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CRÍTICA Oito e oienta - crítica a partir de SerEstando Mulheres
REVERBERA Caio Araujo
Crítica - Certas coisinhas pequenas demais - Sobre a Galeria ENTRE, de Alexandre Guimarães
REBATE ENTRE
CRÍTICA DA CRÍTICA - Tradicionalmente experimental ou palimpsesto
RIZOMA - Glossário Para ignorantes e amantes de café
ENCONTRO com Chico Assis
ENSAIO Não é arte, ainda bem
SELFIE - "Maradona" ou Deus não toma Coca-cola
TRETA - Uma questão de valores
Rebate -Ana Cristina Colla

Questão de Valores: Frases de Mainha, por Igor de Albuquerque

João 'Seu' Pimenta reverbera Pássaros de Copacabana

Rebate à Crítica "Certas coisinhas pequenas demais, de Daniel Guerra

Certas coisinhas pequenas demais

Sobre a Galeria ENTRE, de Alexandre Guimarães, por Daniel Guerra

Foto de Andrea Magnoni

EDITORIAL

abril

Na Edição #11, o youtuber humorista João "Seu" Pimenta reverbera o espetáculo do Teatro Nu, "Os Pássaros de Copacabana", com direção de Gil Vicente Tavares e atuação de Marcelo Prado.

Diego Pinheiro Encontra Chico Assis

Nesta edição, Diego Pinheiro encontra Chico Assis, Gestor Cultural e administrador do Teatro Gregório de Mattos e Espaço Cultural da Barroquinha.

Como qualquer coisa viva, a Barril cresce a cada nova experiência, a cada edição. Graças ao projeto “Dinamização Crítica”, que se iniciou em março desse ano, temos recebido textos de todo o Brasil. Isso, além de nos fazer ver a qualidade da nova produção crítica na era pós jornalismo impresso, constrói pontes entre o campo artístico de Salvador e outras paragens. Dessa forma, as limitações do regionalismo, tão determinantes nas artes cênicas, vão, pouco a pouco, se desfazendo.

O Intercâmbio Barril, feito no mês de abril junto à revista catarinense Caixa de Ponto, foi um sucesso. Além de fortalecer o laço entre as revistas, promoveu um diálogo íntimo entre artistas, jornalistas, produtores e demais interessados no desenvolvimento do olhar para a cena e a partir dela.

Essa edição está especial. Só uma passada de olho já lhes revelará um panorama do que é e do que pode ser uma discussão contemporânea sobre a cena, atravessando tanto o que chamamos “arte contemporânea” até aquilo que se diz “arte de massa”, e nesse movimento, traçando pontes possíveis.

Alex Simões nos traz o trabalho literário-performático do poeta mineiro Ricardo Aleixo, através da releitura de um artigo acadêmico que se debruçou sobre o tema, da pesquisadora Prisca Augustoni.

No RIZOMA temos um glossário feito por Laís Machado, que mapeia as referências históricas e políticas envolvidas na performance BRAU, de Ana Dumas.

O ENSAIO vem diretamente da terra da garoa, com o outro colaborador do mês. O paulistano Pedro Luis Braga discorre sobre as dimensões éticas, estéticas e noéticas presentes nas peças de um dos diretores mais solicitados do mercado cultural da atualidade, o libanês Rabih Mroué.

A SELFIE desta edição propõe um passeio-enigma. Diego Pinheiro, visitando a Casa Monxtra durante a performance “Bastet”, transformou-se em criptologista de signos performativos, provocando que nós exerçamos essa mesma função.

Agora, respira fundo e se joga.

Na coluna CRÍTICA temos dois textos, com seus respectivos REBATES: Daniel Guerra visita a Galeria ENTRE, exposição vivencial de wearable art, e a pensa como cena, produção de presença e situações. Bárbara Pessoa problematiza os limites do feminino representado no espetáculo SerEstando Mulheres, de Ana Cristina Colla, atriz-pesquisadora do grupo Lume.

O REVERBERA fica a cargo do colaborador do mês, o humorista youtuber João “Seu” Pimenta, que foi ver “Os Pássaros de Copacabana” e gravou em vídeo um comentário sagaz sobre a realização.

Continuando no território do humor na web, Igor de Albuquerque tece sua TRETA em confronto com a nova situação do canal “Frases de Mainha”, recém financiado pelo Governo do Estado.

No ENCONTRO, Diego Pinheiro conversa com Chico Assis, gestor de espaços culturais da cidade. O diálogo nos esclarece a função cada vez mais importante do gestor cultural, e provoca questionamentos sobre quem é e o que quer o público — se é que ele é, ou quer alguma coisa.

Foto de Leto Carvalho

Por Daniel Guerra

Certas coisinhas pequenas demais

Sobre a Galeria ENTRE, de Alexandre Guimarães.

É uma casa antiga, branca com detalhes azuis, numa rua de passagem do bairro mais boêmio da cidade. Para entrar em cada cômodo passamos por cortinas de veludo negro, que os dividem e funcionam como umbrais. Estendendo os braços e alcançando o primeiro pano, passamos para o lado de dentro, deixando para trás esse mundo, que por sua consistência de merda pisada e repisada, chamamos, em uníssono, de realidade.

