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CRÍTICA Largo
REVERBERA Leonardo França
CRÍTICA - Ressignificar - Crítica de O Jogo dos Signos
CRÍTICA DA CRÍTICA -Os bons jovens perdidos em outros tempos (9)
RIZOMA - Retrato do artista quando chove (9)
ENCONTRO com Viansatã (9)
ENSAIO O Contexto da presença (9)
SELFIE - Ter a alma e o corpo nus (9)
TRETA - Manobra de Flanco (9)

o u t u b r o

Ressignificar - Critica de O Jogo dos Signos, por Bárbara Pessoa 

Ressignificar - Critica de O Jogo dos Signos, por Bárbara Pessoa 

Os bons jovens perdidos em outro tempo, por Ruy Filho

Crítica Largo, por Igor Albuquerque

Retrato do artista quando chove, por Daniel Guerra

Manobra de flanco, por Diego Pinheiro

Tera alma e o corpo nus, por Saulo Moreira

O contexto da presença, por Laís Machado

Núcleo Viansatã, por Laís Machado

O multiartista Leonardo França reverbera o espetáculo-solo "Casa de Ferro", de Maurício Assunção.

Por Bárbara Pessoa

15 de novembro, dia da proclamação desta república cansada. O Teatro Vila Velha estava apinhado de gente. Na sala principal, Jessé Souza, Maria Rita Kehl e Marcelo Freixo discutiam os “caminhos e descaminhos da democracia no Brasil”; no Cabaré dos novos (café-teatro do Vila onde funciona uma sala de espetáculos), um telão projetava os três intelectuais; no Passeio Público muita gente perambulava depois de não ter conseguido entrar para ver os palestrantes.

16 de novembro não é uma efeméride para nós – vá lá: a Wikipedia registra o Dia Nacional de Atenção à dislexia por uma lei de 2015. Teatro Vila Velha deserto. Nada na sala principal, mas no Cabaré começaria Largo – remontagem. Até o começo da apresentação eu e mais quatro pessoas nos juntaríamos aos cinco artistas que performariam naquela noite.

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Os artistas começam pelo movimento. Vão mudando cadeiras de lugar, arrumando cabos e luzes, posicionando caixas de som dentro do círculo que inicialmente o público forma. Quem toca os primeiros ritmos são os ventiladores. João Meirelles testa efeitos em ruídos microfônicos diante de uma caixa, Lia Cunha anda de um lado para o outro ajustando luzes e câmera, Uru Pereira começa a arrumar pedais e caixas em outro lugar, Pedro Filho pega objetos em cima do palco e ativa um programa no PC. Há ainda a participação de Leo França, que, apesar de não estar fisicamente no lugar, participa mandando áudios via Whatsapp com sugestões de melodias e células rítmicas. No cenário há um elemento importante para a orquestração processual da performance: um setlist adesivado no chão, objeto plano à vista de todos, feito com letras divertidamente desenhadas em amarelo.

Agora Uru está na frente de um pedal EHX Pitchfork ligado a um microfone que transforma sua voz em sibilos de R2D2 e urros

Considerar a dimensão dos interesses sugere movimentos mais arrojados ao redor dos limites. Às vezes só é preciso querer para se saltar uma cerca. Mas também dá pra passar por baixo. Ou pelo meio dos arames.

estão presentes ajudam na tarefa que em outro momento poderia ser monótona e tediosa, mas não ali. Ali se sente o raro-efeito do ar que se respira após uma aventura.

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Voltando ao início: a diferença entre os dias 15 e 16 de novembro. Não é o objetivo discutir estratégias de divulgação, muito menos o sucesso e o fracasso de um evento, ou de um encontro. Mas, os contrastes friccionados entre cheio/vazio abrem caminhos valiosos para a abstração. Ver um mesmo espaço ocupado de maneira tão diferente no intervalo de um dia para o outro sublinha limites: política aqui, performance ali. Há interesse quando o assunto é política, quanto à performance e à música, tem-se dois ou três gatos pingados a fim viver a experiência. Como se não tivesse muito de performance na fala sensualmente materializada na voz do intelectual, como se não fosse política a ação de um grupo que revira nossos ouvidos habituados a processar no automático a música mais quadrada que nos rodeia. Considerar a dimensão dos interesses sugere movimentos mais arrojados ao redor dos limites. Às vezes só é preciso querer para se saltar uma cerca. Mas também dá pra passar por baixo. Ou pelo meio dos arames.

de monstros assustadores. Pedro Filho desembainha uma guitarra flying V e arma seu set de pedais no chão enquanto João Meirelles arma acordes no piano do cabaré. Da flying V, Pedro monta seu solo cheio de distorções imerso na névoa da improvisação. A todo tempo a configuração do cenário é transformada, as cadeiras desenham formas diferentes, as caixas de som estão em outros pontos, os objetos acima do palco se espalham. É um moto-descontínuo que absorve e repele por muitas vias e sensações. Há muita coisa em jogo. Pensemos, só por um momento, geometricamente. Largo é uma ação que acontece nas diagonais que cruzam os espaços das diversas linguagens artísticas para alcançar os lados dos sentidos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O fagotista está montando seu instrumento. Nos próximos minutos veremos Uru pintar sua tela. Os efeitos são engenhosamente aplicados às escalas coloridas para cima e para baixo; regiões muito agudas e muito graves são atravessadas graças ao pedal. Agora os espectadores são guiados para bem perto do solista que chega ao limite de desmontar progressivamente o instrumento aproveitando, assim, todas as sonoridades possíveis. No fim, resta apenas o sopro passando pela palheta. Os artistas começam a guardar as muitas cadeiras vazias e logo todos os que 

Desde o primeiro contato com as Escolas de Arte ocidentais nos deparamos com o conceito de presença. Presença cênica, presença de palco, presença. Presença enquanto capacidade de atração. Presença enquanto aprimoramento técnico. Presença enquanto ato de estar concentrado e atento ao presente. Presença enquanto talento. Nas mais variadas interpretações e escolas, lá está a presença enquanto conceito chave de atuação.

Confesso que desde o primeiro instante fui fisgada por este aspecto do fazer. Para mim, estar presente, em qualquer contexto, inclusive na obra de arte, sempre foi entendido como plenitude. Esta noção sempre foi empírica, e obviamente, vem carregada da minha bagagem pessoal de uma praticante de uma religião afro brasileira que entende a presença em um espaço sagrado como plenitude. Aí foi onde encontrei o primeiro nó. Como estar pleno em um universo epistemológico tão cindido? Corpo-voz, corpo-mente, público-atriz, discurso-forma, produção-criação, criação- apresentação.

