efeito Nanicolina - Partir d'O Bobo, por Diego Pinheiro

Alguns vestígios - Sobre acontecimento, por Daniel Guerra

Ivana Chastinet, por Diego Pinheiro

Rebata à 'Paulada da Selva' de Daniel Guerra

A escrita crítica é constantemente pressionada por duas forças: a da linguagem jornalística e a da rigidez acadêmica. Desde o início optamos por ser uma revista digital, aberta ao fluxo das redes sociais, o que evidentemente aproximou o indissociável par produção-leitura, mas ao mesmo tempo nos expôs ao perigo de recair no reme-reme explorador de atualidades, tal qual se observa em grande parte dos sites culturais. E se nessa equipe somos todos artistas formados em escolas de arte, isso nos torna naturalmente predispostos a um endurecimento típico de quem passa grande parte de sua vida jogando com prosódias pré-fabricadas.

Por isso, cada edição é um verdadeiro desafio. Nas reuniões, entre cervejas, cafés e cigarros, passamos horas e horas discutindo não só o futuro da nação (como é comum entre dois taurinos, dois sagitarianos e um escorpiano), mas também sobre o status de nossa escrita-em-crise, a reverberação que cada texto encontra entre os leitores mais próximos, estratégias e novos modos de produção, veiculação e escuta.

Pensar e escrever sobre arte, nesses tempos politicamente frenéticos, poderia parecer um ato bastante dispensável. Mas sentimos que existe, em cada linha que escrevemos, um pensamento urgente, um cuidado e uma permanente auto-(des)construção. Isso, evidentemente, é política encarnada.

Os performers Diego Alcântara e Malayka SN produziram um Reverbera irruptivo a partir do espetáculo Romeu e Julieta, dirigido por Harildo Déda.

No Encontro temos Diego Pinheiro e a performer, ativista e pesquisadora Ivana Chastinet sentados na grama, sob uma luz branda de final de tarde, no bairro 2 de Julho, conversando sobre arte, política, corpos obscenos e por aí vai.

Desta vez é Daniel Guerra que delira um Rizoma, depois de testemunhar o espetáculo Como Medeia Para Minha Mãe, de Lara Duarte.

Laís Machado Treta, com ajuda da cultura pop infanto-juvenil, o espetáculo Romeu e Julieta.

Na Selfie Diego Pinheiro produz uma contra-ironia a partir de suas vivências durante o espetáculo O Bobo.

Daniel Guerra faz um Ensaio sobre o conceito de acontecimento, essa palavra misteriosamente recorrente, objeto de alguns olhares da edição passada e presente até hoje em sua concepção artística.

Por fim, reiteramos o convite que fazemos a cada edição: chegue mais perto.

A Barril continua sendo um espaço onde o trabalho é revelado enquanto obra, o pensamento é movimento, e a o ato de criticar torna-se revelação e crise. Nosso sistema rotativo de colunas e colunistas, e as diferentes estruturas provocadas a cada escritor, só reafirmam essa vontade de transformação, essa dança do pensamento.

A partir da edição passada começamos a convidar colaboradores externos, e isso amplia ainda mais a complexidade discursiva, a multiplicidade de pontos de vista. Estaremos atentos ao entorno, vislumbrando sempre novas potências a agregar.

Nas duas Críticas desta edição, temos duas vertentes das artes cênicas, o teatro e a performance, contemplados por Daniel Guerra e Igor de Albuquerque, que viram respectivamente Paulada Silva Selva e O Bobo. Os textos são seguidos pelos Rebates dos criadores Paula Carneiro (em conversa com Alex Simões) e Caio Rodrigo.

Na Crítica da Crítica, a nossa colaboradora convidada do mês, Águeda Tavares, lança um olhar provocativo sobre as reverberações causadas pela Crítica de Diego Pinheiro e o Rebate do coletivo COATO a partir do espetáculo A Maçã — um Acontecimento cênico, contemplado na edição passada.

m a i o

Reverberação de Mamba Negra e Malaika SN do espetáculo Romeu e Julieta - Da Cia de Teatro da UFBA.

Por Igor de Albuquerque

O bobo, o príncipe, o risco.

Ferramentas poderosas trazem em si cargas de risco proporcionais à sua força. Uma faca dá o poder para atacar ou proteger a família de terceiros, mas, se mal utilizada, a faca vira arma para o inimigo. A mesma faca, nas mãos de uma criança, espalha destruição no interior do próprio clã. O cúmulo disso é a bomba atômica.

Assim também é a ironia, essa arma. Capaz de deslocar sentidos e realidades a partir referenciais mil, a mais bela e necessária verdade dita de maneira irônica, porém maldosa, pode acabar com a pessoa errada. Até mesmo a ironia impertinentemente perfeita, aquela cultuada pela arte e pela oratória, dita na hora certa ao interlocutor perspicaz, envolve sérios riscos para os envolvidos. O sujeito irônico coloca-se numa posição elevada em relação ao assunto ou objeto criticado, mas ao mesmo tempo abdica da nobre postura indiferente característica dos verdadeiros sábios. Se ele é tão inteligente assim, por que diabos não deixa as besteiras de lado para se ocupar das coisas dignas de seu intelecto superior? O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro? Essas perguntas são intrincadas, tão difíceis, que a maioria de nós responde a elas com mais uma curva retórica através da autoironia, essa redenção.

Caio Rodrigo, em seu solo O Bobo, sacaneia a si e a tudo. Já na abertura, que lembra as chamadas caricatas de lutadores de boxe ou MMA ao ringue, ele anuncia a ficha poético/profissional do staff: Co-diretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho (a roupa se resume a uma cueca preta vagabunda, “extreme” bordaram nela), por fim, anuncia-se o ator/criador meio frustrado aspi-

Foto de Diney Araújo

O sujeito irônico coloca-se numa posição elevada em relação ao assunto ou objeto criticado, mas ao mesmo tempo abdica da nobre postura indiferente característica dos verdadeiros sábios. Se ele é tão inteligente assim, por que diabos não deixa as besteiras de lado para se ocupar das coisas dignas de seu intelecto superior? O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro?

Crítica de O BOBO 

-rante a professor da UFBA. Se as informações conferem, não se sabe, o texto já começou.