Damos de cara com uma escuridão absoluta. No acostumar-se das pupilas ao novo ambiente, vão se revelando focos fracos de luz distribuídos ao longo das paredes. Um deles aponta para uma mesa de jardim. Em cada foco percebe-se um quadro em sua moldura, cada um contendo a imagem de uma mulher fortemente maquiada, trajando um imenso vestido rosa-choque. Vemos os quadros se movimentarem.

Passamos por mais um umbral. Ali dentro é frio, e mais escuro ainda. Numa das paredes, uma projeção, fraca e sem foco, contém algo como um coração batendo, mas certamente não o é.

Então chegamos num banheiro de portas escancaradas, luz fria e azulejos brancos. Os olhos sofrem de novo, até se adaptarem. Pisamos num chão de grama molhada. No chuveiro há uma pequena árvore tomando banho. O arbusto, seco, recebe as gotas da ducha, e entre seus ramos, caem fios brancos de eletricidade.

Atravessando o corredor, sentimos de imediato um cheiro forte de mato. Olhando para o lado encontramos uma roupa pendurada, feita de um tecido fino, que, costurado em forma de bolsas, acolhe diferentes espécies de ervas aromáticas. No chão e nas paredes há muita palha; a luz é morna e amarelada.

Mais adiante pisamos num chão de folhas secas. À frente, abre-se a amplidão de uma sala de estar. As paredes são pintadas em faixas coloridas horizontais, e ao centro encontra-se pendurado, entre dois losangos flutuantes e brancos, uma capa de lona preta, contendo, em cada bolso, uma planta de flores pequenas. No chão, alguns conta-gotas sugerem que nos abaixemos e os enchamos da água colocada num prato branco, para regá-las.

A singeleza dos objetos em exposição, a calmaria inanimada dos salões, o silêncio dos artefatos em seu simples estar; essas coisas não deveriam nos enganar.

-tido, retiram a ideia do vestir implícita num vestido; retiram e retiram, até que essa coisa vire um coração que late, um órgão qualquer, ou apenas uma luzinha de vida, um pequeno nada. Aqui se separa a noção de presença da ideia de corpo como substância, identidade.

Ao entrar nos cômodos da casa-labirinto, encontramos-nos com presenças já liberadas. Talvez possamos pensar em puras relações. Meu contato com um vestido pendurado gera uma terceira entidade. O ato daquele rapaz, ao sentar-se na cadeira de jardim, observando os objetos repousados na mesa e escutando o áudio gravado para a situação, tudo isso, junto ao meu próprio olhar mirando o conjunto, enche a sala de significâncias.

A singeleza dos objetos em exposição, a calmaria inanimada dos salões, o silêncio dos artefatos em seu simples estar; essas coisas não deveriam nos enganar. Talvez nossas miradas estejam calejadas de solicitar informação — e o pior: de sempre tê-las. A arrogância do sujeito é pensar que somos nós quem observamos os objetos. Mais um pouco e perceberíamos que são eles que nos olham. Eles têm vida própria — e tente descansar, com essa ideia na cabeça.

Ao negar o uso das roupas em corpos perfeitos para o mercado, ao distribuir suas criações entre artistas distintos de modo a fazê-las variar em textos e contextos, ao expor uma materialidade livre de discursos pré-fabricados, ENTRE nos apresenta uma política interior à sua própria efetividade. Opõe, à solicitação incessante de significados, a existência crua dos significantes materiais. Assenta um território de experimentação social. E se alguém questiona no que é que isso muda o mundo, ENTRE sussurra: “mas o que é isso, senão um pequeno mundo mudado?”.

Na Galeria ENTRE cada cômodo sugere uma presença. Cada presença pontua uma instância dramatúrgica. Mas dessa presença não poderíamos supor um corpo, e dessa dramaturgia, nada que se parecesse com uma história. Se tivéssemos que fazer uso da noção de corpo, bastaria tomar o nosso como exemplo, afinal é ele quem, atravessando toda a extensão da casa e descobrindo espaços, objetos e signos inusitados, vai traçando algo que se aproximaria a uma história. Somos um corpo atento: ao estalar dos passos, aos sussurros, às passagens fortuitas, aos toques ocasionais.

De fato, entre um quarto e um banheiro, uma cozinha e uma sala de estar, uma pessoa qualquer vai tendo de se adaptar, transformar suas maneiras corriqueiras de estar, mesmo que não se queira, mesmo que ausente em espírito, mesmo que em pequenas e imperceptíveis ações. É assim que o desenho de moda de Alexandre Guimarães passa do mero vestir modelos a um vestir ou desnudar de situações.

ENTRE sugere dois movimentos processuais. O primeiro está na origem. Pensando nos artistas que criarão junto a si, Alexandre produz vestimentas como se se tratasse de uma homenagem. Depois, os artistas convocados tomarão essas roupas e criarão outras composições, mas agora usando os espaços da casa, assimilando a eles a roupa-dispositivo original.