Os primeiros escritos sobre as artes cênicas, datados de 3000 A.C, que são encontrados no tratado hindu Natya Shastra[1][2], definem o ator, ofício de grande prestígio, como “os habilidosos, instruídos e trabalhadores que não se intimidam pelo palco” cuja função esbarrava na nutrição espiritual do coletivo. Como o teatro deveria ser acessível a todas as castas, o caminho encontrado por eles foi uma codificação semiológica absurda. Nada que não fosse esperado de uma sociedade extremamente estratificada cuja mobilidade entre as castas era impossível. Manter a saúde daquela sociedade esbarrava na manutenção de estratos.

Por que essa digressão me interessa? Por quatro aspectos: 1 - O sagrado; 2 - o contexto sócio-político; 3 - a técnica e 4 - a noção de presença atrelada a coletividade. Quatro aspectos que por mim são vistos sem hierarquia entre si, e cujas linhas que os separam são meramente ilusórias.

Por que é tão difícil questionar as estruturas que estão postas? E por que parece menos relevante pensar na presença não como uma definição universal e sim como um elemento contextualizado? Neste caso o que me levou a responder tais questões são os pensamentos desenvolvidos e compartilhados na minha escolha em ser militante/ativista do feminismo negro, e que os trago para esta discussão. A dificuldade consiste no fato de não dispormos de linguagens, idiomas, epistemes que não sejam coloniais. Que não tenham sido construídas em cima de pressupostos que tendem a universalizar as questões, objetificar o outro e a colocar o sagrado no transcendente.

 

Aspecto 2 – O contexto sócio-político.

Também é uma máxima comumente repetida nas escolas de formação, que o artista deve ser alguém antenado. Alguém que está ciente do que acontece ao seu redor, quiçá no mundo. Entretanto o vício de relacionar-se com o mundo a partir da atribuição de significado nos condiciona de maneira geral a capturar as mudanças nas relações, nos paradigmas políticos, na geopolítica, na configuração social de maneira geral como temas a serem explorados em nossas obras, e quase nunca como fatores que podem nos confrontar com as bases do nosso fazer, em sua ética.

Não quero dizer com isso, que a atribuição de significados deveria vir abaixo em uma hierarquia do pensamento. O mundo não é dual e o pensamento muito menos. Não necessariamente é isto OU aquilo.

O que venho repetindo, inclusive aqui na Barril no texto intitulado “Entre o político e o estético”, desde a criação do meu solo Obsessiva Dantesca, é que ousemos em nossas estruturas, sem ficarmos presos as classificações que já estão postas. Principalmente quando se trata de obras de arte politicamente engajadas, como é o caso da obra em questão. Afinal, outra característica do pensamento colonial é a de ter as coisas em seu “devido” lugar. Mesmo sabendo que nunca nos deram, a nós artistas negras o direito ao erro quando se trata de experimentalismos. A relação com o que fazemos também é sob a perspectiva colonial. A arte de modo geral sempre foi um espaço do colonizador.

Mas o que a presença tem a ver com isso? Tudo.

Vivemos um período de repetição. De discursos, de verdades, de comportamentos. Como uma espécie de anestesia generalizada. O que pode ser capaz de afetar? De gerar alegria a todas as envolvidas no ato? Alegria aqui entendida no sentido espinosano de aumento de potência.

Em Obsessiva arrisquei a capacidade de geração de vínculos a partir da exposição. Se observarmos o modo de nos relacionarmos com o advento das redes sociais, a exposição de nossas vidas gera a sensação de intimidade com a outra. Mas isso não necessariamente implica na construção de vínculos, uma vez que estamos protegidos do afeto. Dispomos de ferramentas que usamos para delimitar a capacidade de afeto da outra sobre nós. Em Obsessiva é apenas exposição e proximidade. Em momentos de descuidos, que vão se tornando cada vez mais frequentes no desenvolvimento do solo, nos afetamos.

Aspecto 4 – A noção de presença atrelada a coletividade.

Não foi a minha presença que atraiu a atenção e emocionou o público,

O contexto da presença

Por Laís Machado

em sua maioria não artistas, mas a nossa presença naquele espaço, naquele contexto, materializou a nossa relação e nos afetou. Linhas de afeto em uma ou mais vias. Ao mesmo tempo em que as pessoas eram afetadas por mim, se perceberem enquanto agentes do afeto sobre mim e sobre as outras pessoas presentes no ato, as mobilizava.

Embora as relações entre atuação e público sempre tenham me interessado, foi a partir dessa experiência como atriz/performer e da leitura de um texto de Renato Ferracini intitulado “A presença não é um atributo do ator”, que eu coloquei a presença nessa equação.

Voltando ao contexto sócio-político. Em tempos de ascendência dos posicionamentos fascistas em nossa sociedade, temos nos questionado em relação à política, educação, etc, sobre estas figuras que são detentoras do conhecimento e da verdade, e nos questionado também sobre manutenção dessa comunicação de apenas uma via. Essa discussão deve também abranger os posicionamentos éticos do nosso fazer enquanto artistas. Acredito que está na hora de mudar a perspectiva sobre as bases que sustentam o nosso fazer e a relação com os fruidores em potencial daquilo que fazemos. A partir dessa mudança de perspectiva, passamos a enxergar o público como também agentes da cena. Dessa maneira podemos pensar a presença também como “ uma presença-acontecimento-espetáculo que mobiliza os agentes da cena (público e atores) para outros planos poéticos e de experiência” (FERRACINI, e PUCETTI).

 

Aspecto 3 – A técnica.

Então, sendo a presença cênica uma “construção e composição na relação com o outro” (FERRACINI), de que técnica de atuação estamos falando? Eu arriscaria dizer qualquer coisa que nos conecte com nós mesmas e com a outra e que aos poucos seja possível eliminar qualquer linha divisória entre qualquer coisa e outra.

Durante os dois anos de manutenção do Teatro Base, grupo do qual faço parte e que encerra suas atividades este ano, comecei a desenvolver uma pesquisa que venho chamando de Àjóràn ou Ojúran, palavras que em yorubá significam contágio e transe, respectivamente. A pesquisa, em termos práticos se configura como a criação de uma série de exercícios que venho criando e modificando que acredito serem capazes de me colocar em um estado mais sensível e ativo para a relação. Obsessiva Dantesca foi a primeira tentativa de aliar este procedimento à militância feminista. Aliando techné e Ethos, em busca de uma nova construção poética.

