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CRÍTICA "Não andes por aí nua em pelo": O vaudeville veste Tommy Hilfinger.
REVERBERA Antônio Tarsis e Íris de Oliveira
CRÍTICA -Notas musicais para uma Obssessiva Dantesca
REBATE Obsessiva
CRÍTICA DA CRÍTICA - Lápides, praças e teatros(5)
TRETA - Bolhas (5)
RIZOMA - Dramáticas(5)
ENCONTRO com Aldri Anunciação (5)
ENSAIO Pensando os [dilemas] desafios do ator artista contemporâneo [diante da descentralizaçãodo drama] em meio a crise de paradigmas (5)
SELFIE - Um corpo sai de casa para ver Um corpo em casa (5)

É hora de comemorar os números redondos!

 

É com muita felicidade que chegamos à 5ª edição da Revista Barril. O trabalho de se pensar um novo pensamento crítico em artes cênicas, principalmente para as artes cênicas soteropolitanas, tem sido demasiadamente trabalhoso e intenso, mas gratificante na mesma proporção. A intensidade e o trabalho diário se encontram, fundamentalmente, no ato de transformação de nossos posicionamentos críticos e por isso a gratificação, pois estamos sempre em processo de engenho.

 

Tem sido uma grande responsabilidade fomentarmos a única plataforma de crítica em artes cênicas atuante na cidade. É necessário assumirmos a importância disso no campo de produção. Diligência que assumimos com fé nos porvires, e acreditando que a Barril ajude no fomento ao pensamento estético das artes soteropolitanas, além de inspirar a criação de outras plataformas de crítica. Hoje, mais do que nunca, as redes são importantes.

 

Aproveitamos para agradecer a todos aqueles que leem, compartilham e comentam sobre a nossa Revista. Agradecemos também aos feedbacks, sempre necessários para nos mantermos em transformação.

Para essa “edição de mensário”, temos duas CRÍTICAS. Notas Musicais Para Uma Obsessiva Dantesca, de Alex Simões, sobre a performance cênico-musical de Laís Machado, Obsessiva Dantesca. Por sua vez, Laís REBATE a

crítica de Alex sobre o seu trabalho performativo. Igor Albuquerque em seu “Não andes por aí nua em pelo”: o vaudeville veste Tommy Hilfinger, critica o espetáculo “Mas Não Ande Por Aí Nua Em Pelo!”, o espetáculo da CIA de Teatro da UFBA em conjunto com Os Argonautas CIA de Teatro, com direção de Ewald Hackler. O espetáculo compôs o evento Prata da Casa, em comemoração aos 60 anos da Escola de Teatro da UFBA.

 

O artista visual Antônio Társis, convidado pela Barril, em conjunto com a cineasta Iris de Oliveira, cria um vídeo-performance aquoso, a partir da experiência coreográfica Água Viva, criação de Tiago Ribeiro e Coletivo Do Divino - Escola Livre de Arte, na Coluna REVERBERA.

Finalmente conseguimos dar matéria a original intenção da Coluna CRÍTICA DA CRÍTICA– coisas do “mensário”. Daniel Guerra, em seu texto Lápides, Praças e Teatros, contrapõe a visão da crítica Eduarda Uzêda, do Jornal A Tarde, sobre a peça Egotrip – Ser ou não Ser? Eis a Comédia, texto e direção de João Sanches.

Diego Pinheiro escolhe elaborar uma série de porquês para TRETA(R) com o Coletivo Quatro, a partir do espetáculo Na Coxia – O Musical, com o texto Bolha.

 

Na Coluna RIZOMA, Laís Machado traça algumas referências usando da estrutura Dramática(s), a partir das reverberações ao ver a leitura dramática de A Mulher do Fundo Mar, texto de Aldri Anunciação e com direção de Aldri Anunciação e 

 

 

Diego Pinheiro. 1ª leitura do Festival Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada. 

 

Laís também encontra Aldri Anunciação na Coluna ENCONTRO. Temas como ocidentalização e negros na arte povoam a conversa que teve como cenário as ruínas da Igreja da Barroquinha. O Festival Nova Dramaturgia da Melanina Acentuada ocupa o Espaço Cultural da Barroquinha até 14 de agosto.

 

Isaura Tupiniquim, nossa colaboradora do mês, faz um desdobramento de sua fala, realizada no projeto Mínimos Óbvios do grupo de teatro Atelier Voador, durante a mesa Dilemas do Ator Contemporâneo Diante da Descentralização do Drama, na Coluna ENSAIO, com o texto Pensando os [dilemas] desafios do ator artista contemporâneo [diante da descentralizaçãodo drama] em meio à crise de paradigmas.

 

Por fim Um Corpo (de Alex Simões) Sai de Casa Para Ver um Corpo em Casa, na Coluna SELFIE. Texto de Alex sobre suas vivências durante sua “experiência contemporânea” a partir da instalação performativa Corpo em Casa (ocupação do Casarão Barabadá), inciativa independente criada por 17 artistas da dança.

 

Que a Barril tenha muitas outras edições!

 

Mais uma vez, obrigado a todos os leitores, companheiros e colaboradores.

 

Boa leitura!

j u n h o

Notas musicais para uma Obsessiva Dantesca, por Alex Simões

Rebate à crítica " Notas musicais para uma Obsessiva Dantesca "de Alex Simões

Reverbera de Antônio Tarsis e Íris de Oliveira do espetálo Água Viva

Não Andes Por aí Nua em Pelo: o vaudeville veste Tommy Hilfinger. - Crítica ao Espetáculo Não ande por aí nua em pelo, por Igor de Albuquerque

Lápide, praças e teatro, por Daniel Guerra

Dramáticas, por Laís Machado

Bolhas, por Diego Pinheiro

Um corpo sai de casa para ver um corpo em casa, por Alex Simões

Pensando os [dilemas] desafios do ator artista contemporâneo [diante da descentralizaçãodo drama]

em meio a crise de paradigmas [1], Por Isaura Tupiniquim

Aldri Anunciação, por Laís Machado

Rebate à crítica “Notas musicais para uma Obsessiva Dantesca” de Alex Simões

A gente precisa parar de falar da outra/outro na terceira pessoa, é sério. Sua lesbianidade, sua história de resistência, suas marcas no corpo, o trabalho doméstico, seus pontos de vistas às institucionalidades são intelectualidades interessantes. Compõem sua socialização, para a vida pública, para a militância. É preciso romper com a autoestima política e intelectual de terceiro mundo. [...] Não se exima! O que se escreve é na primeira pessoa, por que se tem responsabilidade pessoal e coletiva. Elza Soares é nós!!! (Carla Akotirene no Facebook)

 

Existe um lugar confortável. Neste lugar as certezas são palpáveis. Sair deste espaço é possível, embora seja mais tentador permanecer por lá. Esse é um lugar em que nós, mulheres pretas, nunca estivemos. Nunca nos foi dado nem o direito de descansar por lá. Quando resolvemos, sempre inspiradas por irmãs que o fizeram antes, abrir a boca, esse processo consegue ser tão doloroso quanto mantê-la fechada, mas aos poucos vai nos enchendo de força e apoio e, consequentemente, mais força.

Obsessiva Dantesca foi um trabalho muito relevante para mim, que apontou caminhos estéticos, posicionamentos em relação a minha militância e a minha vida. Mas se deu de maneira bastante particular. Algumas imagens já nasceram prontas, outras coisas só foram entendidas em contato. A sensação é de que os quatro dias de apresentação/comunhão foram uma coisa só, apenas com intervalos para evitar o coma alcóolico.