Cada roupa dessas é um dispositivo porque é uma ideia. O processo de feitura foi atribuindo à matéria camadas e camadas de vivência. Nesse sentido, cada uma delas é, também, uma escultura temporal. Foi assim que Paula Lice transformou-se, aos olhos de Alexandre, em puro rosa-choque, e, misturando-se ao psicodelismo de “Alice no País das Maravilhas” e ao universo em transe das drags, concebeu essa sala misteriosa, meio “Transformação da Monga”, meio “Sala dos Espelhos”. Orlando Pinho, que a tomar pelo primeiro nome já é um verbo, deveio flor, mas principalmente o ato de regar. Ebomi Regina de Iemanjá recebeu a roupa e a fez parte da cozinha, adicionando aos cheiros de erva o aroma do leite de coco e do dendê. Gilberto Monte transmuta-se em árvore perenemente regada. João Oliveira e Pablo Cordier reduzem a roupa como se reduz um alimento na culinária; retiram a ideia de ves

Estar presente. Talvez essa seja minha grande obrigação nesse rebate. Não apenas pelo respeito às atentas palavras ditas na crítica em questão, como ao privilégio de ter somado, mais uma vez, nesse novo momento do ENTRE, mentes brilhantes que conseguiram devanear e concretizar processos criativos de diferentes linguagens e pontos de vista. Acredito que essa foi minha maior função como coordenador desse volume II. Conceber uma curadoria plural e potente que dialogou com as diferentes informações não verbais presentes nas indumentárias criadas para eles, assim como conceber uma equipe técnica tão criativa quanto os artistas convidados, que materializou todas as propostas sugeridas.

 

É importante reforçar que a partir do momento em que o objeto para vestir foi entregue ao artista convocado, eu, enquanto criador da indumentária, deixei de ter qualquer controle sobre a peça, inclusive se a mesma estaria fisicamente presente, mesmo que fragmentada, no ambiente proposto. Por isso, concordo, simplesmente concordo com a crítica. O que não é um processo simples. Requer escuta e abertura sobre outra visão a    

Por Alexandre Guimarães

Rebate à crítica "Certas coisinhas pequenas demais" de Daniel Guerra

Sobre o último parágrafo, mais uma vez, concordo, simplesmente concordo. E volto a afirmar que todas as indumentárias construídas, tanto para o volume I quanto para o volume II do projeto, poderiam ser apresentadas dentro de um formato de desfile,

“em corpos perfeitos para o mercado”, mas, como o próprio crítico afirmou, perderíamos as variações de textos e contextos, assim como reunir e misturar pessoas de áreas tão diferentes pensando em processos criativos comuns.

 

Ou talvez esse seja meu desejo oculto de incluir a Moda, distante da Indústria, como elemento significante na construção de novos espaços em arte contemporânea, que já não mais sintam-se pertencentes a esta ou àquela linguagem. Esse lugar chama-se ENTRE. Um lugar de fronteira, um lugar permeável.

respeito do seu trabalho. Para minha sorte, o work in process de ENTRE me ajuda a exercitar isso.

 

Independente de ser bom ou ruim, foi angustiante e surpreendente a espera pelas concepções dos espaços, recheados de ressignificações que surgem no contato de Paula Lice, João Oliveira, Pablo Cordier, Gilberto Monte, Ebomi Regina de Yemanjá e Orlando Pinho com suas designadas peças em wearable art, somados aos ambientes propostos. ENTRE é um processo que requer diálogo e escuta, assim como a crítica da Revista Barril, que é mais uma voz que chega para o debate. Aceito e concordo.


Agrada-me o fato das palavras de Daniel Guerra focarem na experiência – sempre mutável – que a Galeria tenta provocar. A percepção do crítico sobre o universo cheio de possibilidades contido no “vazio” e a necessidade de entrega a todos os sentidos para se instigar possíveis “informações” contidas nas indumentárias e objetos 

presentes nas instalações também são pontos com os quais sinto pensar da mesma maneira.

Por Bárbara Pessoa

Oito e Oitenta

Crítica a partir de SerEstando Mulheres, de Ana Cristina Colla

O lugar escolhido para a apresentação do solo SerEstando Mulheres, de Ana Cristina Colla, atriz e pesquisadora do LUME, foi a pequena sala de um casarão no Rio Vermelho, ocupado por alguns refletores e poucos objetos de cena separados em um canto do espaço cênico. A estreiteza do lugar se intensificou com a chegada do numeroso público, apesar da chuvosa noite em véspera de feriado. O trajeto, descrito na fala inicial da atriz, soa tão simples como ela própria: o encontro com outras mulheres desde sua infância e a reverberação disso em si mesma.

Não é necessário muito tempo para que estejamos todos atentos ao que Ana nos convoca. As diferentes mulheres apresentadas pela atriz preenchem o familiar cômodo com imagens que nos impelem à produção de sentidos. Essa dança entre o que é realizado pela atriz em cena e o que, no público, ressoa como elaboração de um mundo é provocada tanto pelo texto como pelo corpo da performer. Um texto preciso que não se esquiva de improvisações e um corpo desembaraçado que não deixa escapar as bagagens que lhe tecem. Um texto-corpo afinado com o tempo necessário para transição de uma mulher à outra.

 

Medos, tristeza, loucura... são os estados frequentemente acessados para adentrar o universo feminino e isso, em um primeiro momento, pode causar incômodo àqueles que aspiram ao retrato de uma mulher dona de si. Ao mesmo tempo, se queremos recusar tais sentimentos por sermos  submetidas a eles de modo tão corriqueiro em diferentes lugares e de diferentes maneiras, como não associá-los à consolidação de um destemor apto a nos relocar na paisagem em que ainda nos desenham?

A primeira mulher trazida por Ana é D. Maria. Não saberia dizer ao certo se a atriz a descre-

Um texto preciso que não se esquiva de improvisações e um corpo desembaraçado que não deixa escapar as bagagens que lhe tecem. Um texto-corpo afinado com o tempo necessário para transição de uma mulher à outra.