Texto, aliás, bastante vívido. Rei Lear, Hamlet, Caetano Veloso, Gracias a la vida e ensaios filosóficos em bricolagem com fragmentos inéditos sopram o verbo a ser materializado nas muitas vozes em cena. Ouve-se em corpo a aproximação crítica em relação ao cânone por parte dos envolvidos no processo: as máscaras prodigiosas, a luz precisa, o tablado móvel rebuscado, a guitarra distorcida dissonando. Há algo ali do Bergman teatral de O Rito e Noites de Circo.

Uma das cenas mais intrigantes se dá numa posição que não exibe a carne, na verdade a esconde e constrange. De dentro de um buraco fumegante aberto no tablado, o ator veste uma máscara branca sob um boné cubano. Dali, ele suará durante alguns minutos as ácidas lições políticas do Príncipe de Maquiavel, a todo tempo rearranjando de modo irritante o suporte do microfone diante de si. A corporificação da filosofia maquiavélica naquele segundo andar silencioso e amplo do Teatro Gregório de Matos faz descer sobre o espectador uma atmosfera distópica, esteja ele ou não em dia com os noticiários da política local e internacional dessa segunda metade dos anos 10.

Todavia, o risco espreita. O discurso de deboche autoirônico por vezes dá voltas sentimentais em torno de questões que não são trabalhadas o bastante. No segmento do carnaval, por exemplo, encena-se uma paranoia em que o artista dentro do ator/autor quase morre metaforicamente numa avenida desse mundo estúpido e sem sentido. Ele quase decide desistir de fazer teatro, afinal, “para quem se faz teatro?”, ele se pergunta. Ora, essas perguntas manjadas e chatas do mundo da arte, se precisam mesmo aparecer, que 

venham de modo menos derramado. Uma outra pergunta é dirigida à plateia: “Quantos de vocês aqui tem empregada doméstica”? Assim, do nada, sem uma reflexão cênica devidamente performada, essa provocação soa gratuita e anódina.

Na experiência de O Bobo, temos diante de nós a oportunidade de presenciar argúcia e inteligência tornadas matéria no corpo de Caio Rodrigo. Por mais que leia os mais ácidos ensaístas, os comediantes mais espertos, ao leitor ou espectador de cinema sempre será alheia a sensação de compartilhar a presença de pessoas realmente interessantes. Há quem morra sem nunca tê-las tido por perto.

A certa altura, o ator diz: “Eu não quero ser o bobo”. Não, Caio, definitivamente você não é bobo. Mas a ironia também mostra o que em nós há de pior. Não tem como ser melhor do que isso. 

C R Í T I C A

Rebate à crítica "O bobo, o príncipe e o risco” de Igor de Albuquerque

Por Caio Rodrigo

Que belo texto! Uau! Eleva-me a potências impensadas e impotências imanentes, conduzindo-me plenamente à categoria de Herói da minha própria tragédia! Pura purgação!

Pegue o dicionário amigo, vamos Bricolar!

 

Bricolagem, esta palavra existe nos dicionários. Que merda, poderia não existir;

 

Eis a questão: “Teatro pra quê, para quem?” pergunta batida, revisitada que retorna no centro do texto em sua teatralidade construída: O mero prazer do sarcasmo vale a lida? É essa a manifestação mais vigorosa da racionalidade? A que custo? Ou no fundo há uma forte pulsão didático-moral ante o outro? Essas perguntas são intrincadas, tão difíceis que a maioria de nós responde a elas com mais uma curva retórica através da auto ironia, essa redenção.

Então, risco um projeto, uma imagem, uma interrogação. A ansiedade risca minha respiração, transpiro nas mãos e começo em silêncio, a cortar o espaço. Agora, já acompanhado e cheio de cansaço e desejo, seco o suor e me pergunto entredentes: Por quê? Leio o que acabo de escrever e penso: que merda, estou tentando falar bonito.

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Voltei, vi imagens. Prefiro ver seus filmes. Há uma descrição assombrosa sobre eles no Wikipédia. Não leiam, não é ironia, não é verdade, muito menos mentira. É simplesmente assombroso.

Vamos voltar.

Há quem não escute o seu próprio silêncio.

 

Tudo tão claro está. O silêncio é indecente. Há de se gritar ao menos. “Gritar ao menos”, bonito isso! Nesta hora os sábios dão a sentença final, se equilibrando em cima do muro a plenos pulmões com grave urdimento vocal a priori: Por favor, apaguem a luz.

 

Gracias a la vida... me deu dois olhos, que quando os abro vejo os espectadores procurando um lugar confortável no escuro. Gracias Drigo, eu que nunca vi seu rosto lhe digo:

 

Não se engane, o melhor de mim aparece em frente à TV, domingo comendo pipoca ao lado de minha companheira. É fantástico. Neste momento o que sinto é amor.

 

PS. ESTE REBATE SERÁ USADO NO ESPETÁCULO.

Vou criar um conversor automático de ironias. Ele só funciona com a assunção do ato irônico. Que maravilha!

O teatro clama o seu vigor em canto de sereia. A estética do inacabado será calculadamente bem acabada. E deve-se entender isso nas primeiras ações. Não podemos perguntar mais que duas vezes: o que é isto? E, se não há identificação, esteja preparado para algum diálogo. E o resto é silêncio. Este silêncio existe no dicionário Shakespeariano. Tudo que não foi ação é silêncio naquele momento trágico em que a corrupção – palavra que de tão usada perdeu seu ácido moral ontológico – grassa no seio da família e ganha potência de hipertexto até a morte trágica da personagem-título-dilema humano. E o que fica é a história a ser contada. E nos debruçamos sobre ela. E a cobra morde o rabo. E o resto...

Bergman diz em Da vida das marionetes: em silêncio, sou eu, mas quando digo “palavra”, estou em suas mãos. Não sei onde Bergman tomava café, o que ele gostava de ler, não gosto de biografias. Não sei como é seu rosto. Vou ver aqui no Google. Um minuto por favor. ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

R E B A T E

R E V E R B E R A

O corpo não é um território neutro. Foram necessários séculos de cultura para que finalmente pudéssemos pensá-lo como suporte, quando na verdade é processo inacabado e tráfego incessante de informações. Forma mutante e indisciplinada, matéria revoltada; não baixa a crina, mesmo sob o peso milenar da chibata e da educação. Emprego, produtividade, lucro, pobreza; mil e uma maneiras de domá-lo, torná-lo vazio, gasto. Na arte a chance, sempre aberta, de reposicioná-lo no tempo da carne.