No primeiro dia, o banco na minha cabeça fez com que as pessoas fugissem e rissem do esforço dos outros por fugir. Toda vez que aquele banco caía me machucava, em principal pela necessidade de evitar que ele atingisse alguém. No segundo dia, as pessoas nem se levantavam, o que me fazia me machucar ainda mais para não ferir ninguém. No terceiro, (o dia em que você assistiu, Alex) foi o primeiro dia em que uma mulher perguntou: Você quer

ajuda? Mas em compensação, no quarto dia, o banco não caiu nenhuma vez, porque na primeira vez em que ele ameaçou cair, quatro mulheres correram para segurar, e isso acabou se tornando uma norma naquele dia. Me desculpem, mas não consigo analisar esse comportamento apenas da perspectiva de análise da recepção, do fruidor, do expectante ou qualquer nome que se queira dar. É também político, social, ideológico, individual e coletivo. Como você mesmo diz, significa. E é significado em conjunto.

Existia ali um convite para comunhão que foi aceito de diversas formas e negado de outras tantas maneiras. Certa vez li um texto de Renato Ferracini que tinha como título A Presença Não É Um Atributo do Ator, em que ele dizia que “a presença é construção e composição na relação com o outro”. Aprendi muito mais sobre isso nos quatro dias de Obsessiva do que lendo, escrevendo e em laboratório durante toda a manutenção do Teatro Base (Ai! O encontro). Mas, se percebermos, é possível analisar aspectos políticos com esse mesmo recorte usado para analisar aspectos poéticos. Porque as coisas estão, de fato, imbricadas.

 

O número de obras assumidamente feministas tem crescido em Salvador; logo, na eterna busca de equilíbrio entre forma e discurso, tem-se experimentado outros posicionamentos éticos no fazer e no compartilhar que demandam um outro tipo de fruição. Eu, por exemplo, desenvolvo uma pesquisa que venho chamando de Ajuran – Transe e Fluxo, que se trata da busca por um estado de presença poroso, passível ao afeto, que se alimente e se intensifique na própria ação, no contato, e Obsessiva foi meu primeiro experimento (por isso adoro o xamã, se chegou dessa maneira para pelo menos uma pessoa, estou indo bem). Deixar as espectadoras/atuantes livres para se configurarem e reconfigurarem da maneira que bem entendessem, foi uma escolha que esteve no limiar político/estético. Se o feminismo que eu acredito e milito tenta construir outras relações de afeto e poder, eu não poderia pré-definir e/ou engessar a configuração atuante-

testemunha e testemunha-atuante. O que fez com que cada dia lidássemos com uma configuração espacial diferente.

Também tive o privilégio de contar com uma equipe de mulheres que estavam sensíveis aos vetores que estavam sendo colocados em jogo. Sabendo a hora de disparar uma sonoridade, fazer vibrar o couro do atabaque ou tornar a iluminação quase penumbra. E era uma relação muito pautada na confiança, uma vez que, com exceção das músicas, não havia nada mais marcado. Obsessiva é feita a muitas mãos.

Além do mais, mulheres pretas artistas têm assumido o lugar de  autoras de seus discursos. O que nos coloca numa onda bastante fértil de experimentalismos e traz à luz temas que nos sufocam e nos silenciam há muitos anos, mesmo antes de nossos nascimentos. Eu precisei beber para conseguir dar conta de alguns deles. Algumas mulheres presentes também precisaram, outras não. Eu precisei estar lá para conseguir gritar, outras não precisam e outras saíram convidadas a encontrar seus modos de gritar. Mas era unânime a necessidade do grito, e a partir disso, relações sutis se estabeleciam.

Talvez por isso sejamos acusadas de dicotomizar as coisas, porque, afinal, temos um mundo não tão confortável para contrapor aos que vivem no mundinho que introduziu meu Rebate.  Mas nesse julho das pretas peço aos orixás que o constrangimento, a dor, a raiva, o ódio não nos matem mais. Coloquemos eles no mundo. Se anos de posicionamentos políticos, escolhas sociais, anos de exploração os alimentaram, por que assumimos esse peso sozinhas?

 

Perforar órganos déspotas,

Brada la mujer negra: Alerta!

Hace mucho tiempo, y ahora un poco más.

 

 

Obrigada, Alex.

Por Laís Machado

Por Alex Simões

NOTAS MUSICAIS PARA UMA OBSESSIVA DANTESCA

Eu transbordo excrescências

                                                dúvidas,

                                                                   luminosidades.

E...só entendo de assustar palavras.

 

Daniela Galdino. Mulher abjeta.[1]

Talvez o maior desafio para uma pessoa brasileira minoritizada seja rasurar a retumbante e cafona pergunta ameaçadora “você sabe com quem está falando?” com a questão-enfrentamento “você sabe de que lugar estou falando?”. Àquelas que recusam a ser objetos (de silenciamento, de exclusão, de estudo, de representação alienante), resta a obsessão de dizer, de se subjetivar, de problematizar, de assustar palavras. A performance cênico-musical Obsessiva Dantesca, criada e executada por Laís Machado, com direção artística de Diego Pinheiro e direção musical de Andrea Martins, durante cerca de duas horas nos coloca essa e outras rasuras, essa e outras questões.

Trata-se de uma encenação de um grupo que rasura no próprio nome a questão: Base, grupo de Pesquisas Sobre o Método da Atriz, é um grupo que revisou seu próprio nome, substituindo o original termo “Ator” pelo correlato feminino, diante de uma constatação aparentemente óbvia: um grupo majoritariamente formado por mulheres não deve carregar em seu nome a palavra “ator”. Óbvia? Nem tanto. A linguagem nos impõe muitas armadilhas e às que se recusam a ser objeto, resta a obsessão em flagrar as armadilhas e desmontá-las.

As armadilhas são muitas e as reações são mais ou menos as mesmas. É importante apontar que o monotematismo está mais na reação de quem diz “lá vem ela falar sobre a questão da negra” ou  pergunta “existe arte negra?” do que em quem diz seu lugar de fala. As armadilhas da linguagem podem ser rasuradas com a expressão “dicotomias da linguagem”. Talvez uma das maiores perversidades do processo estruturante de exclusão das subjetividades minoritizadas seja responsabilizar as insurgentes por uma dicotomização, por um pensamento binário, como se a dicotomia não estivesse sempre ali, hierarquizando e silenciando.

Ao analisar poetas mulheres de língua portuguesa no Brasil e em África, Maria Nazareth da Fonseca nos dá pistas desse aparente monotematismo, que tranquilamente podem nos ajudar a pensar a Obsessiva Dantesca, que também é, por seu caráter multissemiótico, um acontecimento poético:

Com frequência essas expressões procuram ressemantizar um universo marcado por dicotomias. Talvez por isso seja necessário repisar temas já explorados à exaustão, recuperar a dor de ser negra numa sociedade que a exclui, para deixar aflorar a as linguagens de um corpo que tem sua própria linguagem e que se traça pelos recursos da feminilidade. Essa consciência de si enquanto corpo feminino da negrura, enquanto outro que se modela por leis diferentes das que a aprisionaram nas correntes do seu passado, libera manifestações de uma identidade que se faz de indagações, de questionamentos. (FONSECA, 2010,  p. 290[2])

Foto de Izabella Valverde

As dicotomias estão postas e ressemantizá-las é preciso. É preciso fazer girar a dança das cadeiras, promover deslocamentos para que o óbvio seja posto na roda da apreciação.