Foto de divulgação

-veu verbalmente como uma mulher negra, gorda. Independente da resposta, sempre que lembro dessa personagem é essa a imagem que se estabelece em minha lembrança, apesar de ser Ana uma mulher branca e magra. Uma matéria pesada pela voz, pelo olhar, pelas nuances de uma presença e toda uma paisagem densa que a envolve como primeira demonstração do que Ana faria em todo o espetáculo: SerEstar outras apesar de si mesma.

 

A cena em que a atriz parece se referir a ela mesma mais diretamente é justamente na qual surge uma personagem que destoa da simplicidade oferecida pela mulher Ana no início do solo. Batom, salto alto, dourado, loiro... são os elementos que vão compondo o tipo ao longo da situação. E essa figura, à medida que menciona Ana em suas falas, acaba por funcionar como uma autoanálise da atriz sobre possíveis desejos e desconstruções. Esse é o momento em que o público mais se refastela, mostrando que o padrão, trazido nas ambições fúteis da personagem, ainda pode soar engraçado, mesmo sendo tão opressor.

 

Quero me servir da palavra acúmulo para me referir ao SerEstando Mulheres. E, quando penso em acúmulos, vem-me a imagem de muitas coisas sobrepondo muitas outras coisas e nesse sobrepor excessivo um estouro, uma arrebentação de algo que invariavelmente emergirá. E essa emersão é desenvolvida no espetáculo nem sempre pelo viés da agressividade, mas sobretudo na sagacidade elaborada num corpo-história que de algum modo sabe onde se encontra e zomba disso, como bem ilustra Caetano Veloso em Dom de Iludir quando nos recomenda a não falar da malícia de toda mulher.

A própria pesquisa da atriz para este solo – um reencontro com as personagens femininas a quem deu vida nos 20 anos de Lume Teatro –

ocasiona a sensação de acumulação a qual me refiro. O solo vai descortinando horizontes heterogêneos: o rural, o quarto, o urbano, a rua, a janela, o chão, lembrando-nos sempre da contradição que somos nós mesmos na complexidade de nossas experiências, o que nos propicia um confronto de dentro para fora, de fora para dentro, bem como de dentro consigo.

 

SerEstando Mulheres se desvela para seu público num jogo entre simplicidade e vigor. Simplicidade  nos figurinos, nos elementos cênicos, no tom da atriz, na história das personagens, nas músicas e nas danças. Vigor no mesmo tom, nas mesmas histórias, nas mesmas músicas e danças. A justaposição das duas coisas se impõe como a grande potência do espetáculo. Ou melhor: a justaposição de tantas coisas - o texto-corpo, o padecimento-destemor, o rural-urbano, o quarto-rua, o magro-maciço – produz a dinâmica do espetáculo, bem como nos reporta ao movimento de nos tornar. Todo essa defrontação acentuada pela proximidade de tantos corpos em um ambiente tão reduzido.

 

E pensando que seresta, adaptação brasileira para serenata, é o ato de cantar à noite pelas ruas para declarar amores, até que o termo SerEstando não soa tão mau assim, ainda mais se o tomarmos como a materialização, em palavra, da justaposição e do confronto que o espetáculo tanto evidencia.

Salve Bárbara e a Revista Barril por terem serestado comigo em SerEstando Mulheres. Agradeço ao olhar sensível para esse espetáculo que me é tão caro. Aproveito também para deixar registrado um agradecimento especial a afetuosa Casa Guió que abriu as portas para me receber e a Felícia de Castro e a Naia Pratta que não pouparam esforços para que o espetáculo pudesse acontecer da melhor forma possível. E claro, um agradecimento a todas as pessoas que escolheram partilhar comigo essa noite chuvosa, super aquecendo a pequena sala que nos recebeu. Foi encantador.

Começo pelo fim. A escolha por nomear esse trabalho de SerEstando - apesar de remeter propositalmente à seresta como ressalta Bárbara e que me agrada quando penso no encontro que ela proporciona - surge do jogo com os verbos Ser e Estar. É possível ser e estar ao mesmo tempo? Ou para estar é possível deixar de ser? E sendo conseguirei estar? Nossa língua permite essa separação, como se fosse possível ser e não estar ao mesmo tempo. Quando penso em qual seria o verbo do ator, são esses os que despontam. Quantas vezes em cena me senti estando, corpo físico e não sendo, corpo presente. Macaqueando ações sem conseguir estabelecer o elo que me liga ao outro e que dá sentido ao encontro tão valioso no fazer teatral. Daí a busca constante por SerEstar, em cena e fora dela, ancorando essa busca num corpo multifacetado. E quando digo CORPO, digo multiplicidades, atravessamentos, contaminações, linhas de forças múltiplas, ressonâncias, devires, afetações, emergências, experiência, encontro, memória, criação, carne,

língua. Tudo junto e misturado. De boca cheia.

“O que aconteceria

         se descêssemos no corpo,

                                colocando uma escada

                                        até suas profundezas?”