Por isso a performance é um ato ritual. Essas palavras, tão desgastadas pelo uso, no trabalho de Paula Carneiro retomam sua dignidade fundamental. Um corpo redimensionado, reapropriado em suas sombras, mortes, dores e mutações, só poderia aparecer aos outros como revelação. Portador de mensagens, mesmo que não facilmente decodificáveis. Num mundo de mortos, a aparição do vivo se confunde com o monstruoso.

Naquela noite Paula se transformou em Paulada Silva Selva. Por sinal, nada mais apropriado que o nome. A porrada vem da revelação do estranho-familiar que pode se tornar o corpo feminino quando visto desde sua luz própria. Freud gostava de se perguntar sob que máscara retornaria o recalcado, ao que Paulada poderia responder: a da boceta. É nas marcas dos corpos violentados que deciframos, em relevo, os mecanismos do poder. E se, diferentemente das potências singulares, todo poder representativo nasce morto, para manter sua sobrevida precisará reprimir forças transformadoras. Esse é o vampirismo essencial das governâncias. É por isso que cada corpo exposto é um portal em potencial. Revela em si os limites do poder estabelecido, nutre a chegada de coisas novas.

Paulada Silva Selva nos apareceu, naquele domingo, em meia-luz azulada, com metade do vestido suspenso, deixando expostas as pernas, a bunda e a boceta, em cima do salto alto. Em lugar do rosto vemos uma espessa máscara negra, feita dos próprios cabelos amarrados na frente. Um pedestal, um microfone, a música eletrônica de Suzy 4 Tons, o público disposto como testemunha e Heitor Dantas empunhando a guitarra.

Ora, o microfone é um phallus bastante conhecido. Usado em exposições, shows, palestras e discursos, amplifica a voz, transcende espacialidades e, principalmente, unilateraliza a relação entre quem fala e quem escuta. Quem tem o poder maneja o microfone, e vice-versa. Nele o foco se prende ao rosto falante, mas mais ainda ao verbo, à transcendência do sentido, às palavras, à

Paulada da Selva

Por Daniel Guerra

Naquela noite Paula se transformou em Paulada Silva Selva. Por sinal, nada mais apropriado que o nome. A porrada vem da revelação do estranho-familiar que pode se tornar o corpo feminino quando visto desde sua luz própria

Sobre a performance Paulada Silva Selva,de Paula Carneiro

institucionalidade ali materializada. Podemos até ler, como cama ou contraponto, as expressões da face ou o movimento das mãos; mas o resto do corpo, a bem dizer, o torso, as pernas, o ventre e a genitália, permanecem como suporte, assim como o tripé o é do microfone. Eis a imagem simples e analisável cotidianamente, prova da transcendência do verbo sobre a carne. Um corpo social dividido em zonas hierarquizadas, numa ordem ditada e protagonizada pelo pau, de forma que a boca, a cabeça e os olhos (respectivamente fala, entendimento e visão) incorporam o poder do pau do pai, ao passo que o resto é relegado à marginalidade, sendo o cu o indigente-mor.

Já ao corpo feminino será imposta a falta do falo, e se este é caracterizado pelo poder de penetração, delega-se à boceta o status de recipiente e propriedade universais. É assim que há um caráter de penetração no olhar: assédio potencial de toda expectação estética — a não ser que inteligentemente se inverta a situação.

Quando Paulada aparece ao microfone, embaralha tudo. Somos abduzidos não por um, mas por dois focos, conflitantes e expressivos, de forma que não sabemos como regular nossa visão espectadora: a boceta exposta, abaixo, e, acima, um rosto coberto. A fala surge por detrás de um emaranhado negro, informe, selvagem, enquanto a genitália, em crua exposição, põe em xeque a dinâmica habitual do olhar. Se a ausência do rosto nos arroja numa des-identificação incômoda, a fuga para baixo nos deixa cara a cara com uma carnalidade imediata, inquisitória. Não há fuga possível neste curto-circuito poético: se fujo pra baixo encaro a evidência da carne desalienada, se volto pra cima não encontro identidade à qual me aferrar, apenas a profusa selva de pelos. Nada nos resta senão escutar.

Mas o tempo da escuta é muito distinto do tempo da fala. A norma social está assentada sobre o tempo da fala, de modo que o próprio ato de escuta já pressupõe uma fala passiva, interiorizada. A isso costumamos chamar — nas artes, principalmente — de psicologismo. De forma que assumir um tempo de escuta significaria produzir outro tipo de fala, outro tipo de subjetividade e, é claro, outro tipo de arte. Essa escuta falada seria então uma fala ritual: audição articulada do inominável.

Paulada Silva Selva canta o inominável na dor, o inominável no parto. Sua fala-canto (já não se sabe quando começa um e termina outro) anuncia o óbvio: nascemos todos de uma boceta.E quanto peso há em reconhecer, por meio desta presença, a obviedade crua.

Mas também enuncia o não enunciável: a dor perpetrada por trinta homens a uma mulher, caso recente, alvejado pela mídia, abusado pelo senso-comum, retomado agora numa anti-denúncia que transcende qualquer forma trivializante da informação — essa violência abrangente e compactuada.

Distingue e apropria-se do inominável no acontecimento, e não do descritivo do fato. Troca o policialesco pelo comunal, a denúncia pela invocação, a repetição pela diferença. A palavra dor é gritada, rasgada, partilhada; deixa de ser significada, mediada, e passa a ser corpo, existência material. Conta de um a trinta, cada número sendo um dos violentadores e, de súbito, esse tempo contado já não é o cronológico. Somos imersos num tempo carnal, em que cada instante toma uma dignidade, uma sensação e um lugar no corpo e no espaço. O silêncio provoca e alimenta, nossos olhares são levados a passear perdidos ou esconder-se nas pálpebras, porque dessa vez o órgão ativado será outro, o da escuta comprometida; não rígida, mas ritualizada.

Paula distribui a todos uma porrada. E uma porrada não busca adesão unificada. Frente a ela se reage. Na maior parte do tempo silenciei; outras vezes fechei os olhos. Me constrangi também. Mulheres ao redor lacrimejavam, outras tomavam parte com alguma alegria no olhar. Homens iam e vinham, alguns falavam ao longe, outros apenas sentavam e escutavam. De repente um choro incomum, vindo de uma das mulheres, irrompeu, e essa explosão parecia pontuar a contagem dos trinta, já se tornando parte do ato. A dor só é suportável enquanto arte. Talvez seja essa sua política estrita.