As dicotomias estão postas e ressemantizá-las é preciso. É preciso fazer girar a dança das cadeiras, promover deslocamentos para que o óbvio seja posto na roda da apreciação. É preciso ir ao teatro negro feminista para ver uma banda de mulheres e pensar: por que uma banda só de mulheres significa e uma banda só de homens, não? É preciso tirar os assentos da plateia, dar-lhe a liberdade de se acomodar onde quiser no significante Espaço Cultural Barroquinha, chão onde nasceu o candomblé assim como o conhecemos no Brasil, e colocar o assento sobre a cabeça de uma atriz que carrega sobre sua cabeça não um banco de madeira que pode cair sobe a plateia, mas um signo problematizado.

Laís nos traz um banco sobre a cabeça, um banco pesado, e vai despindo o figurino de gala inspirada em motivos africanos, figurino de criação de Tina Melo, enquanto cambaleia equilibrando o objeto sobre a sua cabeça e pessoas da plateia ficam se esquivando. Temos um objeto sobre a cabeça de um sujeito. Um sujeito pensante. Toda mulher negra é uma equilibrista. Em algum momento, uma mulher na plateia se levanta e lhe ajuda. Ela deixa o banco no chão e a abraça. 

Laís é uma criadora que conduz energicamente tudo ao seu redor. É uma usina nuclear. Bebe do vinho da tragédia grega e da catuaba da farsa brasileira. Rege a banda, rege a plateia, enquanto é observada atentamente pelo seu diretor. No dia em que fui assistir à performance cênico musical sua mãe estava lá. Uma mulher branca abandonada por um homem negro. Seu irmão também estava lá. Ela apresenta sua família e sua história de vida como quem e do mesmo modo que apresenta a equipe do espetáculo. Arte e vida misturadas significam. As inexoráveis dicotomias se diluem nos atravessamentos.

A artista está nua. Está completamente exposta e inscrita. Pega uma posca e escreve palavras sobre o próprio corpo. Lembro daquela famosa expressão de Foucault parafraseando Nietzche: “A história se inscreve nos corpos”. Saúda seu orixá, sua/nossa mãe Yemanjá. “Estamos em pleno mar”.

Mais adiante, pede licença para a mãe, a biológica, para misturar catuaba com vinho. Canta canções que falam da teimosia de ser uma mulher negra. Canta canções que significam a beleza de ser mulher negra. Não a beleza idílica, a beleza da resiliência. A beleza que fere.

Laís atua, canta, sobe no palco para tocar percussão, nos dirige palavras, muitas palavras, tem um vigor no corpo, tira a roupa, põe a roupa de volta, nos deixa nuas. Convida Amanda Rosa para cantar e se emociona. A rainha está nua. Estava ao lado da baixista que fala baixinho para ela que precisava ir ao banheiro. Ela replica para todas nós que a baixista precisava mijar. Artistas mijam. Uma mulher mija. Numa linguagem em que os eufemismos silenciam as mulheres, mijar em vez de fazer xixi significa.

Significa especialmente quando ela nos lembra, através da contagem dos 33, do estupro coletivo acontecido este ano no Rio de Janeiro, tendo como vítima uma adolescente. Pede

 

colaboração das mulheres presentes para apontar outros estupradores. São nomes de políticos, em sua maioria. São nomes que não vou lembrar aqui. Ela nos conta de uma manifestação em Salvador em repúdio ao estupro coletivo e observa que havia poucos de nós, homens, lá. Eu, por exemplo, não estava. E não interessa por que não estava, mas interessa contar que me senti constrangido nesse momento. Produtivamente constrangido.

O desenho da luz favorece o espaço, nossa presença de plateia naquela nave, de uma igreja construída por e para negros sobre o que foi o primeiro terreiro de candomblé do país. A direção musical de Andrea e a execução das canções respondem à altura ao vigor da atriz regente e sua massa sonora se impõe, com vigor, em nossos ouvidos, vibrando em nossos corpos. O figurino de Tina Melo é merecidamente posto como peça de exposição sobre um manequim nos momentos em que a atriz regente o dispensa. A sonorização precisava de ajustes e a potência vocal da atriz conseguiu se impor nos momentos em que o microfone não ajudou. Toda mulher negra é uma equilibrista.

Ao fundo da nave, uma quartinha guarda seus fundamentos. Tudo significa. O espetáculo chega ao fim, mas muitas de nós precisamos ser convidadas a nos retirar. Laís é uma xamã e temos vontade de ficar perto dela. Deixamos o teatro. Teatro? Saio com a canção de Diego Pinheiro, entre muitas outras questões e palavras assustadas, na cabeça:

En América Del Sur las negras gritaban ais.

Hace mucho tiempo, y ahora un poco más.

 

[1] GALDINO, Daniela. Inúmera. Ilhéus, BA: Mondronngo, 2013. 2. Ed. 18.

[2] FONSECA, Maria Nazareth Soares. Vozes femininas em afrodicções poéticas: Brasil e África portuguesa. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um Tigre na Floresta de Signos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. p. 285-294. Os grifos, meus, são indicativos de adaptação para uma linguagem inclusiva de gênero, adotada ao longo do texto.

C R Í T I C A

R E B A T E

O artista plástico Antônio Társis e a cineasta Íris De Oliveira reverberam o experimento coreográfico "Água Viva", criação de Tiago Ribeiro e coletivo da "Do Divino Escola Livre de Arte", apresentado durante ocupação artística feita no mês de julho no bairro do Santo Antônio, Salvador-Ba.

R E V E R B E R A

Por Igor de Albuquerque

“Não andes por aí nua em pelo”:

O interior de uma casa burguesa, mais ou menos cem anos atrás. Mobília belle époque, biombos, cortinas e xícaras de porcelana. Se não fosse pela caixa de ferramentas stanley arregada pelo primeiro personagem a entrar em cena, seria uma montagem bastante verossímil no que se refere à ambiência original do texto, escrito por Georges Feydeau em 1911. Outro traço infiel à peça é o figurino do protagonista, o deputado Ventroux: ao invés do terno, uma camisa polo anacrônica, dessas tão caras aos nossos profissionais liberais em momentos de descontração. Esse é o primeiro toque de charme que salta aos olhos no trabalho de Edwald Hackler e do grupo Argonautas. As sutis adaptações de contexto recobrem o todo em diálogo franco com os tempos que correm. Pois a arte de ajustar-se ao presente é um arcano guardado por sentinelas brucutus. Comparadas à baianização forçada e canhestra operada por Harildo Deda em Romeu e Julieta no mês passado, as pequenas atualizações da matéria em Não andes por aí nua em pelo ganham ainda mais força. Hackler não subestima o espectador, tampouco a ele se curva na busca de identificação a todo e qualquer custo. A peça

não é atemporal, ninguém é atemporal e sim, algumas distâncias precisam ser mantidas.

 

Mas a peça em si não nem está tão longe, considerando-se a recente tradução de Marcos Barbosa (disponível no site da revista Pitágoras 500). O texto, inclusive, flui muito bem, seja no papel, seja no palco. 

O deputado Ventroux está em pé de guerra com sua mulher, Clarice, porque ela não consegue

 

Foto de Valéria Simões

A máscara da comédia ridiculariza, exagera, sacaneia e ao mesmo tempo lança sobre os objetos e tipos uma sombra misteriosa que é capaz dos maiores desconcertos.

o vaudeville veste Tommy Hilfinger.

largar o hábito de andar seminua pela casa: “Ah não! Que falta de Pudor”. No dia da ação, especificamente, ele receberá um antigo desafeto político que agora surge como possível

aliado. Os ânimos estão exaltados e a sorte da comédia está lançada. Para segurar a onda do início lá estão Marcelo Flores e Alethea Novaes, o casal Ventroux, seguidos pelo mordomo transformado em nordestino – outra sutileza da direção atenta ao presente, pois em Brasília as domésticas são as nordestinas –, interpretado por George Vladmir. Marcelo, o noivo neurótico, trabalha bem demais. Além de dominar com energia a respiração da cena cômica, ele articula tudo de modo preciso. Suas falas são a um só tempo límpidas e hilárias. No entanto, sem Alethea dando vida e graça à noiva insolente tudo desmoronaria. Na verdade, o único problema do casting só aparece final com o jornalista De Jaival, interpretado por Agnaldo

Lopes, cuja atuação não acompanha o ritmo dos colegas sobre o palco. Mas já é tarde demais para o público se chatear.