Tatsumi Hijikata

Rebate à crítica "Oito e oitenta" de Bárbara Pessoa

Quando completei 20 anos de pesquisa no Lume Teatro e o desejo brotou forte, de mapear um caminho percorrido, percebi que as corporeidades que mantiveram sua intensidade, mesmo com o passar dos anos, foram as femininas. Talvez contaminada pelo desenvolvimento de um olhar focado no feminino, após ter participado em 2008 e 2010, do Encontro e Festival de Teatro Feito por Mulheres Vértice Brasil, onde a questão do fazer teatral feito por mulheres é amplamente discutida. Talvez por ter me tornado mãe e assim me ressignificado enquanto filha e esse cruzamento com a atriz ter potencializado os diferentes territórios por onde nós, mulheres, circulamos e as diferentes sensibilidades que cada um deles nos exige. Talvez por me ver espelhada em cada uma delas, mulheres observadas e recriadas por mim, em viagens pelos interiores do Brasil ou construídas no fervor da sala de trabalho, entre quatro paredes. Talvez pelo colorido, tão singular de cada uma; da penumbra da velha acamada, da cor rosa da menina velha com rugas, do ocre crú e intenso das ruas, do pink fútil da loira Nataly.

Quantas mulheres somos! E que prazer me vestir de todas elas, sendo outras sem deixar 

de ser eu mesma.

Nos primeiros passos rumo à criação do espetáculo, em parceria com o querido Fernando Villar, caminhamos em direção ao formato de uma demonstração de trabalho, já que um dos pontos que me instigava era desvelar os infinitos fios que compõem um processo de criação. O enfoque estava voltado para as metodologias de trabalho e a construção técnica das figuras. Após algumas aberturas de processo, fomos radicalizando e extraindo as informações objetivas sobre as técnicas envolvidas - mesmo elas estando subjacentes ao fazer – e o que foi para o primeiro plano foi justamente o que mais pulsava em mim como desejo: a diluição de fronteiras. Entre a técnica e a vida, entre a atriz e a mulher, entre o pessoal e o privado,

entre o real e o ficcional, entre a atriz e o espectador. E sem essas fronteiras, o encontro, a relação (seja ela a relação entre as matrizes corpóreas, seja ela com o público), ganhou o centro da cena.

A busca pela simplicidade foi um dos principais norteadores. “Fernando, quero que caiba tudo em uma mala!”, assim comecei. “E se possível de rodinhas, para que eu possa carregar para todos os cantos”. E assim, eu e minhas mulheres, ancoradas na potência do corpo, viajamos juntas para onde estejam dispostos a nos receber. Já serestamos em presídios femininos, jardins, praças, salas, teatros e casas. É só chamar que eu chego lá.

O pequeno, o simples, não como falta, mas como escolha. Assim creio, e a cada dia mais.

Salve Dona Maria, de Jaraguá - Tocantins. Salve Dona Maroquinha, De Novo Airão, Rio Negro- Amazonas. Salve Dona Laranjeira, Rosana, Madame Pacaembú e tantas outras das ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. Salve Vó Maria e Mãe Ana que me gestaram e deram vida. A benção.

Por Ana Cristina Colla

GLOSSÁRIO PARA IGNORANTES[1] E AMANTES DE CAFÉ

Rizoma a partir da obra BRAU de Ana Dumas

Por Laís Machado

AMAZONA

Alguns milhares de anos a.c eram guerreiras montadas a cavalo, saqueadoras, integrantes de um sistema matriarcal, mães. Algumas centenas de anos depois tornou-se o modo “feminino” de montar a cavalo. Algumas dezenas de anos depois, mulher que monta a cavalo. Hoje, Ana Dumas

 

CAVALEIRO

Alguns milhares de anos a.c eram guerreiros montados a cavalo. Algumas centenas de anos depois, nobre guerreiro montado a cavalo. Algumas dezenas de anos depois, nobre homem que monta a cavalo. Hoje, Ana Dumas.

 

DISCO JOQUÉI (cavaleiro) -  DJ

Algumas dezenas de anos atrás, em um bairro preto dos Estados Unidos, o cavaleiro que montado no disco, guerreia e se expressa. Alguns anos depois, o nobre homem branco que mixa o disco montado nele. Hoje, Ana Dumas

 

IDEIAS JÓQUEI - IJ

Alguns anos atrás, um amigo de Ana Dumas. Hoje, Ana Dumas

 

FILOSOFIA

Alguns milhares de anos a.C era o amor pela sabedoria e a consciência da própria ignorância. Algumas centenas de anos depois tornou-se a busca pela verdade e a dissecação da natureza. Algumas dezenas de anos depois, se tornou história da filosofia. Hoje, Ana Dumas

 

AFROFUTURISMO

Algumas dezenas de anos atrás, uma ética. Alguns anos depois, um conceito. Alguns anos depois um movimento. Alguns anos depois experimentação. Hoje, Ana Dumas.

 

ORDEM ALFABÉTICA

Algumas horas atrás, expectativa de quem escreve o presente texto. Hoje uma expectativa frustrada de quem o lê.

CAFÉ

Alguns milhares de anos a.c era uma fruta africana usada para alimentar guerreiros. Algumas centenas de anos depois tornou-se uma iguaria explorada pelos árabes e depois pelos europeus, cujas plantações em terras brasileiras exploraram mão de obra escrava. Mais uma engrenagem do invisibilizado genocídio histórico. Algumas dezenas de anos depois, uma das matérias primas de grande valor de exportação brasileiras. Hoje, um vício.

 

CARRINHO DE CAFÉ

Alguns anos atrás, ferramenta para vender café em terras soteropolitanas. Alguns anos depois, um posicionamento estético no ato de vender café. Alguns anos depois, um modo de canalizar a própria criatividade nas ruas soteropolitanas enquanto se vende café. Alguns anos depois, uma plataforma multimídia. Hoje, tudo isso e Ana Dumas.