Ao final aquela mulher foi abraçada por outra, que foi abraçada por outra, e que por sua vez foram abraçadas por Paulada Silva Selva. Depois a performer sai, e ficamos todos olhando pro nada. Digo nada por não haver palavra melhor que designasse esse espaço preenchido de intensidade e duração.

C R Í T I C A

R E B A T E

Por Aguéda Tavares

Relutei, comigo mesma, em escrever sobre o texto Fissura por Fissura: Sobre Maçã – Um Acontecimento Cênico, de Diego Pinheiro, e me senti também grata pelo convite de colocar a cara-no-sol, não na condição de crítica da crítica, mas na minha intenção de destrinchar um pouco os ruídos que surgiram entre rebates na revista e nas mesas de bar. Poucas faíscas de diálogo. Ruídos e reverberações estranhas. O autor se propôs a ser sucinto no seu posicionamento sobre o acontecimento e a Maçã, haja vista a extensão de volumes escritos sobre a noção de “acontecimento”, que tratam exaustivamente sobre o assunto. Sobre Maçã, foram mais de duas horas de peça, pelo menos no dia que eu fui. Diego foi categórico quando não reconheceu Maçã como um acontecimento. Eu serei mais breve, talvez irmanada à condição de “academicista” por falar sobre uma peça que tensionou um tanto minha lombar.

 Nos primeiros 5 minutos de peça, já não pude negar o eco de uma questão que me motivou a assisti-la. Mais tarde, ao ler a crítica - as indicações das músicas de P.S. no começo do rebate (pegadinha acadêmica ,haah!) enfim os 4 rebates e mais um P.S., só pra garantir que nós, os acadêmicos, insensíveis a esse lugar de acontecimento, tivéssemos acesso a uma centelha de redenção pelo Pathos - dou vazão a essa investigação: A tensão de assegurar um “acontecimento” foi criada pelo título Maçã, pela espectadora1, pela crítica, ou pelo rebate? A expectativa de ir a um evento que se diz “acontecimento”  já ganha uma proporção que é furtiva à minha vontade. Quando um espetáculo se intitula em outro território, denomina-se fora de uma estrutura conhecida das “cenas bahianas”, já nos colocamos mais ainda à espreita do outro lugar, outro território. Quando falo outro território é elA a estética. Procurei lugares nessa nova estrutura que davam vazão a o acontecimento. O que se dizia já era politizado, já era o que tinha de ser dito. Entregue e vomitado e escarrado e esticado por várias vezes, o mesmo discurso em espiral, das escolhas, da criação do pecado, do matriarcado. O que faltou foi espaço pra mim e para esse outro lugar. Quando coloco a falta de lugar, leia-se não falta de representatividade, mas de espaço para o acontecimento. A representatividade também pode ser usada como o entre, a fuga para um acontecimento arrebatador, se na palavra já não estiver implícito esse adjetivo, mas para o lugar que subverte inclusive a lógica da representatividade.

Continuando a curta investigação, pela sequência lógica, chegamos ao ponto do embate: que diabos é acontecimento para esta que escreve e para o grupo Coato? Por que o título causou mais polêmica do que o evento todo?  Por que ainda damos esse tom de afronta pessoal em questões tão impessoais quanto uma simples análise de discurso? Existe essa separação na nossa prática?

 

N1 No caso “maçã” me coloquei neste lugar, porque era o único. Não acredito que o público que foi ver Maçã é parte separada do acontecimento, mas espacialmente fomos limitados a esse lugar por um bom tempo do evento.

 

É inegável o fato de a Maçã ter acontecido para muita gente. E ser “acontecimento” no sentido de “evento” é também uma possibilidade, a exemplo dos Jogos Olímpicos que são realizados a cada quatro anos, e que este ano acontecerá no Brasil. Fiquei pensando por muitos dias se não estaria sendo leviana e um tanto pretensiosa em escrever sobre acontecimento e expectativas, querer publicar e ainda me fazer entendida. Mas, afora os caráteres, essas questões simples que levanto podem definir meu mal estar, que vem da linguagem e do seu poder. Quando li o rebate, automaticamente comecei a escrever as coisas que senti, foi uma escrita “impressionista”, não objetiva como esta. Recebi o rebate atravessado por Diego e me vi no lugar da Torre de Babel desmoronada, seguindo a Gênesis da Maçã.

O discurso como poder e como legitimador também pesa não só no nosso convívio como cidadãs (xs, os) mortais e com medo, mas nas nossas práticas artísticas. Talvez esse seja um papel repulsivo: o de desvelar por onde queremos ser legitimados e quebrar essas estruturas legitimadoras ou, pelo menos, estabelecer  uma relação direta com esse furacão de mecanismos compulsórios que estão aí, os moinhos de vento (isso é ainda mais angustiante quando é o outro que o faz, não é, Águeda?).

A estrutura era a mesma de cânones do teatro pós dramáticO. Não houve subversão deles, nem pelos corpos nus, nem pela discursa, e não se comete nenhum crime por isso. O que me incomodou realmente no rebate foi a falta de diálogo com a crítica, como se a crítica quisesse diminuir o trabalho do grupo, sendo O detentOr acadêmicO do que pode

Subverter um signo sem se propor a dialogar com ele é tentar subverter a esfinge antes de encontrá-la.

Maçã, moinhos e espirais - uma aspiração cênica

ou não ser AcontecimentO. O espaço de representatividade foi criado em cima dos cânones. É nisso que acredito que não há espaço para o acontecimento, acontecimento como algo esteticamente fresco, imprevisível. Não identifico o acontecimento na estrutura cênica dada. Atento mais para a versão legitimadora da palavra, do que para a apropriação e subversão do termo.