 

Há, todavia, o perigo à espreita. O motivo da mulher ignorante inscrito no texto (ela troca crápula por drácula, 30 graus Celsius por 30 graus de latitude) causa ruído; tanto que várias mulheres nitidamente aborrecidas abandonaram o teatro Martins Gonçalves tão logo perceberam o tom misógino. Elas provavelmente não acharam muita graça.

 

A máscara da comédia ridiculariza, exagera, sacaneia e ao mesmo tempo lança sobre os objetos e tipos uma sombra misteriosa que é capaz dos maiores desconcertos. Às vezes rimos de coisas tão escrotas, mas tão escrotas, que nos envergonhamos de nós mesmos;

 

compartilhar essa risada aviltante só mesmo com um canalha raro, um semelhante nosso, um irmão. Reside aí a desgraça de uma espécie de gente que se acha engraçada, quando na verdade é só babaca.

No entanto, uma boa dose de babaquice é necessária a todo comediante. A medida justa dessas balizas vacilantes só consegue existir como impressão fugaz para nós, aventureiros do tempo que somos, porque também precisamos rir sem culpa; o ponto certo entre babaquice, crueldade e graça elevada dura o tempo que a ave do paraíso demora para cruzar as férias de um homem de negócios. O caos sempre vence.

 

Mas, meio alheios a cerebralizações, vão seguindo Os Argonautas comandados pelo velho capitão Hackler. O texto de Feydeu é bem executado em seu temp. Quem chega ao final – além de agradecer a aula de história do teatro – aplaude os momentos hilários recém-vividos. 

Boa parte da peça versa sobre a bunda de madame Clarisse, isso deveria ser gozado. Mas

chupá-la ou não chupá-la continua sendo uma questão.

C R Í T I C A

Por Daniel Guerra

Eu realmente fico na dúvida sobre os textos mais recentes de Eduarda Uzêda. Na maioria das vezes, topo com resenhas mais ou menos detalhadas, acompanhadas de entrevistas e fotos, mas em outras, encontro com algum híbrido de crítica, elogio e resmungo, que mais parecem comentários brotados de algum chá das cinco organizado pela redação. “Fulano é ótimo, mas Beltrano…” Quando um ouvido atento escuta isso, mais do que procurar saber quem é Fulano ou Beltrano, deve antes buscar o significado dessa palavra: ótimo. Afinal, o que faz uma coisa ser ótima?

De acordo com Uzêda, ótimo pode ser: leve, divertido, relaxado, bem humorado, bem amarrado, insano, lúdico, inteligente, engraçado, versátil, bom, sintonizado, afiado, brilhante, seguro, vivaz. Toda essa fauna de adjetivos foi copiada de sua mais recente crítica, sobre o espetáculo Egotrip. Tais palavras poderiam descrever bastante bem as qualidades de Carlinhos, brilhante neto de uma daquelas senhoras do chá das cinco. Mas tratando-se de arte, como aplicá-las?

Não interessa. Pois entre os artistas teatrais soteropolitanos, ainda há o seguinte costume: basta que saia um texto em algum jornal, que se tire uma foto e se publique na timeline, e pronto: o trabalho crítico é considerado feito. O fato é que há muitos anos Salvador não tem uma crítica condizente com a enorme produtividade do campo. E, a despeito dos resmungos habituais, o campo tem produzido muito. Agora, se a maioria é ótima ou não, são outros quinhentos, e, honestamente, essa questão não me interessa.

De alguma forma, os artistas se acostumaram a ter essa personagem como figura central da divulgação teatral, e parecem viver bem com isso. Aceitam a condição de ter seus trabalhos retratados por Uzêda assim como alguém deve suportar certas manias de parentes queridos. Muitas vezes, até eu. É necessário reconhecer: com a escassa circulação de materiais sobre arte nesta cidade, como não usar o mínimo que nos dão?

Mas se a função da crítica deveria ser pensar e criar junto, como aceitar, sendo simultaneamente crítico e criador, que um dia seu trabalho possa ser traduzido assim: “João [Sanches], no texto, também toca na angústia da passagem do tempo e dos imbróglios amorosos através da relação do personagem Rafael e sua noiva Isabel. E se debruça sobre imaginário rural. Mas tudo de maneira engraçada, o que não significa que não promova reflexão.”

Tudo bem que a “angústia da passagem do tempo” seja uma aproximação, bastante forçada aliás, com um existencialismo que, no espetáculo, está longe de ser constatado. Tudo bem que os “imbróglios amorosos” deem ao texto cores que só as ótimas comédias de Shakespeare possuem; mas o que dizer desse surto bucólico que “se debruça sobre imaginário rural”?

Fico confuso. Quem é que imagina esse imaginário rural? A crítica, o espectador, o “homem do campo”, ou os realizadores da peça? Porque se formos opor a visão de um habitante interiorano com a dos realizadores, encontraremos vários problemas. Afinal, boa parte das cidades baianas do interior é altamente urbanizada. E mesmo a comunidade fictícia dos Laraiás, retratada pela crítica como “louca e nada convencional”, fugiria a esse ideal, por ser de uma surrealidade tão grande quanto é surreal caracterizar um velório interiorano como “cena de um filme de terror”. Bom esclarecer, esta última fala não é de Uzêda, e sim de um dos personagens de Egotrip.

Mas o problema maior vem ao final da citação. De acordo com a crítica, há uma essencial oposição entre diversão e reflexão, constatação que faz o cadáver de Brecht retorcer-se na cova. Quando ela diz que, além de ser engraçada, a peça promove reflexão, separa claramente as duas instâncias. Diz que Egotrip constitui uma exceção frente a uma norma imaginária, que seria: se eu dou risada, não posso refletir. Nem preciso continuar para que todos saibam que isso sim é uma piada.

Por outro lado, eu mesmo pude refletir bastante, quando o personagem Galego diz para o personagem “gay coxinha”(é assim que a peça o adjetiva): “Se eu fosse homofóbico, te daria umas três porradas”, ao que o outro responde, visivelmente excitado: “Bate, bate!”. Esse diálogo, falado assim, em pleno Rio Vermelho, numa semana em que ainda ressoava no ar a morte brutal de um homem gay nas ruas do bairro, me causou um constrangimento tão grande que não me permitiu o riso, apesar da cena orientar para esse lado. Então, de certa maneira, posso concordar com Uzêda: nesse caso, riso e reflexão estavam sim, separados.

Não interessa. Pois entre os artistas teatrais soteropolitanos, ainda há o seguinte costume: basta que saia um texto em algum jornal, que se tire uma foto e se publique na timeline, e pronto: o trabalho crítico é considerado feito.

LÁPIDES, PRAÇAS E TEATROS

Crítica a partir da crítica de Eduarda Uzêda sobre “Egotrip —Ser ou não ser, eis a comédia”, publicada no Jornal A Tarde, dia 13 de Julho de 2016.