 

BRAU

Alguns anos atrás, a palavra Brown. Alguns anos depois, uma gíria para designar “coisa de preto”. Alguns anos depois, uma gíria para designar “coisa baixo astral” geralmente relacionadas a “coisa de preto”. Alguns anos depois, um posicionamento estético pop. Hoje, Ana Dumas.

 

INSPIRADA

Hoje, eu por Ana Dumas

Toda experiência conjuga dimensões éticas, noéticas, estéticas. Éticas, porque todo fenômeno pode ser lido de acordo com os valores e leis daqueles de que dele participam. Noéticas, porque toda experiência pode ser lida através da mente, da lógica, da abstração possibilitada pelo exercício do raciocínio. Estéticas, porque toda experiência pode ser lida através dos sentidos, da sua materialidade, plasticidade, visualidade, sonoridade, das suas texturas, do seu aspecto sensível.

Diferentemente da obra de Arte, cuja dimensão preponderante é estética, o tônus dos fenômenos Aula e Palestra não reside aí, pois o conhecimento construído nesse tipo de experiência não se dá prioritariamente através dos sentidos, mas através da razão. Houve um tempo e houve filósofos que quiseram hierarquizar ética, estética e noética, como se uma dessas dimensões fosse mais fundamental que a outra ou ainda como se houvesse fenômenos puros, exclusivamente estéticos ou noéticos. Resquícios dessa hierarquização e dessa setorização são encontrados até hoje tanto nos estudos acadêmicos, quanto nos artísticos. Eles resistem, por exemplo, naquela tentativa de fazer com que tudo e qualquer coisa seja Arte, como se “ser Arte” fizesse da coisa melhor do que se não fosse.

Pesquisas recentes, tanto das áreas das Artes quanto da Pedagogia nos informam da importância de se ler tanto a dimensão noética das Artes quanto a dimensão estética da Pedagogia, ainda que não sejam preponderantes, justamente porque tais experiências não são puras e a hibridação teórica e prática só vem a contribuir, numa perspectiva interdisciplinar, para avanços em cada uma delas. Assim, é possível pensar no Professor como Performer ou na performatividade do professar, do espaço escolar e do aluno, por exemplo.

Eis que, na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, somos apresentados à obra do libanês Rabih Mroué, numa mostra interna de 3 performances (Tão Pouco Tempo, Revolução em Pixels e Caminhando Nuvens) que se constituem de palestras em que o elemento audiovisual é não apenas uma ferramenta ilustrativa do palestrante, mas o próprio fundamento sobre o qual a experiência de leitura da obra se dá. Talvez a única coisa realmente teatral na obra de Mroué seja o fato de que estamos num edifício teatral, numa clássica caixa preta, e que os perfomers são iluminados por luzes teatrais, ainda que ambos elementos fossem dispensáveis nesses casos.

Sem dúvida, estamos diante de Performances, não no sentido estrito da performance art, tal como caracterizada por Roselee Goldberg [1], mas dentro do amplo espectro que Richard Schechner as compreende em seus Estudos da Performance [2]. Para Schechner, uma performance não necessariamente é artística, pois tal campo compreende desde jogos esportivos, rituais, até aulas. Ainda assim, as experiências artísticas performáticas, dentro da compreensão Schechneriana, constituem um campo privilegiado de estudos da Performance, incluindo o teatro, o circo, a dança, as apresentações musicais e até mesmo as performances art, ou seja, toda experiência em que a presença do artista aqui-e-agora seja parte da obra de Arte. Em Schechner, a Performance não é mais uma linguagem artística, mas um campo de hibridação de linguagens e práticas culturais que possuem traços em comum e podem ser estudados em suas dimensões éticas, estéticas e noéticas, a partir de olhares não só artísticos, como também antropológicos, filosóficos.  

Nessa perspectiva, a radicalidade do gesto de Rabih Mroué está em dissolver a fronteira entre a Arte e a Pedagogia: se todo fenômeno têm uma dimensão estética, por si, e se todo pedagogo pode ser visto como um performer do conhecimento, então, por que não, numa Mostra de

Não é arte, ainda bem.

As antipalestras de Rabih Mroué

Por Pedro Luis Braga

Revolução em Pixels, Rabih Mroué

Teatro que visa à conjugação de linguagens, propor experiências em que determinado tipo de conhecimento seja performado sem que saibamos (nós, os espectadores) qual dimensão, noética ou estética, prepondera ali?

E essa confusão proposital se dá porque o Saber (elemento fundamental e constituinte do fato pedagógico) nas palestras dirigidas por Mroué não é um Saber constituído, acadêmico, que possa ser provado de forma científica. Trata-se, antes, de um Saber que se assume como transitório, como ponto de vista, indagação e provocação e que, ao assumir-se como tal, distorce a própria forma da palestra, já que estamos acostumados, em eventos como esses, a esperar por um conhecimento que nos venha pronto, lapidado, cristalino, provado por a + b. Ao contrário, em Mroué a forma-palestra se dissolve pelo próprio conteúdo destas, que são uma indagação sobre a validade da Verdade, da História e da Memória.