O que quero dizer com isso é que a partir do momento que revisitamos a noção de presença torna-se necessário revisitar o labor do atuante. Senão, nada disso faz sentido algum.

 

Aspecto 1 – O sagrado.

Gumbrecht define “experiência estética” como o que “nos dá sempre certas sensações de intensidade que não encontramos nos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos”(2010 apud MELO, 2014). E retirando da equação a visão hegemônica acerca do sagrado, que o coloca em diálogo imediato com o transcendente, defendo a teoria de que a relação com o sagrado se configura como uma experiência estética. Nada mais perigoso para qualquer discurso hegemônico do que um indivíduo que se coloca à espreita de novas experiências.

O ritual no sentido arcaico da palavra, é o espaço de encontro com o sagrado, portanto, se seguirmos a lógica que proponho, naturalmente um espaço de comunhão, coletividade e experiência. É neste espaço de intensidades que venho trabalhando minha poética. Não significa ser uma regra, mas acredito que esta noção de ritual pode nos trazer excelentes pistas sobre esta presença que se compõe em contato.

Retornando à noção de um ofício sagrado, já tão explorado por grandes estudiosos do fazer, entendendo o atuante como um agenciador de novas experiências estéticas para os que compõem aquele espaço de troca de intensidades e afetos, não apenas como um acumulador de ferramentas potencialmente inúteis se não atendem a nenhum propósito.

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[1] A tradução do sânscrito poderia ser “escritura sagrada” (Shastra) sobre “as artes cênicas” (Natya).

[2] Segundo a tradução de Sérgio Melo do livro Sanskrit Drama in Performance de Raghavan e se encontra no seus artigo para a Sala preta intitulado Por uma ontologia da presença cênica.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRACINI, RENATO. A presença não é um atributo do ator. Linguagem, sociedade, políticas /Organizado por Eni P. Orlandi, Campinas: RG, p.227, 2014.

FERRACINI, RENATO e PUCETTI, RICARDO. Presença em Acontecimentos. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v.1, n.2, p. 360-369, 2011.

GUMBRECHT, HANS U. Produção de presença- o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

MELO, SÉRGIO N. Por uma ontologia da presença cênica. Sala preta, São Paulo, V. 14, n.2, 2014 .

Falar sobre a solenidade de encerramento da seleção pública das setoriais artísticas 2016, que culminaria na assinatura do TAC (Termo de Acordo e Compromisso), é retornar aos pensamentos clássicos sobre democracia. Quando digo clássico, é voltar ao bicho papão de todo aquele que se consome com os ditames filosóficos contemporâneos, assolados, porquanto, pelo cool pós-estruturalismo. “[...] Gozar da mais perfeita igualdade política.”[1], aí está o primevo conceito sobre o que seria democracia, posto na roda pelo cristianizado Aristóteles. Sem dúvida, um espaço que já possui em seu fundamento a obrigação de estimular a participação popular, não tem outra saída a não ser optar pelo experimentalismo. Tomar a democracia como espaço político é entender o desmesurado laboratório, e entender, hoje, a crise da representatividade – no fundo, elemento chave para qualquer crise no sistema. É ser ao mesmo tempo a fome e a comida.   

 

Espero que todo artista que tenha recebido o e-mail com o informe do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA) sobre a solenidade, convocando para a assinatura do TAC de maneira categórica, tenha, no mínimo, desconfiado da proposição. A solenidade configurou-se como uma boa estratégia militar: investir contra os “selecionados” por todos os flancos. Decidi chegar uma hora e meia atrasado e, quando vi aquela multidão de artistas cercada pela imprensa, pelos políticos presentes e pelo edifício, clareou-se a ideia de uma armadilha constitucional. Uma coisa angustiante.  

 

Todos nós sabemos o que seria uma armadilha constitucional, o processo do golpe parlamentar está aí, e se configura enquanto exemplo mais radical. Mas no que se refere à assinatura do TAC, podemos analisar o conceito a partir da “unilateridade”, caminho manjado no que tange as políticas culturais da Bahia. Asfixiar os artistas selecionados no Palácio do Rio Branco, um dos avatares que designa o processo colonial no Brasil, não é somente uma questão de ironia histórica, mas de fundamentar a política unilateral, afiançar que ela ainda persiste em seu processo devastador, e nessas questões, sabemos, o espaço é fundamental – front, política e arte se alimentam dessa condição: é um ataque estético.

 

Os agentes da cultura penam para chamar mais ao corpo, mais ao debate, os representantes políticos, a exemplo do governador, Rui Costa, e a Secretaria de Cultura, representada atualmente por Jorge Portugal. No que se refere ao secretário, boa parte dos encontros em que se reclamou o seu comparecimento, organizados, pois, pelos artistas, não tiveram a sua presença. No lugar de Portugal, por vezes, um educado comunicado que estaria com o governador. Um espaço onde um grupo de artistas se organizam para reclamar a um órgão público de cultura, se torna, talvez, insalubre para qualquer representante do órgão em questão. Se há a proposição de encontro por uma comunidade, geralmente, há a proposição de diálogo no corpo-a-corpo, como deve ser no que se refere à política, ou melhor; para continuar a investigação sobre o objeto e laboratório de pesquisa: a democracia.

 

A solenidade para a assinatura do TAC se tornou a sacada genial para emudecer um grupo em tempos de impeachment. Decidindo o espaço, as pessoas envolvidas e as condições, principalmente no que se refere à imprensa, se pega o artista selecionado pelo seu furor quanto a “aprovação” de seu projeto, se cria um sítio cada vez mais opressor, deixando muda qualquer possibilidade de manifestação – nessas horas dá vontade de ser um louco setentista. O acelero para abrir contas bancárias, em plena greve dos bancários, se torna um dado a mais que favorece o cerco. Pois se tudo é efêmero, a exultação tende a ser mais. No “convite” está lá, sua presença é imprescindível; assim mesmo, como única coisa grifada. Perguntando para um número de pessoas, era certo que somente tínhamos aquele dia para a assinatura – teve gente que veio de avião, pois estava em outro estado. Resumindo a estratégia:

 

Aproveitamos a assinatura do TAC e criamos uma solenidade no Rio Branco. Coloca música afro-baiana também, com uma pitada de bossa nova classe média. Bota o governador pra falar, o secretário de cultura pra falar, outras representações políticas nos rondando o tempo inteiro. Chamamos a imprensa – isso é imprescindível. Fazemos whisk and bowl! Pronto. Disparamos benfeitorias em menos de 10min e saímos pela tangente.