Mas não sejamos tão duros. Reconheçamos o lugar específico de onde brota o discurso da única crítica em todos os jornais impressos de Salvador. Eduarda Uzêda acompanhou um período em que o Teatro Baiano (assim mesmo, em maiúsculas) vivia uma grande produtividade. E se a produção se delineia sobre um campo político e ideológico, é claro que daí também resultará uma crítica que faça jus a tais configurações. O Carlinhos citado no começo do texto não é despropositado. Com ele tratamos também da dinastia Magalhães.

Um dia me deparei, no cemitério do Campo Santo, com o túmulo do avô Antônio Carlos, e me arrepiei quando vi que os mármores que recobriam sua lápide eram os mesmos que recobrem as  novas praças de Salvador. Então entendi: o carlismo, além de ser hegemonia política, é antes de tudo uma proposta estética. Temos produções eurocêntricas, produções amadoras, produções negras, produções feministas, produções infantis e por aí vai, assim como temos, irremediavelmente, produções carlistas. E para isso não é necessário apoiar este ou aquele partido, levantar tal ou qual bandeira. Basta que se reproduzam certos artifícios.

A famosa política de balcão ainda respira por estas bandas; é o nosso ovo da serpente, propenso a eclodir ao mínimo fraquejar das políticas culturais. Necessário tomar muito cuidado, afinal, são tempos progressivamente sombrios. Como alguns sabem, a política de balcão caracteriza-se por uma extrema cordialidade entre homens públicos. Num escritório, a portas fechadas, pode-se decidir quem deve e quem não deve ser patrocinado, quem deve e quem não deve ter seus méritos de artista reconhecidos. Uma fachada de intimidade entre gestor e artista pode esconder grandes abominações, evidentemente ideológicas.

Por isso o uso excessivo dos adjetivos. Bom, divertido, leve, chato; todas essas palavras poderiam ser usadas como descrição de uma pessoa qualquer. O mundo da intimidade é realmente propenso a generalizações, de forma que se há um grande diretor, por exemplo, é provável que por trás dessa grandeza haja uma série de pequenos contatos privilegiados e contrabandos de informação.

Ora, se os mármores da lápide do avô reaparecem no urbanismo do neto, quer dizer que as adjetivações de balcão reaparecerão em certos estilos de encenação e escrita. Uzêda, conscientemente ou não, faz ressoar, na sua crítica, a possibilidade da volta de um Teatro Baiano já bastante reconhecido como estilo (basta perguntar “lá fora”). Nos seus textos, os elogios a tal poética não são poucos, e mesmo que justificados, deixam transparecer um proselitismo subliminar.

Quando fraquejam os recursos públicos para a arte, começam a despontar produções que precisarão inflamar o mercado, a circulação de trabalho e capital, e sabemos, infelizmente, qual a parcela da sociedade que pode despender 50 reais para ver uma peça qualquer. De repente, atores e diretores são abduzidos por essa forma de trabalho, justificando-se sob o discurso do “leve”e do “divertido”, quando essa leveza, na verdade, é construída e sustentada por uma pesada máquina sociocultural, reprodutora de imensos equívocos.

A classe média endinheirada, a família tradicional e os bons costumes vicejam novamente, refluem pouco a pouco sobre todas as áreas, encontrando zonas de fuga e acomodação discursiva. E é lógico que se não há dinheiro circulando entre grupos e coletivos de investigação, propostas inovadoras e discursos diferenciais, a maneira mais fácil de engajar capital, fazê-lo circular, será pisar e repisar aqueles velhos dispositivos estéticos, aquelas piadas e aqueles adjetivos que todos sabemos bem, fazem uma maioria rir ou chorar, mesmo que não se queira, pois, afinal de contas, a hegemonia é uma cobra parideira, sempre pronta a dar o bote.

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

DRAMÁTICAS

Por Laís Machado

Rizoma criado a partir da leitura dramática de "A mulher do fundo do mar", no Festival da Nova Dramaturgia de Melanina Acentuada.

CENÁRIO

Uma sala com piso de madeira, e paredes de pedra faltando alguns pedaços. Algumas fileiras de cadeiras dispostas de frente para uma mesa atravancada de objetos. Um telão com uma luz alaranjada atrás da mesa. Nas duas janelas visíveis, pessoas espiam apreensivas.

 

CENA 1

Na mesa, uma mulher do fundo do mar ouve o som do mar em uma concha. Pessoas se acomodam nas cadeiras em frente à mesa.

VOZ EM OFF: Era uma leitura, mas não era uma leitura. Por que sendo uma leitura não podia ser, de fato, uma leitura?

Mulher do fundo do outro mar fecha os olhos.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Vou manter assim fechado, tá?

MULHER DO FUNDO DO MAR: Não! (Num grito) Abra! Olhe estou (sublinhando a palavra seguinte) fazendo coisas.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: (em um tom ingênuo) Tenho limitações. Quero só ouvir.

MULHER DO FUNDO DO MAR: Abra. Venha comigo. Você vai se perder sem isso. (Falando baixo, quase sussurrado) Não estão lendo as rubricas.

(Pausa)

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Verdade. (Abre os olhos).

 

CENA 2

A mulher do fundo do mar pega uma lata de ervilha.

MULHER DO FUNDO DO MAR: Desculpe, tenho fome.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Vai comer isso?

MULHER DO FUNDO DO MAR: Não. É Teatro.

A mulher do fundo mar pega o vinho.

MULHER DO FUNDO MAR: Desculpe, tenho sede.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Vai beber isso?

MULHER DO FUNDO MAR: Vou.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Mas não é teatro? Onde não se come, se bebe?

MULHER DO FUNDO DO MAR: Aí já é metafísica.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Está falando de Baco?

MULHER DO FUNDO DO MAR: Não de Aristóteles.

Pausa. Riem.

A mulher do fundo do mar começa a retirar coisas da caixa. Tira os três livros de Stanislavski. Pausa. Bebe. A mulher do fundo do outro mar faz um muxoxo

MULHER DO FUNDO DO MAR: O que foi? Já leu?

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Às vezes acho que ninguém fez isso.

Mulher do fundo do mar ri e continua a tirar livros da caixa. Dessa vez tira três grandes tomos idênticos, de capa dura e envelhecida. Cada um com um título em letras douradas: Professor da ETUFBA 1, Professora da ETUFBA 1, Professor da ETUFBA 2, Professora da ETUFBA 2. Mulher do fundo do outro mar faz muxoxo novamente.

MULHER DO FUNDO DO MAR:(Com tom de desdém) Jovens! (Com ar professoral) Não sabem apreciar a complexidade destes livros.

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: Quem disse que eu disse isso? (Com ar de revanche) Já nadei nesse mar aí. Só não escolhi ficar. Eu estou certa. Você está certa. Estamos certas.

MULHER DO FUNDO DO MAR: Você está na superfície.(Sorriso malévolo)

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: (Com ar de ofendida) E você no eixo (Sorriso malévolo)

 

CENA 3

Toda a sala está escura. Foco de luz na Mulher do Fundo do Mar e um outro foco de luz na mulher do fundo do outro mar. Ambas seguram um espelho.

MULHER DO FUNDO DO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

MULHER DO FUNDO DO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

MULHER DO FUNDO DO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

MULHER DO FUNDO DO OUTRO MAR: (Grita para o espelho) Me deixem navegar!

 

Luzes se apagam.