Fazendo uma última análise da necessidade do termo, lembro dos brincantes do Cavalo Marinho e de algumas manifestações de cultura popular de Pernambuco, que ganham um caráter acadêmico pelas nomenclaturas do fenômeno. Lembro da falta de pretensão de alguns brincantes amigos meus, em não querer que essa manifestação seja identificada como dança, esporte ou ainda acontecimento. Eles se intitulam brincantes e isso basta. Quando os academicistas vão estudar esses fenômenos geralmente seguem com um roteiro de comparação pronta para estudar as formas que já existem e identificam no saber popular outros formatos. Alguns acreditam até que estão dando um prestígio ao evento, como se fosse uma honra receber méritos dos doutores das outras linguagens. Esse modelo de estudo não é nenhuma novidade para nós; embora seja um modelo já combatido pelos próprios orientadores na academia, ainda não é a exceção. Entretanto, aqui, estamos falando de pessoas que têm a formação acadêmica no mesmo lugar e que partem das mesmas vertentes da linguagem artística. Apesar de divergentes, não podemos nos distanciar desse campo de saber nesse embate. A separação pela palavra "academicista" também soa legitimadora, para quem o diz, de um lugar não aprisionado pelos métodos dados, um lugar subversivo. Na porosidade estética contemporânea temos os deslizes clássicos de querer demarcar um outro lugar, sem considerar alguns terrenos postos. Subverter um signo sem se propor a dialogar com ele é tentar subverter a esfinge antes de encontrá-la.

Não falo de um lugar  separado desses contextos todos. Também sou artista nessa areia movediça, o que é tão maçante quanto um afogamento, urgente, revelador das potências e modificador dos estados que não representam nada para além do  próprio  empuxo, no último ato.

As escolhas estão aí, observáveis nas nossas práticas. A noção da escolha também vem de lugares que pensam que temos todo o controle do universo, do exato controle de causa e consequência de todos os atos ou da maioria deles, coisa que também desconfio, mas isso fica para uma próxima, se houver. Desejo que esses desdobramentos da revista ganhem força, além do fôlego que já tem e promovam debates presenciais sobre o teatro de agora. Grata pela iniciativa que libera os pensamentos tão orgânicos quanto os rizomas - palavra bem show da xuxa ultimamente, mas necessária para redimensionar as idéias - para os botânicos.

P.S.: A imagem que tenho na cabeça do espetáculo Maçã é justamente essa da divulgação na crítica de Diego, tirada por Talitinha Andrade, do rosto de Roberta Nascimento. Foi um símbolo bem forte pra todas nós, com certeza. Não sei se alguém que viu Maçã não soube dos acontecimentos fora da exposição, mas reiterou a força da discursa, nos lembrando que se o discuso é persistente a força opressora existe densamente , é institucionalizada, enraizada na cultura e mata.

P.S.: adoro Elis.

P.S.: Esse deveria vir antes do texto, mas não resisto à regra acadêmica de hoje.

FORA TEMER!

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

Rizomapa do acontecido

Por Daniel Guerra

Sobre Como Medeia Para Minha Mãe, de Lara Duarte

Era uma vez, Medeia era uma mandioca. Vivia fincada na terra, espasmódica, assim como o nariz do meu amigo ao lado, visivelmente alérgico ao teatro contemporâneo. É que tinham usado terra de verdade, em vez de pintura em lona de caminhão. Amigo que depois, não se aguentando em coriza, levantou-se, fazendo de máscara a echarpe preta que Olga tinha lhe passado por cima de mim, enquanto assistia atento ao nascimento da Tuberculosa frente à Grande Mãe. alexsim, ó sim, Alex, ó, ó, Ó, Poeta (que ganas de sofrer quando encontro poetas), assim vestido, de máscara provisória para assistir ao teatro contemporâneo, de pé, parado atrás dos outros, fungando e tossindo forte, lembrou um blackblock ou um rebelde qualquer que, mesmo morrendo (e todos os rebeldes algum dia morrem), não sei por que diabos insiste em expect(or)ar teatro.

Agora vem a parte que todos “x”s ocidentais já sabem, a MTM - Moira Trágica Maior: Batatinha quando nasce (…) . Sambão triste. Mas antes de qualquer prosseguimento, Aviso aos Espectadores de Aquário (não o signo): a Mãe de Lara é a mãe de Lara de verdade, e Medeia é Lara e a Mãe de Lara. Quando por fim se livra da terra o Aipim, sob os olhos da Mãedioca, Abramovina transforma-se em Matrioska, falando ela mesma sobre sua própria constituição. Matrioska assim transmudada é uma feminista russa radical, e perceba que radical vem de raiz, explicando aí pra você ó, que curte essas drogas explicativas, o uso das anteriores metáforas tuberculosas.

 

Quando fala ao povo grego, baiano e troiano sobre sua ontologia secreta, é como se fosse uma filósofa pré-socrática que se sentasse, diva no divã, e revirando a mesa, dissesse aos cidadãos que ficassem quietinhos no seu canto (sem biscoito) e que agora era a vez das concidadãs, raízes radicais livres que nascem uma de dentro das outras, e olha só que é verdade, eu mesmo escrevi sobre isso há pouco, at the Paulada Silva Selva’s performance act, em que uma boceta gera outra que gera outra que gera outra e etceteras, e a incrível possibilidade que elas têm de formar exércitos, educar seus exércitos e invadir e destruir impérios se assim o quiserem, coisa que aliás nem foi pensada por mim mas sim numa lombra coletiva anos atrás, caminhando pela orla de Maceió com o amigo argentino Gast (“convidado” em alemão) e a Geóloga Fem-Marxista Haffa Gah-Rafa e sua metralhadora cannábica, lombra essa que hoje em dia me faz lembrar Daenerys & seus Apelativos Dragões ou: Carla Perez, a Libertadora de Pássaros Tropicais (com Lázaro Ramos, Fábio Vidal & grande elenco).

Foto de Nina La Croix

O fato é que a Mãetrioska se mostrou uma atriz e tanto. Uma da maiores diversões de estar em cena é saber que se pode parar o espetáculo quando quiser, ou simplesmente torná-lo impossível, intragável, enfim. Esse é um prazer a que, infelizmente, poucos se dão. Limpoide Contemporanoide, ou Limpoide Classicoide, você escolhe. Por isso sempre existirá uma superioridade dos não-atores sobre os atores, dos não-dançarinos sobre os dançarinos, e por aí vai. Por exemplo, se destacássemos apenas a série dos “nãos” proferidos + olhares enviesados de Mãerina Abramovic à Lariska Duartina, isso poderia ser usado em Epopeias Magníficas saídas da Pena Contemporânea daquele blackblock evocado anteriormente por nós.