 

Tem que ser rápido. Mas não é só isso. É mister que se tenha, em prudência, “um representante da classe”. Neste caso, que assinará por todos, simbolicamente, o termo de acordo e compromisso. Está feito o evento-político-unilateral. Pensava que não dava mais para se angustiar até o momento de ver Fernando Júlia, ali, ao lado das “autoridades”, executando o ato simbólico. Ser político é coisa de gênio mesmo.

 

Todas as crises que abalaram o sistema democrático tiveram como epicentro a representatividade, seja para o bem, seja para o mal. Representatividade é a questão quando se fala em democracia e que abala a sua insistência em se classificar como sistema, tendo em vista o seu experimentalismo. Contudo, claro, o laboratório democracia possui seus pequenos métodos, seus pequenos sistemas. O problema brasileiro, com seu imenso arsenal bibliográfico de ciência política, é a dificuldade de investigar a nível prático. É necessário corpo quando se fala de democracia. Também é certo que sobra quem tenta fazer isso enquanto ser político e falta quem tenta fazer isso na função político. Se fala a todo momento que a crise no Brasil é econômica, se econômica fosse o imbróglio brasileiro seria, de maneira elementar, as questões de classe, inclusive em nível marxista. A coisa é ampla: classe, raça e gênero.

Espero que todo artista que tenha recebido o e-mail com o informe do Fundo de Cultura da Bahia (FCBA) sobre a solenidade, convocando para a assinatura do TAC de maneira categórica, tenha, no mínimo, desconfiado da proposição.

Inequívoco, quem propôs a solenidade do dia 03 de novembro sabe que a crise da democracia representativa perpassa essas três instâncias (é melhor deixar claro que todo mundo sabe disso). Para a assinatura simbólica, se tornaria imperativo que também fosse alguém do teatro, pois seus agentes, geralmente, são os que mais “abusam” a Secult-BA e seus órgãos vinculados. 

Artisticamente ou através dos grupos de pressão[2], nós, pretos e mulheres, estamos nos organizando de maneira progressiva nos últimos anos e isso deve assustar. Logo, o medo deve afastar, por fim, os diálogos e debates em direção a uma participação popular mais efetiva (repetindo, DIÁLOGO, neste caso, com os agentes culturais e população, não conversa e política de balcão). Todo problema que venha a existir entre um órgão cultural público e um artista, no que se refere as questões de políticas culturais, deve virar pauta pública.

 

Uma figura como Fernanda Júlia, que, acima de tudo, assumi pautas ligadas às religiões de matriz africana em suas obras teatrais, estava calada e ao lado do homem que se tornou indiferente ao assassinato de 12 jovens negros no Cabula, com inclusão, que apoiou o ato dos policiais em um encontro histórico com os PMs que o aplaudiram fervorosamente. Se do lado de quem apoiou o cerco, a favor da via unilateral, há quem tenha a certeza de estar dialogando com o espaço democrático, para o outro o ato da assinatura simbólica confirmou toda a agressividade. Ver quem dirigiu a montagem Erê[3] (2015), do Bando de Teatro Olodum, endossando aquele cerco, foi como reviver a sensação de ser o 13º morto.

 

Todo artista negro corre sérios riscos de ser cooptado. Se lida com os temas relacionados às questões de raça e classe, a atenção é maior. Resistir a isso gera um grande esforço e atenção, posto que, apesar das inseguranças, ainda devemos manter nossas produções, lutando contra a inércia e a depressão. O risco é eminente em Salvador, muito pelo que acontece na esfera intermediária entre indivíduo e Estado, seja pelos grupos de pressão ou pelas produções artísticas e culturais, e, ainda, do que se vende sobre o que é ser negro.     

 

A cooptação é sistêmica entre políticos, estratégia para atrair lideranças que, geralmente, ameaçam uma hegemonia. Assim se estabelecem as coligações e alianças – nada que uma deleção premiada não faça cair por terra. No momento que esta prática se estende para a sociedade civil, ou seja, atrair “possíveis cabeças” que se situam em outro front, a cooptação é mais rudimentar, embora psicanalítica. É objetivo atrair a “representação” tendo a intenção de produzir um tipo de ícone, logo, um exemplo reeducado. Por fim, se forma os reprodutores dos anseios das elites econômicas. Ou seja, reeducação socialdemocrata ala brasileira, sistema pedagógico requentado do americano. Resistir a isso, uma vez que se está enredado pelo ilusionismo, só se for um marighellista ferrenho e mesmo asssim não estaria a salvo da dor física, pois é consciência de corpo. Se o poder corrompe eu não sei, mas a cooptação é certeza, posto que há a quimera do poder.

 

Isso acontece, principalmente, através do entendimento, por parte dos governantes, dos anseios pela representação. Se há a reeducação de uma “representatividade” das camadas civis, possivelmente haverá um abalo sísmico severo. Sobre isto temos um exemplo paulista; quando a grande mídia elegeu os representantes das ocupações nas escolas públicas, o movimento foi minado de dentro. É necessário entender que representação é coisa de receptor, ou seja, é identificação que pode gerar potências interessantes. Querer oferecer, para não dizer forçar uma representatividade, é outra coisa, de certo nociva.

 

A solenidade e a assinatura simbólica como encerramento da seleção pública das setoriais artísticas 2016, não é a tentativa de cooptar, por meio da armadilha constitucional, uma pessoa. É importante que não haja pessoalização nesta análise. A agressão constitucional, que nos oferece uma anestesia, tenta cooptar uma classe, uma raça e um gênero dentro de uma comunidade artística usando de um estratagema inteligente. É necessário uma efetividade quanto ao diálogo e, por parte dos órgãos públicos e políticos, cessar com o receio do corpo-a-corpo.

 

Ser pego numa armadilha é uma condição, só basta saber se aceitamos o convite.

 

[1] Aristóteles em A Política.

[2] Organizações na esfera intermediária entre indivíduo e Estado.

[3] Montagem inspirada na também obra do Bando de Teatro Olodum, Erê Por Toda a Vida/Xirê, de 1996. A obra de 2015 denuncia o genocídio da juventude negra, trazendo a tona as chacinas ocorridas em território brasileiro como Candelária (RJ), Vigário Geral (RJ), Favela Naval (SP) e Cabula (SSA). A montagem teve concepção geral de Lázaro Ramos e direção de Fernanda Júlia.

RETRATO DO ARTISTA QUANDO CHOVE

A partir de um dia do "Perfor7 [como?]", sétima edição do fórum de performance
da BrP. São Paulo, Praça das Artes, 15 de novembro de 2016.