FIM

R I Z O M A

Laís Machado entrevista Aldri Anunciação, dramaturgo e criador do Melanina Acentuada - Festival Nacional de Dramaturgia Afro-brasileira, que vai até o dia 14 de agosto. Confira a programação no site http://www.melaninaacentuada.com.br/

Laís Machado encontra Aldri Anunciação

E N C O N T R O

Para começar, façamos um acordo básico: pense junto comigo sobre o fato de que o ato criativo não ocorre apartado das mediações entre corpo e ambiente. Isso nos sugere não só uma obviedade sobre a tentativa incansável de nós ocidentais, em não separar mente e corpo ou sujeito e objeto, como também uma mudança no olhar sobre as implicações entre temporalidade e pensamento histórico.

Podemos dizer a partir dessa obviedade (da implicação entre corpo e ambiente a qual relutamos em admitir conscientemente em função do peso de mecanismos regulatórios e estáveis, burocráticos ou hegemônicos), que configuramos o mundo na mesma medida em que somos configurados por ele. Isso pressupõe o encontro com o outro, o que por sua vez impõe zonas de constrangimento, instabilidade, deslocamento, crise e criação de estratégias de sobrevivência.

Mas o que isso tem a ver com arte? Bem, tendo em vista os pressupostos acima levantados, podemos olhar para arte ou para os procedimentos que ocorrem num processo criativo, para a importância desses procedimentos na constituição da história e, consequentemente, para a produção de conhecimento sobre o sujeito e as coisas no mundo, considerando sua interação dialógica ou violenta com o contexto. Isso porque a esfera da arte tem uma predisposição a testar os limites no encontro com o outro.

A arte, ao testar formas distintas de comunicação, age sobre os limites do corpo e os limites da linguagem, constituindo uma zona de possíveis. Ela opera nessa zona de margens e fronteiras (aquelas que se constituem da eliminação do outro, mas que ao mesmo tempo é infiltrada pela força das relações), seja na preservação, seja na diluição das mesmas. Constitui-se pela tessitura desse espaço que evidencia processos de contaminação e heterogeneidade.

A fim de evidenciar esse último movimento em relação às margens e fronteiras, aquele que atua pela infiltração, agenciamento e contágio promovendo a diluição de certezas, a arte desloca suas competências estabilizadas. Suas formas de comunicação são atualizadas em acordo com suas crises, as crises do seu tempo, e com a incapacidade de “expressar” o que se deseja dentro de uma margem que controla, ordena e impõe fidelidade a “elementos” tradicionais que definem as coisas: o que é teatro, o que é dança, o que é performance  etc.

Artaud, quando propõe o corpo sem órgãos como forma de tornar o teatro insubmisso ao texto, se depara, e ao mesmo tempo instaura o limite da linguagem. Duchamp provoca uma real implosão do que se entende por arte friccionando lógicas de mercado, técnicas de arte e recepção colocando o conceito acima de qualquer produção estética e representacional. Tatsumi Hijikata propõe uma dança que não seria possível sem o trauma da guerra, incorpora a morte e a potência de vida, produzindo uma corporalidade de devires (bicho, mulher, homem, planta...).

Com isso, não sei exatamente se o dilema do ator contemporâneo, pensando no teatro, por exemplo, deveria estar na descentralização do drama, mas talvez na ideia de inexistência do drama, pensar no limite, na ausência de chão. É evidente que o corpo se relaciona com o mundo e as informações a partir de um campo de referências e que buscamos a todo tempo fazer associações entre as coisas.

Mas vamos arriscar começando pela mudança nas perguntas, vamos tentar sair do porquê para o como.  A partir disso, proponho uma pergunta para embalar nossa conversa: Como lidar com aquilo que é estranho, que não encontramos referência para alguma associação e rejeitamos como forma de defesa, exatamente porque nos desestabiliza?
 

Eu responderia assim de modo quase irresponsável que um primeiro passo seria olhar para o meu afeto, o afeto que foi proporcionado pelo encontro com essa coisa que não sei o que é, mas que me gera alguma repulsa, e que ao mesmo tempo pode me despertar desejo, ou que me dilui enquanto sujeito indenitário e me coloca em risco porque não tenho vocabulário para lidar com aquilo.

Pensando os [dilemas] desafios do ator artista contemporâneo [diante da descentralizaçãodo drama] em meio a crise de paradigmas [1]

Por Isaura Tupiniquim

Olhar para esse afeto é também tentar atravessá-lo, transgredir o interdito do medo, e isso não é a mesma coisa de se lançar no desconhecido sem qualquer noção de preservação... Olhar para esse afeto do estranhamento é olhar para si mesmo tentando mapear em tempo real, de onde vêm as minhas certezas. É pensar se o campo de linguagem que me é dado dá conta de improvisar a partir das incertezas, criando outras formas possíveis, inacabadas e até mesmo abjetas, ou somente me sugere como alternativa a afirmação de paradigmas de segregação e recuo.
 

Se optarmos pela primeira possibilidade, muito mais complexa que a última, precisaremos fundamentalmente nos abrir para o outro, e isso implica, evidentemente, o embate com o outro. Nesse sentido, penso na ideia de Rancière[2] sobre o dissenso, para quem esta ideia constitui o processo político, em que não é possível simplesmente se fechar ou “evitar o conflito” em que há um jogo dinâmico de negociação constante entre sujeito e regimes de poder.

Nesse sentido, interessa, aqui, ativar no corpo o estado antropofágico, deixar-se contaminar pelo “diferente” e ao mesmo tempo abandonar as “catequizações”, caso não lhe sirvam mais (penso aqui no comportamento dos Tupinambás descrito por alguns estudiosos). Esse desprendimento quase sarcástico em relação às normas é o que faz da transgressão e da interdição opostos complementares que fundamentam as relações humanas.

Suponho, portanto, que o processo compositivo do ator ou dançarino, pensando neles como criadores e, também, intérpretes, seja potencializado quando em estado de crise. Justamente porque, em estado de crise, nos deparamos com o limite das possibilidades de comunicação e manutenção de certos reguladores e operadores de poder que controlam e agem diretamente sobre o corpo.

E é nesse processo, em que a precariedade pode ser compartilhada pela mastigação e regurgitação de tudo que lhes é imposto como norma, que se evidencia o abandono de artefatos (no caso das artes cênicas, penso na insistência em legitimar uma obra a partir de recursos tradicionais da cena, como: luz, figurino, maquiagem, etc.) antes imprescindíveis.

Assim, atentar para os “micromovimentos de interface”[3] (aquilo que age no movimento entre o dentro e o fora), ou seja, lidar com o excesso deste tempo, com a anestesia produzida pelo excesso, com a crítica ou autocrítica paralisante e com a crise como potência de movimento, seja, o principal desafio do artista contemporâneo.

 

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[1] Esta resenha é um desdobramento de uma fala realizada por mim no projeto “Mínimos Óbvios” do grupo de teatro “Atelier Voador” para compor a mesa sobre o tema: “Dilemas do ator contemporâneo diante da descentralização do drama”, em 25 de maio de 2016​

[2] RANCIÈRE, Jaques. O dissenso. In: NOVAIS, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[3] GREINER, Chistine. O corpo em crise: novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010, pag: 94.

 

Referências

BATAILLE, Georges. La conjuración sagrada: ensaios 1929-1939. Tradução de Silvio Mat-toni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2003.

DICIONÁRIO Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva LTDa. Windows, 1 CD-ROM.

GREINER, Chistine. O corpo em crise: novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010.