Depois o público é gentilmente convidado a dar uma de coro trágico regido por Laravska, sem esquecer, é claro, a citação do “fora, temer”, novo meme preferido de #artistas&intelectuais_unidos_pelo_Brazyl. Ninguém optou pelo repetidíssimo “fora memer", mas, porra, acabaram botando Deus na história, o maior meme de todos, e não foi nem Zeus, que era foda como o é a Bossa Nova, segundo Caetano — foi Deus mesmo, aquele cadáver mirrado.

E foi então que se deu, sob a batuta da atriz, uma das cenas mais incríveis já vistas no Theatro Brazyleiro desde os 15.487.346 efeitos de luz do polonês Ziembinski, que sempre constarão nos anais da História do Theatro Brazyleiro como os 15.487.346 Efeitos de Luz mais históricos da História dos Efeitos de Luz da História do Theatro Brazyleiro: todos sorrindo, juntos, alegres e descompromissados, como numa cena da primeira fase de Godard (“ai que crítico”).

Portanto, com Lariska Duartina o Theatro encontra a possibilidade de ser Avacalhação Encantada, e isso por si só já justificaria um viver. Contra todos os tédios histriônicos das reencenadas tragédias corporais, sofri-mentais e goiabada-com-queijo da Écolle Etnocenologique de Theátron da Bahêa, sou mais essa fodástica luz rosa-pink e curtição, Ideias-Cheque Ostentação de Novas Pensadoras da Vida, junto com aglomeração de Jovialidade (sem idade) em torno de Terra Fértil (embora um tanto alergênica), mas Reunidora em sua propriedade mais Lúdica, Lúcida, TransLúcida, Fundamental & AntiFundamentalista.

Termino por aqui porque eu não sou obrigado.

R I Z O M A

Sentados na grama da Vila Coração de Maria, no bairro 2 de Julho, sob uma luz de fim de tarde, Diego Pinheiro e a performer, pesquisadora e ativista Ivana Chastinet conversam sobre caminhos da arte, política, corpos obscenos e por aí vai.

Diego Pinheiro encontra Ivana Chastinet

E N C O N T R O

Na edição anterior, tivemos uma breve discussão sobre a palavra acontecimento. É interessante que esse conceito esteja aparecendo na boca de tantos criadores ao mesmo tempo. Poderíamos chamar a isso sincronicidade. Eu prefiro achar que é uma imanência histórica, ou seja, algo como um zeitgeist pairando abaixo ou acima do mundo, dos corpos e das coisas, irrompendo aqui e ali, inflando esta ou aquela existência potencial. De alguma forma incontestável e inexplicável, acontecimento é um conceito imanente ao nosso tempo.

Talvez porque as formas genéricas dos campos artísticos tradicionais não estejam mais dando conta da complexidade das situações impostas aos criadores, muitos vem preferindo usar essa palavra. Muitos acadêmicos pensam tratar-se de arrogância contemporânea. Ora, que vão morrer pra lá. Mas há também aqueles que — dentro do próprio campo criativo — rejeitam toda construção conceitual, afastando-as como mero academicismo, quando na verdade a própria academia está muito aquém da sofisticação conceitual emergida da prática.

 

Nunca tive medo de conceitos. Eles são muito úteis na hora de dar nome a algo que até então não havia sido nomeado, e essa ação de nomear, nada mais é que a ação de sentir ou experimentar, construir ou desconstruir, e por aí vai. Ninguém leva à boca um pedaço de nada, ou um pedaço de alguma coisa; e, mesmo se levasse, esse nada ou alguma coisa seriam simultaneamente experimentados pelos nomes de nada ou alguma coisa. Sendo assim, amor, sensação e afeto, por exemplo, essas palavras usadas e abusadas no nosso “meio” (às vezes como cortina de fumaça para preguiças transcendentais), são igualmente conceituais. Porque, na prática, os conceitos funcionam como máquinas, além de produzir uma série de experiências, sensações e memórias.

Fiquei com aquela palavra na minha cabeça desde 2011, quando criei, junto ao Alvenaria, o espetáculo Fogueira. Já então, falávamos vez ou outra de acontecimento, mas este só foi irromper como evidência mesmo uns dois anos atrás, quando lia Heidegger. O alemãozão falava de uma tal clareira do ser. Olha só, que bela construção poética, no meio de uma filosofia tão intrincada. Esse é o tipo de frase que arruma tudo ao redor. Você está tropeçando num total breu intelectual, sentimental, existencial (aliás, não há diferença alguma) e, de repente, se bate com essa maravilha de simplicidade. E aí tudo se ilumina.

Para mim, a partir daquele momento, acontecimento seria uma clareira, uma abertura onde o ser acontece, onde o ser se dá. Simples assim. Hoje lembro de ter anotado, no rodapé da página, com aquele cuidado despretensioso que faz alguém escrever nome e ano na primeira página de um livro recém-adquirido, esse poeminha safado: Desperto/ na clareira/ dos tempos// O ser/ me abana/ seu rabo// Já tá tudo/ iluminado.

Como podem ver, acontecimento não é uma idéia, nem uma criação arbitrária, nem um quitute da contemporaneidade. Acontecimento é antes de tudo uma palavra que — por ela mesma — acontece. Algum dia brota, intimamente. Basicamente cria uma forma de ver mundos. A essa visão eu chamo, junto com Heidegger, de mundificação.

Durante o processo do História Sob Rocha, em 2015, dei um tempo e fui ao Capão. Lá, perambulei demais pensando nessa tal mundificação, feliz transformação de substantivo em verbo; em tudo via sua face. A mundificação pra mim era efeito e causa do acontecimento. Teatro, dança ou performance, essas seriam apenas algumas das suas possíveis materializações. Estava tudo por ser descoberto, e meu corpo sentia em tudo aquela presença iminente.

Anteriormente, lá na residência em Cajazeiras, Yuri Tripodi havia presenteado o grupo do História com uma imagem produzida no processo. Nela vemos três elementos distintos, em disposição geométrica contra um fundo negro, unidos por algumas características visíveis, outras nem tanto. O que me interessava, na ocasião, era esse “nem tanto”.