Por Daniel Guerra

Roteiro: Daniel Guerra

Desenho: Pedro Pirôpo

Na última edição do ano, Laís Machado se encontra com o Núcleo Viansatã de Teatro Ritual, em sua sede, a Bouche de L'Enfer.

Laís Machado encontra o Núcleo Viansatã de Teatro Ritual

Ele entra no quarto, pega o computador e volta para sala. Nesse momento (escuto), ele mostra Têtê Espíndola e Björk para Marcela e Geor. Ontem, depois de ter falado saudade e cansaço, encontro Léo fazendo um fauno. Fazer um fauno leva dias, ele me diz. A etimologia da palavra fauno vem de destino ou profeta. Coisa curiosa – uma das histórias é: Fauno foi um marinheiro que se apaixonou pela poeta Safo. Esse texto é por causa da paixão por uma drag. Fauno sou eu (utopicamente marinheiro e escafandrista). Sou eu Safo (utopicamente poeta). Safo é Léo e será Fauno. Observo – esse texto é circular e aquático?

O Concurso Revelação Marujo, mediado pela DesiRée Beck, acontece há sete semanas no Bar Âncora do Marujo.

Há 15 anos o Âncora existe. Bar-espaço-de-resistência, o Âncora aglutina corpos desviantes impossíveis de serem rastreados. Na espessura de nossas narrativas de bichas ancoramos nosso cú-coração – afogamos mágoas, recombinamos jeitos, fazemos sarros, reencontramos o boy magia do porto, cantamos Betânia, Gal, Dalva, Madonna (porra, são muitas e maravilhosas). Cantar torna-se um gesto em paradoxo: cantamos para desistir da brutalidade de um mundo-moral que quer nos matar e cantamos para continuar. Quantos amores foram desfeitos? Quantos surgiram? E aquele dia que você levou x melhor amigx? Foi lá que Maricelma me prometeu nove noites. Os 15 anos do Âncora são 15 anos de puberdade, tesão, verões, camaradagem, amizade. Amizade menos no sentido cristão, sem a profundidade-posse, amizade quase como um happening, amizade que se faz no instante, no trânsito, amizadetransa. No Âncora aprendi a ter menos alma e mais corpo, a ter mais tesão, a ser menos essencial e mais singular. Estou na superfície do fundo do posso. 

Estou com Foucault: vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferentes de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas[1]. 

Se o Âncora aglutina muitas narrativas, aglutina-se ali muitos espaços – espaços nem sempre compatíveis. O viver junto se dá em tensão. Parece balela essa coisa que nos ensinam sobre igualdade. Sistemas fascistas acontecem a partir do discurso do comum. A igreja, em nome do comum, derramou e derrama muito sangue. O Estado matou e mata em nome do comum. No Âncora eu posso estar incomum e monstruoso.    

               

O Âncora, ao mesmo tempo, possui um funcionamento de abertura e de fechamento que o isola em relação ao espaço circundante. É gueto e lugar de passagem. Aliás, o Âncora é âncora e barco. Posamos ali para descolonizar nossos corpos tão cruelmente docilizados. 

 

É na travessia desse espaço heterotópico, que o corpo utópico da drag acontece. O corpo da drag é um corpo utópico. Por que? Porque ele acontece na promessa de um não futuro. O futuro não precisará chegar. O corpo drag instala o agora do corpo em outro espaço – por causa do corpo drag entramos num lugar que não tem lugar diretamente no mundo. Por causa do corpo drag faço do meu corpo um raio que vai se comunicar com a constelação de outros corpos estelares.  Por causa do corpo-drag sou tomado pelos deuses ou seremos tomados pela pessoa que acabamos de seduzir. A drag arranca meu corpo do meu espaço próprio e me projeta para um espaço âncora / para um espaço barco.

Por Saulo Moreira

Ter a alma e o corpo nus

Selfie de Saulo Moreira diante do Concurso Revelação Marujo

Fotografia e maquiagem: Nina Codorna / Drag: Leona do Pau

Se considerarmos a máscara sagrada e profana do corpo drag, veremos que tudo que concerne ao corpo – desenho, cor, purpurina, excreção, vestimenta, esperma – tudo isso faz desabrochar nosso corpo selado.

Semana passado eu escutei todos os dias, mais de uma vez ao dia Se eu quiser falar com Deus – esse poema tão lindo de Gil na voz de Elis. Estar casado com uma drag é escutar incansavelmente a mesma música. Léo treinava as nuances da música a medida que fazia reflorescer Leona_do Pau___.  Léo é Leona_do Pau___ e o inverso também. Eu digo menos como um marcador de ontologia (para que precisamos de essência?) e mais como uma produção de desejos. Estar na produção cotidiana de uma drag gera em mim um corpo que quer ser utópico, um corpo que quer sentir menos saudade e menos cansaço.

No último domingo foi tão bonito. Petra Perón pediu para cada uma das participantes criar uma plataforma política. A fantasia era – cada drag iria montar um discurso/dublagem para se defender como a primeira presidenta drag do Brasil. Leona_do Pau___ ficou com a plataforma de intolerância religiosa. Leona_do Pau___ cantou aquilo que a semana inteira eu já sabia: se eu quiser falar com Deus tenho que me ver tristonho, tenho que me achar medonho e apesar de um mal tamanho alegrar meu coração. Rainha Loulou ficou emocionada. No final, picas e bucetas foram distribuídos. E eu escutei aquela música como se nunca antes tivesse escutado.

Eu gostaria muito de falar sobre os concursos – na ideia de concurso se acopla um mecanismo de cooptação de desejo e emolduramento de uma perspectiva eurocentrada, ou seja, perspectiva quase sempre branca, magra e clean. A diversidade de reality shows estão infinitos na nossa programação. Não sei se é bom ou ruim. Não sei se é um sintoma da nossa época – acho que não. O fato é que na paisagem competitiva e careta dos concursos podem aparecer desvios. Há sempre uma coisa que escapa, penso. Os concursos de drags escapam e geram outras velocidades na máquina do capital? Quando as drags do Concurso Revelação Marujo, na Carlos Gomes, são agenciadas pela fantasia em fazer existir uma presidenta drag não seria esse um gesto micropolítico de desvio e abertura? Desvio de que? Do nosso cotidiano? Isso é muito? Muito o que? É muito um grupo de pessoas na madrugada do domingo (o início do concurso acontece todo domingo a partir das 0 horas) aplaudir, cantar, rir e torcer por uma presidenta drag? Um país se faz possível naquele instante? Sim? Isso nos torna mais resilientes contra os golpes que, nós brasileiros, temos sofrido? Algum dia teremos coragem de jogar uma bomba no planalto central?