_______________. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

RANCIÈRE, Jaques. O dissenso. In: NOVAIS, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

 

E N S A I O

Peço perdão aos evoluídos criadores, mas penso que todo artista é um tanto quanto perturbado pelos porquês. Principalmente aqueles que sentiram as consternações em sua passagem por alguma academia artística. Os porquês, sejam eles internos ou externos – admitamos, insofismáveis vide suas repercussões – sempre atormentarão os artistas. Vão assombrar eternamente e em muitas vezes deprime de maneira progressiva, capaz de deixar a pó o pobre corpo atribulado. Mas há de se encontrar um expecto patronum para expulsar o cume da demência e fazer das indagações cúmplices do ato de criação. Logo, deixo claro que falo dos porquês que, tal qual qualquer outro elemento, surgem para compor algum processo criativo, tendo variadas e complexas origens, embora eu acredite que porquê bom é porquê estético.

Invocando o avatāra do grande mestre russo, Stanislavski – não aquela, empalhada, que perambula pela encruzilhada da Araújo Pinho –, estar preso a inspiração, capacitando-se, somente, dela mesma, é o ato rudimentar de produção. Seria como encarar o ato primeiro como estrutura e processo, mantendo-se alheio as vozes “indagantes” – mesmo aqueles que não as ouvem, serão assombrados nos amanhãs. Tais vozes nascentes em dois círculos, o da obra e o círculo que a circunda.  Deixar de ouvir todos os porquês é se manter num “padrão de qualidade” ou assumir, cônscio ou não, o alheamento, e ambas as alternativas caem, no geral, em situações vexativas.

 

Deixar de ouvir um porquê ou outro = momento em que tais elementos se tornam cumplices daquele que, possuindo este entendimento radical, se coloca na situação de “se desacostumar do fado fixo e ser arbitrário”[1].

 

Sem embargo, assumo o papel daqueles porquês externos, que não necessariamente se relacionam com as vozes não ouvidas pelos artistas de Na Coxia do Coletivo Quatro. Se originam a partir de algumas análises, talvez tácitas e entendidas por osmose do campo de produção artística em teatro e pela igual condição sócio-política que abarca a condição de artista.  Elenco estes porquês também no intuito de amenizar a minha total estranheza e entender em que tempo Na Coxia se situa.

Fundamentalmente uma pilhéria. Eu fui completamente pego de surpresa e me constrangi com a minha dislexia. Tinha visto o cartaz e tinha lido “o sucesso de Fábio Jr.”. Ora, tinha pensado que era uma nova montagem de uma peça, de algum autor, talvez do eixo Rio-São Paulo, e que o Coletivo ou produção colocou a frase enquanto uma possível estratégia de divulgação. Ou seja, completando a minha “atoleimação”, para mim “o Fábio Jr” era um dramaturgo, talvez um desses que tivesse ganhado um Shell da vida. Não conhecia a primeira música, mas quando ouvi Senta Aqui – música que tocava na vitrola de casa quando criança – o cartaz me apareceu novamente, junto com um “C”, um “M”, completando o “Com”, e o “S” formando o “Sucessos”, e assim fez-se a luz: “Com Sucessos de Fábio Jr.” De minha parte, surpresa e susto totais. Por que cargas d’água Fábio Jr?

Que tipo de fenômeno assolou o Coletivo, levando a se inspirarem em “sucessos” de uma espécie de Dinho Ouro Preto sessentão para dar o “tom” de Na Coxia? Fábio Jr, quando sustenta o seu alheamento político e adota a boa linguagem prosélita e infantil, entende que é no momento que veste a bandeira verde-amarela é que se faz estética[2]. Enunciação performativa que faria de qualquer Austin, e qualquer bom fascista brazuca, orgulhoso.

Por que pareceu potente para o Coletivo Quatro trazer à tona “os sucessos de Fábio Jr” num momento estético-político tão conturbado?

Uso esse binômio, estético-político, não só por considerar que o problema político brasileiro é uma questão estética, mas também pela problemática perpassar as reclamações de um tempo, principalmente de um tempo soteropolitano. De um novo posicionamento ético, político e, principalmente, estético. Se este tempo reclama pela via vermelha e pela via verde-amarela, não podemos omitir um terceiro caminho: o que impele os artistas, que é justamente o caminho estético. Estética talvez no seu auge filosófico e platônico, a junção “perfeita” entre a sensibilidade e a ética, eis um posicionamento estético-político. Logo, estética também em seu sentido tradicional, o de criação, onde nascem os bons porquês.

Para completar essa questão, o enredo da peça conta a história de um grupo de artistas de teatro que não se encontra há mais ou menos dez anos, mas especificamente desde o assassinato do diretor do grupo – um enredo à Som e Fúria (série da Rede Globo). Um dos atores-personagens consegue dinheiro via edital e convoca os outros integrantes para um

Por Diego Pinheiro

BOLHA

A partir do espetáculo Na Coxia, do Coletivo Quatro

retorno ao palco do “galpão” onde o grupo trabalhava. A partir desse mote, Na Coxia lida com estereótipos como o sistema hierárquico, diretores e atores, atrizes histéricas, atores que não gostam de trabalhar e a um tipo de processo que mais parece daqueles grupos de trabalhos escolares do ensino médio, aquele que somente um acaba fazendo tudo, no caso do enredo, o pobre e soturno diretor-sofredor.

Vamos levar em consideração o público de Na Coxia. Será que o Coletivo não fortalece aquela visão que o bom fascista brazuca tem no que se refere aos artistas e, sobretudo, no que se refere aos artistas de teatro? Ou até mesmo não reforça aquele “recado” do deputado Marcos Feliciano para os artistas que se manifestaram contra o fim do MinC?  Pela dramaturgia – que segue a grande tradição do teatro baiano de se falar, de desgastar o tema teatro na própria linguagem – assinada por Fernanda Paquelet, me parece que para aqueles artistas política é somente políticas culturais via editais públicos para arte.

Li em um dos releases pela internet, que o Coletivo Quatro, se intitula como um coletivo de pesquisas, com enfoco no teatro musical. Não sei exatamente qual seria o entendimento do Coletivo sobre a pesquisa continuada em arte, muito menos se acompanharam a movimentação de grupos como o Viansatã, Alvenaria, Teatro Base, Vilavox, Duo, dentre outros grupos e coletivos culturais entre os anos de 2010-2012 quanto a busca do entendimento, pelo Fundo de Cultura, do que seria um grupo de pesquisa continuada em arte. Também não sei quais são as novas luzes que trazem, já que o coletivo é de investigação, sobre o objeto, teatro musical. Mas, percebam, parecem saber que para se manter em investigação constante o espaço físico é imprescindível.

O Coletivo Quatro reside hoje em um dos galpões do Forte do Barbalho, o mesmo galpão ganha o nome Galpão Wilson Mello e se torna mais um espaço artístico na cidade. Bonita homenagem ao ator, morto em 2010. A questão é que o espaço que era um galpão não é mais. Fiquei assustado ao entrar e ver um pequeno teatro italiano, para 80 pessoas, um pouco maior do que o Teatro Gamboa Nova. Um teatro italiano mesmo. Palco de madeira, boca de cena, varas de luz, espelho ao fundo e tapadeiras, tudo muito fixo com uma grande arquibancada para os espectadores. Numa cidade que explode em experimentalismo (mesmo não ganhado a devida divulgação), principalmente espacial, onde artistas questionam o edifício teatral e suas limitações físicas e burocráticas – e por causa disso investindo em ações urbanas, diga-se de passagem, potentíssimas – o Coletivo Quatro cria mais um teatro italiano, que poderia muito bem ser chamado, por que não, de Teatro Wilson Mello.

Todo mundo sabe desse déficit em Salvador, poucos espaços, em sua maioria esmagadora italianos, com pautas caríssimas, tendo somente o Teatro Gregório de Matos, o Teatro Vila Velha e, com algum esforço, o Espaço Cultural da Barroquinha, como espaços dinâmicos para outras configurações espaciais para as artes cênico-performativas.