 

 

Três formas circulares: um rolo de arame, uma lua e um pneu. Essa é a disposição básica, superficial. Mas por que diabos essas três coisas dispostas numa mesma página? Por que não qualquer outra forma circular? Estava claro que a resposta não poderia ser encontrada num nível lógico, nem semiótico. A imagem só seria preenchida com a vivência de um olhar. O conjunto pedia por isso; era sua condição existencial. Existiu um olhar ativo que dispôs aquilo em imagem, e agora existirá outro que fará os elementos dançarem. A mundificação é o pressuposto do acontecimento. A lua, o pneu e o arame, de alguma maneira, mundificam quando se encontram com minha vivência, e a partir disso a imagem se torna um acontecimento. Só se revela no momento do encontro, brotado do complexo olho-página.

Então o espaço do acontecimento, a clareira da qual Heidegger falava, dava-se justamente num entre. Um ser só poderia acontecer a partir de um espaço entre, relacional. Daí me dei conta de que as estruturas às quais eu poderia chamar acontecimento possuíam ao menos uma constante: eram porosas. Não exatamente abertas, não com lacunas intelectualmente dispostas, mas preenchida de vazio em todas as suas dimensões. Daí a recorrência, em todos os meus trabalhos, da improvisação. Era a incorporação do acaso como fator constitutivo da cena. A visualização de uma estrutura assim teria o aspecto da esponja de Karl Menger, um cubo constituído por subtrações e não por adições e que, apesar de possuir superfície infinita, tem volume igual a zero. Um ser feito só de entres.

 

 

Portanto, não me interessava mais cristalizar formas finais. Bastava-me preparar dispositivos, terreiros, clareiras. Possibilitar. Entendia que dispor e redispor, mudar coisas e corpos de lugar, já seria o bastante para pôr a funcionar os complexos mecanismos do acontecer. Se tiro uma pedra daqui e a ponho ali, isso por si só já define uma série de outras transformações, das menores às maiores, de uma folha a um corpo, de um fio de cabelo a um cachorro, de um pneu à lua.

Por isso, durante minhas caminhadas e descansos no Capão, fiquei tão atento às pequenas disposições, usualmente invisíveis ao comportamento normal, agora tão flagrantes ao espírito. Munido de uma câmera ruim de celular, passei a fotografar disposições elementares (natureza + coisas humanas) que encontrava ao redor. Algumas me pareciam especialmente reveladoras de uma ordem outra, paridas de dentro do caos. Pareciam-me peças delicadas, plenas de sentido, e principalmente, intocadas pela ansiedade discursiva da contemporaneidade. Se eu pudesse levar aquilo pra cena, ao menos um por cento de tudo aquilo, já estaria mais ou menos satisfeito.

Então passei a anotar num papel as conclusões que fui tendo, paralelamente às fotos, observando o tempo e o espaço, o sentido outro das coisas materiais, suas relações, seus espaços entre, suas distâncias. A partir de agora é isso que ofereço à apreciação do leitor. Transcrevo aqui minhas anotações, um tanto enigmáticas pela própria ocasião da escrita, pontuadas por fotos precárias de micro-vislumbres, mas que naquele momento me pareciam tão eloquentes quanto qualquer espetáculo.

Hoje, nem eu vejo tanto em cada foto, mas ao menos as disponho a outros olhares, que talvez aí encontrem algo. Nas palavras, mesmo em suas lacunas, há alguma coisa que supera e ao mesmo tempo sublinha seu significado imediato; há aqui também um entre incorporado, e justamente, esse é o acontecimento que espero possibilitar. Agradeço a estadia na casa de Ci, Joaquim e Tereza.

 

(Ao longo do próximo texto, o restante das figuras,

dispostas mais ou menos como no arquivo em PDF)

 

disposições produzem                                                                        disposição = reunião              

                                                                                                            de elementos                           

exposições                                                                                           - corpo   

exposição = dispositivo de possibilidades                                         - coisa

de acontecimento(s)                                                                           - olhar 

                                                                                                            - estar

acontecimento é                                                                                com isso cria-se um lugar

disposição do olhar

+ dos corpos

+ dos objetos

 

 

 

abrir um campo

de imprevisibilidade

rumo a novas disposições

 

estar disposto

é estar aberto e abrindo

atento

 

mas a exposição (dispositivo do acontecimento)

não expressa

nem significa

mas produz

produz porque

é

é, é ser

 

 

acontecimento não é fantasma                                          a fotografia

fantasma também é entre                                                  é a exposição

mas acontecimento é excesso imprevisível                      ou melhor              

e fantasma é imagem repetida                                           a captura

eco de um acontecimento morto                                       do acontecimento:

que surge como possibilidade                                            revela a lógica ilógica

dentro da imprevisibilidade 

 

 

                                                                                           o fantasma quer sempre ficar

                                                                                           repetir-se

                                                                                           toda imagem/palavra

                                                                                           histórica

                                                                                           é fantasma

                                                                                          

                                                                                          

eco de uma explosão

                                                                                                               nas montanhas

 

 

 

 

 

mas

dispor objetos-vestígio

objetos-memória

é engajar

fantasmas

em novas possibilidades

de acontecimento

 

 

 

 

 

 

         

                                                             

                                                                                                    repetições

                                                                                                   que se tornam

                                                                                                   diferença

Alguns vestígios

Por Daniel Guerra

Sobre acontecimento

E N S A I O

T R E T A

Diego segue pensando qual é o seu lugarzinho na arte...

 

Toda vez que falo a palavra arte me vem um estranhamento, parece acontecer algum fenômeno em minha língua. Ela embola e por vezes sai um “ti” recifense ou aquele “R” sufocante no sotaque do interior paulista. Me lembro da vez que disse pela primeira vez – como se tivesse dando um tiro – que eu era artista, lá para as bandas de Alagados. O brother arregalou os olhos e até mesmo mudou o tom da conversa como se eu me demudasse num bacanérrimo

Aliás, que lugar atraente esse de ser bacana. Na mesma da hora de minha metamorfose perante Mazinho (o velho bro das reinações na favela da maré), entendi de imediato a potência de ser bacanérrimo. O bacana magnetiza e sempre submeterá o pobre inseguro. Sendo ele um repetidor apto para ser um grande lecionista ou uma figura cheia de luzes, a inclinação para arrastar milhões de pessoas para segui-lo no facebook e twitter é tentadora; e uma vez que a cancela se abre, sendo você o brâmane de Voltaire ou bonzo de Yoshikawa, qualquer impropério será aceito como verdade.