Aprendo ao Léo com Leona_do Pau___: gerar fissuras no cotidiano ter a alma e o corpo nus estar fauno.

Leona_do Pau___ tem cantado nessa semana   hjvashdfyufdyefyfdqwdcqytwfdy  (não vou dar spoiler! O concurso acabará no dia 4 de dezembro, depois da publicação desse texto). As finalistas do concurso são, além de Leona_do Pau___, Sasha Hells e Sophia Velvet.

 

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[1] Dois textos de Foucault estão aqui o tempo todo, ora parafraseado, ora plagiado: O corpo utópico e Heterotopias.

R E V E R B E R A

Crítica Largo

C R Í T I C A

Por Igor Albuquerque

Por Ruy Filho, Revista ANTRO POSITIVO (SP)

Quando uma nova revista surge, já se coloca tão deslocada do presente que chega a ser curiosa a intenção. Isso porque as publicações estão em extinção, mortas dia-a-dia pelos valores de inutilidade exigidos cada vez mais pelo capitalismo moderno, também pelo pouco apreço ao conhecimento por parte das pessoas, que nem ouso mais chamar por leitores. Poucas pessoas, na verdade, para ser um tanto otimista, apesar de tudo. Assim, surgiu mais uma. A Revista Barril ignorou isso e simplesmente deu importância à vontade de alguns de querer pensar, falar, duvidar, provocar e outros verbos esquecidos por aí. A revista existe, está disponível a qualquer um, e isso não é banal. Já se tornou acontecimento e, por conseguinte, necessidade ao universo do teatro. Ser de Salvador não significa estar apenas por ali. Cada frase e ideia, cada olhar e observação se desloca pelas vias do mar morto que se tornou a internet para se consolidar como ilhas de respiros. Bem-vinda, então. E sempre teremos de agradecer a esse elenco inquieto, incapaz de permanecer mudo, pelas provocadas consequências inevitáveis.

 

Segundo ponto. Para que mesmo escrever críticas, em uma época em que qualquer conclusão parece ser apenas outra opinião mais e desnecessária? A Barril insiste. Em seus editoriais consta muito do desejo por olhar o outro a partir de como compreendê-lo diferente.  As críticas são oferecidas sem rodeio, sem disfarce, propondo um diálogo franco, aberto, por vezes dolorido, atribuindo à escrita sistemas particulares de cada resenhista em como lidar com a análise e a conclusão. Espera, o quanto uma crítica precisa ser analítica e conclusiva? Esse é um dos dilemas mais fundamentais hoje, ainda que muitos críticos, que por aí se confirmem eficientes no mercado das opiniões, insistam na análise e na conclusão. Enquanto o dilema, a única questão de fato relevante, é radicalmente negado por uma louca e desesperada tentativa do crítico ser maior do que a crítica. ‘Pessoalização’ inevitável, é verdade. Mas que, ao exagero, revela mais sobre o narcisismo do que sobre o interesse por pensar.

 

Antes de continuar, portanto, ao exercício dessa crítica da crítica, é preciso esclarecer não ser esse o caso percebido na resenha de Alex Simões. Ainda que a perspectiva seja analítica e conclusiva, a partir de sua própria experiência como espectador, o tom narcísico não está em foco. Um alívio e tanto.

 

Há outras questões a serem debatidas, contudo. A começar pela condição inevitável de conhecer os artistas envolvidos. Nem sempre isso é um problema, mas, quando se escolhe iniciar a crítica explicando os interesses que levaram à criação arrisca-se contaminar a argumentação pelo que antecede a obra, e não somente pela obra como independente acontecimento. Nada fácil, o que acabo de querer. A escrita de uma crítica exige os paradoxais envolvimento e distanciamento em iguais proporções. E a resenha, já de cara, evidencia para qual lado tende sua relação. E se fosse um crítico dinamarquês que nada conhecesse da ambiência teatral soteropolitana e dos percursos dos artistas, teria ele igual compreensão do espetáculo? Obviamente, não. Essa é a dificuldade maior ao crítico de agora, quase sempre desdobrado da própria prática do teatro (o que não sei se é o caso, por isso falo genericamente): construir distanciamentos capazes de provocar em si mesmo a condição de ser diferente ao outro.

Em muitos parágrafos, Alex dedica a descrever detalhes, cenas, imagens, aspectos, objetos. É objetivo e eficiente nessas descrições. No entanto, de que valem a quem não assistiu ao espetáculo, senão a um acúmulo de informações que não suportam uma concreta relação sensorial e emocional? A descrição em excesso acaba distraindo e não

Se o espetáculo foi capaz de construir uma única experiência, então não faz sentido ser fatiado em explicações pontuais e específicas. Ao contrário. Salvo, quando o resultado é propositadamente elaborado para ser a soma de contrapontos estéticos, discursivos, conceituais e simbólicos; quando cada elemento precisa ser compreendido a partir do enfrentamento aos demais.

O bons jovens perdidos em outros tempos

A partir da crítica Major Oliveira: nossos bons velhinhos e o tempo que vivemos,
de Alex Simões. Revista BARRIL, Ed.08/2016

aproximando o leitor, pois o coloca em um espaço de abstração contraposto ao próprio interesse de que busca uma descrição. Dito de outro modo, descreve-se para aproximar. Curiosamente, esse deveria ser o movimento comum ao escrever: descrever, apresentar, traduzir. É o que nos explicam e ensinam os críticos de ontem. Mas não. A descrição limita o diálogo aos que dividiram a experiência, e a crítica acaba servindo a um pequeno grupo de iniciados.

A crítica de Alex não é tão simplória ou didática, como posso ter sugerido sem querer. É mais complexa e eficiente, acompanhando sempre as descrições com conclusões próprias.  Esses são os bons momentos. Ainda que também abstratas para quem não esteve na plateia, muitas das associações são perturbadoras e demonstram a coerência e a importância do espetáculo. Poderiam ser também menos conclusivas, afirmativas, mais duvidosas, de modo a provocar na leitura da crítica a verticalização sobre os porquês de conhecermos o trabalho. Como está, de modo fiel ao seu pensamento, lista uma série de contextos e discursos que podem ser ou não de interesse. Não pega o leitor desavisado. E aí está o problema também dessa minha provocação. Sendo uma revista sobre teatro, como todas, quem a lê, se não os já envolvidos em teatro? Como surpreender o outro gerando-lhe interesse pelo teatro que lhe apresenta uma resenha?  Bom, quem disser que escrever não é arriscado ao inútil, que atire a primeira tecla.