 

Em Tão Pouco Tempo, enquanto conta uma história que se assume como ficção, mas que é baseada em fatos reais, a performer-palestrante Lina Majdalanie joga fotos pessoais numa solução química que deteriora as imagens fotográficas, como se apagasse suas memórias. E a história contada é justamente sobre um homem que teve a sua própria vida ficcionalizada (foi tornado mártir, sem o ser) e cuja memória, portanto, foi alterada. Assim, o gesto de lançar fotos-memórias no líquido que as apaga, na mesma medida em que corrobora com a história real/ficcional que é contada, também duvida da forma-palestra em que todos nós, performer e espectadores, estamos imersos.

           

Na Revolução em Pixels, o próprio Mroué se coloca como palestrante-performer enquanto dá uma aula sobre cinema a partir dos filmes feitos por habitantes de zonas de conflito no Oriente Médio. Ao comparar esses filmes (feitos no calor do momento, pelo celular, cuja imagem é pixelada), com o cinema de arte de Lars von Trier e Vintenberg, e com as gravações do jornalismo oficial que mostram o mesmo conflito, Mroué desenvolve uma linha de pensamento sobre a relação entre a forma pixelada dos vídeos, dita de “má qualidade”, com o seu conteúdo profundamente humano, porque ligado às condições do próprio fazer dos vídeos.

           

Finalmente, em Caminhando Nuvens, Yasser Mroué palestra sobre a sua própria vida, numa espécie de documentário autobiográfico que lembra o cinema de Petra Costa ou o teatro de Marcelo Soler. Ao narrar a própria vida, vida banal e sem grandes acontecimentos, como o próprio palestrante-performer admite, ele se pergunta sobre que histórias valem a pena ser contadas e por que determinadas histórias são escolhidas e outras não. Afinal, o que valida uma História?

           

Ao duvidar da própria forma-palestra com conteúdos que questionam a validade da História, Mroué faz um exercício de dissolução das barreiras entre a Arte e a Pedagogia, pois as dimensões noéticas e estéticas de sua obra concorrem entre si, e saímos sem saber se o mais importante ali era racionalizar sobre o que aprendemos ou apenas deixar-nos fruir aquilo que vimos e ouvimos. De fato, não é Teatro, é Performance. Não performance artística, mas Performance. Não é Arte, é Pedagogia, pedagogia através da Arte sem ser pedagogia da arte, nem arte-educação. E no fim, verdadeiramente transformados e atravessados – feridos – pelo que vimos, ouvimos, sentimos e entendemos, a que(m) importa categorizar?

 

[1]                      GOLDEBERG, Roselee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[2]                      SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York: Routledge, 2013.

Aquecimento

 

O que significa se vender? Diferentemente do movimento envolvido na troca de bens e valores cuja negociação outorga a uma das partes envolvidas a posse sobre um objeto, quando alguém se vende há algo mais que vai junto no ato. Nos usos cotidianos, a forma reflexiva do verbo está quase sempre ligada a transações desonrosas para os envolvidos: o político que se vende, a prostituta – a mulher que se vende, o juiz que se deixa comprar; o jogador de futebol que se vende para o clube rival. Nos exemplos listados percebe-se a arbitrariedade moral que coloca sob o mesmo pórtico autoridades corruptas, o desportista em seu livre arbítrio e a mulher que por decisão própria cobra determinada quantia pelo usufruto temporário de seu corpo – sendo esse último caso o mais cruel e exemplar de todos, pois é a ela que os valorosos sob pressão recorrem no drama da língua “não vou me vender, eu não sou puta”. A dimensão vil do metal escorre pelos desvãos das vidas porque ele toca os limites vacilantes do imponderável. Resta sempre um desconforto quando um valor é acertado. Em dólares americanos de hoje, quanto vale a decisão de um oficial de justiça, por quanto fica o pacote de aulas particulares de Aristóteles para Alexandre, quanto, afinal, custa uma noite com a mulher amada?

Nos nove círculos do inferno das artes, os demônios do dinheiro aparecem segundo seus próprios arcanos. Há aqueles que os veem por todos os lados, quem quase nunca os vê e ainda há outros que os negam. Nas artes de entretenimento de grande alcance o dinheiro é uma questão central e tem caráter especulativo em todas as áreas da produção. Um andar acima, observa-se grande volume de moeda circulando de modo evidente, são as altas artes consagradas pelos representantes da elite cultural e artística, como museus, galerias, marchands, críticos etc. Um outro grupo também lida de modo muito natural com o dinheiro: os artistas circenses e de rua que em suas apresentações requerem incisivamente sua paga.

Mas o grosso da fila dos condenados é formado por artistas que mantém uma relação muito mais nebulosa com o dinheiro. Estamos agora vendo a agonia da classe média cultural que não é reconhecida nem pela elite, nem pelo povo. Em seu afã de dignidade, o artista médio é indiferente à arte de massa, observa com admiração distanciada as altas artes, e aprecia com superioridade a arte de rua. Quanto ao valor da arte produzida por esse grupo, o que dizer? Como se estipula o preço real de uma peça de teatro que foi ensaiada durante 3 meses para ser apresentada em dois finais de semana com ingressos a vinte reais? E o violinista de província que depois de anos de estudo finalmente se sente pronto para interpretar a partita em ré menor de Bach num teatrinho da cidade, quanto se deve pagar? Travado neste nó górdio, o assunto é quase um tabu entre aqueles que reconhecem essa realidade de coisas. Eles partilham uma crença estética que envolve uma fidelidade quase macabra. É por isso que quando um artista da vanguarda sai dos breus dos pequenos teatros para os brios das telas de TV seus pares comentam: “pena que tá fazendo novela”, “se queimou”, “traiu o movimento”, “se vendeu”. Enquanto isso, o artista médio dá continuidade a seus trabalhos de incomensurável valor porque há uma aposta implícita em sua bela errância de esperança e prazer.