Já há algum tempo, não consigo escrever e/ou falar usando ironias (elemento imprescindível para o bacana), dando aquele tom ácido e mordaz que todo mundo tá gostando de ver e ler (principalmente nas redes citadas). Aquele tom bacanérrimo de pós-estruturalista do fim dos tempos (os deleuzete pira!). Passei um bom tempo escrevendo somente para mim e para mais ninguém, depois abri um blog que ninguém lê, depois deixei ele lá e voltei a escrever intimamente, e quando senti que uma de minhas obras beirava a velha qualidade irônica, fiquei apavorado. Travado com a linguagem, decidi ficar longe de qualquer criação cênico-performativa (embora imerso em uma). Decidi encerrar com este fluxo não somente por ser uma qualidade distante de mim, mas por sentir a infertilidade sintática – a sensação de entrar numa nova onda e tal-e-coisa. Depois de dois textinhos tomei aversão, sem me lembrar e nem saber qual a causa precisa. 

Na verdade, sempre sonhei em ser um bom Diógenes, mas também não sirvo para cínico, para um profanador de toda uma representatividade, seja ela simbólica ou não. Jogo com a “realidade” tentando entender as suas mirradas “regras”, tentando criar uma outra, talvez. Não há nada de câmbios nisso tudo, somente perdas. Não conseguir ser irônico e nem cínico me lança para o terreno do enfado. Fazer o quê? Condição terrível dos “marasmosos”. Perder passa então a ser um novo pensamento estético.

Pois que hoje me surge uma imagem que me faz lembrar o momento de epifania, acho que lá para os finais de 2012 ou começo de 2013. Tal como a madalena encharcada pelo chá, ambos proustianos, Caio Rodrigo e O Bobo trazem à tona a imagem um tanto quanto apocalíptica de Alagados – nada que lembre a francesa Illiers-Combray. Minha memória sempre foi falhada, cheia de apagamentos, de modo que nunca me lembraria de toda a minha vivência na ponte Ribeira-Alagados. Contudo, Caio me faz lembrar de toda uma tarde impetuosamente, a mesma em que eu me senti o bom bacana.

Eu tive uma crise de riso durante a apresentação da equipe a la Bruce Buffer feita por Caio, principalmente quando ele apresentou o cenógrafo “Rodrigo Frota, que faz 15 cenários por ano, mas o acabamento...” (mãozinhas irônicas no mais ou menos). Uma exposição da crítica que muitas vezes ouvi sobre Rodrigo, um dos grandes da cenografia baiana. Acontece que eu fui ficando menor a cada palavra proferida por Caio, não por ouvir “verdades”, os inúmeros tratados filosóficos e existenciais (já que tratados políticos/sociais em arte são tão execráveis vamos aos filosóficos, finos e metafóricos), muito menos essa coisa toda de teatro falar de teatro – aliás, não há nada mais burguês do que os “metas-artes" ... felicito todos aqueles que possuem o ócio necessário para tratar da linguagem artística nela mesma - mas sim pelo pensamento que me

A Partir d’O Bobo, solo de Caio Rodrigo

Efeito Nanicolina

consumia “não posso cair mais nisso”. Saí completamente da Boca do Inferno institucionalizada, acho que quando Caio estava no megafone, filosofando sobre uns “porquês” de quem sempre teve cadeira para sentar. 

No decorrer de meu processo com as pílulas de nanicolina que Caio me dava, a Paróquia de Nossa Senhora dos Alagados ia se pintando em minha mente, a velha igrejinha do papa polonês, com a mangueira mais alta acima de sua arquitetura pós-moderna, onde se vê o último mangue soteropolitano, a Ilha do Rato.  Há três anos atrás as palafitas já eram raras, mas a terra batida de sempre estava lá, foveirando as pernas e irritando os olhos. Vendo Alagados agora, sinto que sua imagem,

a do cinema abandonado,

a do lixão,

das rixas de rua,

da criação conjunta das crianças,

a da competição da maior lombriga,

da caxumba,

do lodo da maré,

do golzinho arriscado no fim de linha,

dos riscos que vivi – hoje performados

por artistas da performance – a  

das sempre secas amendoeiras,

da correria atrás de arraias,

do meu guarda-pó,

de meu pai parado

em frente a um monte de madeira pensando no que fazer,

daquela luz mercúrio na parede sem reboco,

da última bandeira branca do tempo que vi sumir,

a da ponta dos dedos calejados do aço do Tonante,

da palma da mão calejada pelo trinchão

... todas estas imagens sempre me pareceram compor um quadro do fim dos tempos. Por outro lado, sempre escondi minha bestificação diante da aversão de viver em Alagados –

síndrome de estendal no quintal de casa diante do mamoeiro.

Alagados me deu o assombro nunca mais experimentado.

Alagados é, pois, meu primeiro belo insuportável.

                      Eis minha mais antiga referência de ironia.

 

Naquela tarde me encontro com Mazinho. Conversamos durante horas e ao pronunciar a frase “eu sou artista”, vetores atravessam minha cabeça que se inunda de disparates. Eu, ora bacanérrimo, ora inquisidor da condição de bacana, ora “porra nenhuma, eu também posso ser bacana”. Isso se alongou durante um tempo, mas assumi a partir dali minha “bacanice” e conversava com o bro como Caio tentava conversar com aquela plateia de alunos “tão obedientes”. Mazinho, com um olhar de grande estranhamento, ao mesmo tempo que amuado, levanta um letreiro atrás de si com os dizeres “Diego, a ironia também é um privilégio burguês.”. Palavras que pareciam me alertar sobre esse meu lugarzinho na arte. Desde esse momento, passei a refletir sobre esse elemento bonito, maquiado, intelectual, levemente engraçado, descontraído e bem arte contemporânea para fazer críticas e ser aceito, que é a ironia...

Caio me lembrou que em algum momento deste período, quando preso a mais um texto sobre minha produção cheguei a conclusão de que a ironia é a melhor forma de falar “verdades” de maneira limpinha, e se ela busca por reproduzir trejeitos das camadas populares como o pagode, “Pablos” e afins, mais potente e acessível o é.

Se em algum dia eu for irônico, que eu seja alagado(s),

não em sua representação, mas em seu vaticínio.

Por Diego Pinheiro

S E L F I E

Rebate à crítica “Paulada da selva” de Daniel Guerra

editorial ed 4

V.1 n.4 2016

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