 

Por fim, uma última questão. A insistência em subdividir a cena em categorias: o ator, o texto, a trilha sonora... Essa antiga substantivação dos elementos que compõem um espetáculo, como se pudesse ser simplificado em itens e suas maiores ou menores competências. Se o espetáculo foi capaz de construir uma única experiência, então não faz sentido ser fatiado em explicações pontuais e específicas. Ao contrário. Salvo, quando o resultado é propositadamente elaborado para ser a soma de contrapontos estéticos, discursivos, conceituais e simbólicos; quando cada elemento precisa ser compreendido a partir do enfrentamento aos demais. Ao que a crítica em questão apresenta, o espetáculo parece mesmo se realizar como um único movimento ao espectador, o que exige igual resposta em sua observação.

 

A crítica de Alex se valoriza por uma excelente capacidade em construir significados e desdobramentos, expandindo a experiência ao convívio crítico reflexivo inclusive sobre o próprio crítico. Isso é ótimo. Basta superar a técnica de uma didática antiga vencida pela velocidade das redes sociais, em que todos possuem opiniões próprias sobre tudo e até ao que desconhecem profundamente, e das categorizações desnecessárias e improdutivas.  Os bons velhinhos, quando se trata da escrita crítica, morreram faz tempo. É triste, para alguns, mas é fato. E preocupa que muitos dos jovens já se encontram frente aos porões da inutilidade. Alex ainda parece estar mais perto da porta do que do abismo, e ter chance de fugir e viver.

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

R I Z O M A

E N C O N T R O

E N S A I O

T R E T A

S E L F I E

No encontro entre janeiro e fevereiro de 2016, no Largo da Mariquita no Bairro do Rio Vermelho (SSA), os artistas Daniel Guerra, Diego Pinheiro, Laís Machado, Igor de Albuquerque e Victor Bastos acreditavam que a cena soteropolitana das artes cênicas precisava de um novo fôlego. A essa ideia foram se juntar posteriormente Alex Simões e Bárbara Pessoa, isso sem contar com o número significativo de colaboradores e parcerias ao longo do percurso. Para nós foi um ótimo e vigoroso ano de estreia.

 

Porém, não foi fácil (e nem será) exercitar a crítica artística. Seja pelo volumoso trabalho empreendido pelos artistas da BARRIL ou pela falta de costume da cidade com um posicionamento analítico que decide ir além das espumas circunstanciais. Para nós, é um privilégio dispor de uma ferramenta onde é possível pensar e lançar pensamentos para mais adiante, dançando mais os argumentos e conceitos; e, apesar da falta de costume de Salvador em relação a crítica em artes cênicas, era real a necessidade, percebida através de retornos, críticas e outras colaborações.

 

Pararemos a partir desse mês para umas férias rápidas e voltamos próximo ano, com os corpos já descansados, para mais uma imersão no universo da crítica. Esperamos que 2017 seja tão instigante quanto o ano que agora vai chegando ao final.

Portanto, fiquem bem atentos ao ano que vem! É em 2017 que daremos a largada ao nosso tão esperado projeto Dinamização Crítica, no qual artistas e interessados na produção crítica poderão se aproximar à vontade. Mas, por agora, a 9ª e última edição desse ano nos oferece algumas prendas.

 

Na coluna CRÍTICA temos dois textos: Ressignificar, de Bárbara Pessoa, sobre o espetáculo O Jogo dos Signos, com direção de João Figuer e Fernando Ishiruji, resultado do curso de teatro para iniciantes do Grupo de Teatro Para Quem, que teve temporada no Teatro Gamboa Nova. Crítica Largo é o texto de Igor Albuquerque sobre a instalação Largo – Remontagem, uma plataforma de encontro em música expandida, que teve apresentação no Cabaré dos Novos, no Teatro Vila Velha. Lamentavelmente, neste mês não teremos os instigantes REBATES, um dos mais poderosos instrumentos criados pela BARRIL no sentido de gerar novas problematizações entre crítico e artista.

 

Um dos colaboradores deste mês, na coluna REVERBERA, é o multiartista Leonardo França, que produz um víde-arte na vertigem do concretismo, a partir do espetáculo Casa de Ferro, solo de Maurício Assunção.

 

Na coluna CRÍTICA DA CRÍTICA temos a colaboração do já parceiro Ruy Filho, crítico, editor e fundador da Revista ANTRO POSITIVO (SP). Ruy lança algumas visões sobre a crítica contemporânea tomando como ponto de partida a crítica de Alex Simões Major Oliveira: Nossos Bons Velhinhos e o Tempo Que Vivemos, publicada na 8ª edição da Revista BARRIL.

 

Daniel Guerra misturou Cultura Pop e James Joyce em parceria com o desenhista Pedro Pirôpo, no RIZOMA Retrato do Artista Quando Chove, a partir de um dia do "Perfor7 [como?]", sétima edição do fórum de performance da BrP em São Paulo, Praça das Artes, no dia 15 de novembro de 2016.

 

Numa conversa descontraída e regada a licor de tamarindo na Bouche de L'Enfer, Laís Machado encontra o Núcleo Viansatã de Teatro Ritual, que disponibiliza alguns pequenos segredos, além de nos apresentar seu futuro próximo. Veja na coluna ENCONTRO.

 

Da Índia antiga ao seu mais novo trabalho Obsessiva Dantesca, Laís Machado disserta sobre uma de suas grandes motivações na criação e pesquisa em artes cênicas, a presença, em seu texto O Contexto da Presença, na coluna ENSAIO. Não é somente uma questão de ler e reler, mas de relação.

 

Na Coluna TRETA, Diego Pinheiro tenta dissecar a Solenidade de Encerramento das Setoriais Artísticas 2016, além de apresentar riscos eminentes no que se refere aos artistas e, principalmente, ao artista negro, no texto Manobra de Flanco.

 

 

Por fim, para a Coluna SELFIE, chamamos Saulo Moreira, que decidiu falar de suas impressões e fascinações com a performance de Leona_do Pau___, durante o Concurso Revelação Marujo, mediado pela DesiRée Beck, no Bar Âncora do Marujo.  

 

Eis as prendas.

Nos vemos (e nos lemos) em  2017.

 

Boa leitura!