A sensação de que Na Coxia se desajusta com o fluxo do hoje, tem sua origem no possível alheamento dos artistas envolvidos. É necessário entendermos, principalmente neste lugar de artistas, o quanto isso pode ser ruinoso. O tempo pede que estejamos à espreita.  

 

Enfim, eis meus porquês.

O resto é silêncio...

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[1] Fragmento de Sargaços, poema de Waly Salomão.

[2] Fábio Jr no Brazilian Day 2015.

A sensação de que Na Coxia se desajusta com o fluxo do hoje, tem sua origem no possível alheamento dos artistas envolvidos.

T R E T A

Crítica impressionisticamente selfie sobre uma experiência contemporânea de ver uma instalação performativa numa Casa Chamada Barabadá

A travessia para assistir/participar da intervenção “Um Corpo em Casa”, projeto coletivo de ocupação da Casa Barabadá por 4 meses, começa quase um mês antes. Sou convidado a um evento, confirmo presença e recebo uma mensagem simpática dizendo que posso adquirir meu ingresso com antecedência, adiantando minha vida, por um lado, e colaborando para a consolidação do projeto, por outro. Topo, claro, não só por ter amigos envolvidos na empreitada, mas por entender que há uma pulsão didática importante nessa relação em que artistas autonomamente, sem nenhum incentivo público ou patrocínio privado, se lançam em busca de parcerias e apoios mais horizontais a fim de ocupar espaços potencialmente virtuosos para experimentações no campo das artes contemporâneas.

Passo um domingo com a experiência de um corpo em casa, entre a leseira dominical, trabalhos pendentes e tarefas domésticas e vou com esse título geral da ocupação na minha cabeça enquanto me desloco a pé do Politeama até o bairro do Santo Antônio. Era um corpo em casa que se deslocava para apreciar uma ocupação chamada Corpo em Casa. Já no final do trajeto, para um carro ao meu lado e vejo um amigo me oferecendo carona para subir a Ladeira do Carmo. Ele me avisa que tinha acabado de acontecer um assalto e era melhor eu subir com ele. Não sou muito impressionável com a violência urbana, sou bicho de cidade, um corpo negro que em algumas situações passa invisível, mas não posso deixar de mencionar essa experiência numa coluna que se chama Selfie. Por mais que negue, cheguei com um olhar sobressaltado e pensando na comodidade de ser um corpo em casa, quando sair é sempre um risco.

E com esse olhar sobressaltado chego à Casa Barabadá e vejo Barbara Freitas tocar uma cuíca enquanto morde uma flor (um cravo branco) na sacada da janela que dava para a rua. Ela me fisga com o olhar. Entro na casa, já bastante ocupada, me identifico como comprador de ingresso antecipado e, após algumas orientações sobre minha liberdade de me mover pela casa e fora dela e consumir, se quiser, produtos do bar da durante as apresentações, entro na sala à direita. Lembro também que perguntei onde aconteceriam as apresentações e ouvi como resposta um amável: “você vai perceber”.

Bem, trata-se de uma casa enorme, provavelmente do início do século passado, mais comprida que larga, com pelo menos 3 quartos além dos cômodos extras no quintal, uma sala onde estava Bárbara e onde já tinha um monte de gente sentada em cadeiras e no chão próxima às paredes e uma das janelas com Barbara mordendo a flor e tocando a cuíca. Lembro que me deu vontade de sair e voltar a olhar de fora e que a sensação era mais interessante, talvez porque fosse mais confortável. Já fraturei o cóccix e ficar sentado no chão por mais de 15 minutos não é a melhor coisa que sei fazer.

Existe um momento em que Barbara desce da janela e aí a gente pensa: começou. Os movimentos de Bárbara se voltam para o interior da casa e finalmente ela se desloca em pé entre nós, dois cômodos e o corredor que dá para a copa. Aquela sensação de fisgada inicial vai se perdendo e tenho aquele sentimento de que mais uma vez me chamaram para ver um espetáculo que rompe com a quarta parede e com o padrão burguês do palco italiano, mas a gente tem de ficar quietinho prestando atenção como se estivesse num teatro. Mas vislumbro nesses movimentos um

UM CORPO SAI DE CASA PARA VER UM CORPO EM CASA

Por Alex Simões

Foto de João Rafael Neto

jogo entre repetição e diferença e um vigor que me fazem querer ver no que aquilo vai dar. E tinha uma criança de colo chorando (muito até) e a interação que ela estabelece fluida e organicamente com essa criança foi o segundo momento que mais gostei de ver. Fiquei pensando no éthos, como relacionar aqueles movimentos com a ideia de um conjunto de códigos e princípios conformadores de uma cultura. Fomos conduzidos por ela a conhecer três cômodos da casa e depois a ficarmos desconfortavelmente imprensados no corredor, mas felizes porque sabíamos que aquilo tudo ia dar na copa. E assim foi.

Lá na copa estávamos mais confortáveis. Eu, pelo menos. Nirlyn Seijas fala um pouco sobre a dinâmica da ocupação, sobre sua curadoria intitulada “O Popular me Atravessa” e nos explica com porcentagens quem estava financiando aquilo. Esse foi um momento tão bonito quanto todos os momentos bonitos da noite. Me senti um espectador-participante tratado como adulto, como apoiador, sem nenhuma hipocrisia, nem minha, nem dela.

Começa então o duo com o título gigante “O horizonte é quando a vista deita os encantos do mundo”,de Ana Brandão e Thiago Cohen,com movimentos referentes à cultura popular pernambucana, sobretudo o cavalo marinho, o boi, o maracatu. Me sinto mais convocado, entendendo melhor porque estávamos ali, fora de um palco italiano, e apesar da dor no cóccix podia perceber melhor o popular nos atravessando. Estava tudo lindo, até que resolveram fazer um joguinho de beber água e cuspir uns aos outros. E como sou chato, não curto saliva alheia sem beijo envolvido, e já sabia onde tudo ia dar, abri meu guarda-chuva e isso gerou riso e os bailarinos responderam dentro da dramaturgia do movimento deles à minha reação, sem subserviência, mas ao mesmo tempo respeitando e acolhendo meu gesto. Sim, eles molharam todo o palco e alguns dos espectadores.

E tinhas as cantigas. Eram dois corpos nus da cintura pra cima que ora jogavam entre si em silêncio, ora entoavam cantigas, sendo que em um momento fizeram uma bonita homenagem a mestres da cultura popular de quem ambos se sentiam tributários. E tinha uma alegria no olhar das pessoas. Tinha um afeto que nos atravessava assim como o popular atravessava os espetáculos da noite. E aquela brincadeira chata (pra mim) com a água culminava numa cantiga mais ou menos assim:

“São Sebastião derramou

amor na água

que te deram pra tomar

Bebe, bebe

A água que me deram pra tomar”

 

E eles terminam coreografia indo em direção ao quintal, mas a chuva torrencial que resolveu cair naquele justo momento não os deixou sair, era muita, muita água. Tanta a água que nos deram pra tomar. E foi aí que caiu a ficha de que minha pulsão em entender tudo não fazia nenhum sentido ali, e meu cóccix continuou doendo, mas sem me convocar tanto. Pensei então no desenho de movimento de ambas as apresentações que nos fizeram efetivamente atravessar aquele espaço. E o sobressalto virou alegria de estar ali, bebendo amor.

E o popular me atravessou. E eu era, novamente, um corpo em casa.

S E L F I E

editorial ed 5

V.1 n.5 2016

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