Editorial ed 9
Crítica em Artes Cênicas

C R Í T I C A

RESSIGNIFICAR

Crítica de O Jogo dos Signos

Na noite de 18 de novembro, sexta feira, resolvi fazer uma escolha arriscada: ir ao teatro assistir uma comédia. Há algum tempo, não via um espetáculo dito desta espécie, apesar de ter verdadeiro apreço pelas personagens cômicas. Dentre elas, o tipo que mais me agrada é aquele que se mostra sempre mais livre que qualquer espectador por possuir a licença para o ridículo, tornando-se assim símbolo de negligência das pressões sociais. Essas figuras, comumente, ignoram os próprios “defeitos” ou melhor ignoram aquilo que exprimem e que se torna o motivo do riso e dessa forma o gozo do observador tem sempre algo de cruel, pois está relacionado com o fracasso do alguém-personagem. Esse jogo é algo que me instiga a atenção em peças cômicas ou na palhaçaria, por exemplo. É bem verdade que uma comédia não clichê pode muito bem angustiar sua plateia, tornando-a momentaneamente constrangida em relação a si mesma e a seus próprios valores. Seria muito bem vinda essa sorte de experiência, mas, como não é o que normalmente ocorre com as comédias soteropolitanas, não criei grandes expectativas nesse sentido.

Ao chegar ao Gamboa Nova, naquela noite de sexta, temi não conseguir ingresso para assistir ao espetáculo O Jogo dos Signos, já que a entrada do pequeno e aconchegante estabelecimento estava lotada, como não costuma acontecer em produções de menor porte. Logo descobri que a peça, com direção de João Figuer e Fernando Ishiruji, era fruto de um curso de teatro para iniciantes e que o numeroso público era composto principalmente por amigos e familiares dos atores – que estes voltem ao teatro!

O que mais me interessou na trama descrita, no release do espetáculo, foi o fato de assumirem a utilização de uma análise clichê, a partir da astrologia, para descobrir qual personagem cometeu o crime central do enredo, motor da ação dramática. Acredito mesmo que estamos precisando começar a rir do modo banal e frágil como temos nos servido socialmente dos signos do zodíaco para explicar a nós mesmos ou aos outros. Toda vez que alguém me informa se é regido por áries ou por libra, tenho vontade de questionar: e você tem sede de que? O mesmo incômodo se dá quando uma pessoa, também sem nenhum aprofundamento na prática do candomblé ou da umbanda, declara-se filho desse ou daquele orixá, presumindo que todos

 Não é o caso de deixar de mostrar o que existe, mas ao contrário de, revelando,  evidenciar a mazela que lhe é própria.

sabem o que isso quer dizer (e essa expectativa também fala sobre banalização) ou como se isso por si o definisse e tivéssemos espalhados por aí vários irmãos gêmeos. O Jogo dos Signos, a partir da personagem de uma cartomante, de fato, abusa dos estereótipos astrológicos para provocar o riso em seu público. O resultado talvez já fosse de se imaginar: cada vez que a personagem sacava uma carta e descrevia determinado signo, alguém da plateia regozijava como se escutasse do/a amante alguma revelação inconfessável sobre si mesmo/a.

No mesmo release, lê-se também que o espetáculo é uma comédia que flerta com o suspense. Minha experiência inverteria a ordem das palavras e falaria de um suspense com um tanto de comédia, pois foi marcada por uma tensão constante permeada por algum humor. O delegado, ao longo do espetáculo, ia interrogando os demais personagens, um a um, a fim de descobrir o que poderiam ter feito no passado que os tornassem suspeitos do crime investigado. O retorno ao pretérito era feito a partir de um blackout e, por serem muitos personagens, esse mecanismo de apagar e acender a luz, em algum momento, tornou-se cansativo. Apesar disso, o modo como os fatos passados individuais eram relacionados entre si ao longo da trama fez com que eu permanecesse atenta ao desenrolar das ações pelo tempo em que a peça durou.

 

A personagem mais curiosa é uma crítica de arte – a história se passa numa galeria onde há uma exposição. A performance do ator, confiante em cada gesto e precisa em toda intenção, mais do que o caráter do personagem em si, contribui bastante nesse sentido: é um corpo que convida o olhar da plateia até nos momentos em que não é o foco. É possível observá-lo sempre presente e preparado para a próxima peripécia. Essa figura, cada vez que um artista ou uma obra é citado/a, vai à frente do palco informar ao público de quem / o que se trata, como se, ao crítico, bastasse apenas possuir dados sobre a história da arte para criticá-la. A personagem não contextualiza, não argumenta, não pondera sobre nenhuma informação que traz, como se não coubesse ao crítico o exercício do pensamento. Dessa maneira, apresentou-se uma boa análise sobre a forma como comumente pratica-se a crítica pelo menos em Salvador: “a obra de fulano fala sobre isso e é ótima / péssima, fim. O mecanismo de “pausar” o espetáculo sempre

que a crítica ia dar suas explicações se tornou enfadonho pelo mesmo motivo que o blackout como mecanismo de retorno ao passado: repetiu-se excessivamente.

Uma escolha que parece ser compartilhada em produções com entusiastas do teatro (falo de atores) é o “como começar a se relacionar com esta arte”. A impressão que dá é que a Rede Globo e seu “naturalismo artificial” define a performance dos intérpretes – e daí se pode inferir que determina o próprio processo de criação e os ensaios. Notei isso também em O Jogo dos Signos: o rosto, como parte de um corpo rígido, torna-se o principal, senão único, instrumento de expressão. No espetáculo, os padrões comportamentais são exibidos, em harmonia com o discurso dominante, e em nenhuma esfera contrariados. Há o homem moreno, alto, bonito e sensual e várias mulheres querendo seduzi-lo; há a mulher que gosta de sexo, mas precisa provar que mudou para ser aceita; existe o homem irresistível que se vale de seu charme para roubar uma mulher apaixonada e, por isso, estúpida; há várias mulheres enamoradas desse homem mau caráter e há, no todo, a exposição de tais opressões pacificadas, como se refutar esta realidade não fosse necessário.

A comédia pode ser um excelente instrumento para avacalhação de algo inaceitável. Os personagens cômicos, desinteressados e ridículos, tem o aval para falar do que querem num tom de quase indiferença. Não é deste tipo de personalidade que se vale O Jogo dos Signos. Lá, há a exacerbação dos traços de indivíduos comuns sem problematizá-los e, desse modo, ao contrário da negligência das demandas sociais, apresenta-se uma conformação com o discurso dominante e opressor, além de sua reprodução para fazer rir. Não é o caso de deixar de mostrar o que existe, mas ao contrário de, revelando,  evidenciar a mazela que lhe é própria.

Por Diego Pinheiro

Manobra de Flanco

V.1 n.9 2016

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