           

Segundos Fora

Vejamos o caso das “Frases de Mainha”, canal do YouTube que surge como desdobramento audiovisual do projeto de cards idealizado por Caio Cézar Oliveira e Erik Paz. O roteiros dos vídeos trazem cenas do cotidiano de Mainha – um tipo de mãe baiana de classe média-baixa bastante presente no imaginário soteropolitano – e Júnio, seu filho pós-adolescente meio preguiçoso meio vacilão que enche a paciência curta de Mainha, fazendo-a explodir em surtos de fúria. A personagem de Mainha é representada por Sulivã Bispo, um ator virtuose cujo talento beira a indecência, sendo ele talvez o principal responsável pelos milhões de visualizações contabilizadas pelo canal. Embora a iniciativa visionária dos produtores e a atuação de Thiago Almasy (Júnio) também pesem na balança do sucesso, nesse gênero de humor – centrado no personagem-título – a eficiência do protagonista é o fator determinante.

 

O primeiro vídeo do canal foi ao ar em junho de 2016 e em poucos meses os views já eram contados em sete dígitos. Com os bordões e achaques de Mainha aliados à malandragem de Junio, a equipe conseguiu produzir roteiros criativos e engraçados utilizando poucos recursos. Um dos destaques é “Paredão no carro de Mainha”, quando Júnio enrola a mãe dizendo que iria para o curso, mas ao invés disso vai farrear com os amigos no Santo Antônio além do Carmo. Mainha ouve dizer da trairagem e pega um moto-táxi para alcançar o filho. Chegando lá, passa um sabão memorável em Júnio diante dos amigos dele. Como ela mesma diz: “Filho só puxa a mãe, quando a mãe dá pra o que não presta”.

                   

Por Igor de Albuquerque

Uma questão de valores:

As Frases de Mainha

Estamos agora vendo a agonia da classe média cultural que não é reconhecida nem pela elite, nem pelo povo. Em seu afã de dignidade, o artista médio é indiferente à arte de massa, observa com admiração distanciada as altas artes, e aprecia com superioridade a arte de rua. Quanto ao valor da arte produzida por esse grupo, o que dizer?

Até o final do ano a equipe colocou trinta vídeos no ar, conquistando mais de duzentos mil seguidores no Facebook e outros milhares de inscritos no YouTube. A marca por si só já é respeitável, mas o fato de se tratar de uma iniciativa independente engrandece ainda mais o feito. O meninos jogaram no modo hard.

           

Eis que no primeiro vídeo do ano de 2017 um novo personagem entra em cena, o Governo do Estado. O Governo trouxe câmeras, lentes, trocou as vinhetas, incluiu trilhas e efeitos sonoros, reformou o cenário; em suma, financiou o projeto. Em troca, a página teve que ceder uma pequena parte do negócio: o conteúdo, a estrutura e a linguagem. A partir de então, todos os vídeos da página seriam propaganda. As primeiras produções em parceria com o Estado mostram Mainha apreciando as belezas da “Terra mãe do Brasil” em destinos como Ilhéus, Porto Seguro e Morro de São Paulo. Júnio de repente virou um idiota completo; ele não sabe, por exemplo, o que é Morro de São Paulo e aparece num barco ao lado de Mainha trajando uma camisa social: “A senhora falou que a gente ia para São Paulo, Mainha, eu perguntei a todo mundo e diz que fazia frio”. É, eles tiveram coragem de fazer essa piada; a mesma equipe que meses atrás criou a gag incrível de Mainha jogando uma cueca “breada” de Junio no meio do game como o amigo porque ele tinha colocado as calcinhas dela para lavar junto com as roupas dele. #sddsmainha

           

O governo pagou doze vídeos até agora – o último foi uma propaganda do metrô –, e a equipe não produziu mais nenhum material que relembre a velha safra. #sddsmainha [2]

           

Round 1

           

Mainha se vendeu. E a venda em questão não é aquela típica transação em que o ator empresta seu rosto para a propaganda do governo, porque aqui os compradores se inseriram no interior de uma narrativa independente, usurparam a própria ideia do humor em nome de propósitos outros. Mainha vendeu a alma, a criatividade, traiu suas centenas de milhares de seguidores que confiaram em seu trabalho e esperavam ansiosos por suas piadas sagazes. Por debaixo dos panos, tramaram um “ié, ié, glu, glu, pegadinha do malandro”. Essa é a hipótese número um.

           

Mainha se vendeu. Mas ora, em algum momento o projeto tinha que se tornar economicamente viável. Quem ou o quê pagaria à equipe pelas horas de ensaio, criação de roteiro, pessoal, equipamento? Adicione-se aí o tempo gasto diante do computador para manter de pé uma empresa online de grandes proporções. É uma pena desvirtuar um projeto assim, mas já era hora de bancar o sonho de produzir humor original de qualidade. Hipótese número dois.

           

Ainda bem que Mainha se vendeu. Um ator do calibre de Sulivã Bispo devia se dedicar à grande arte ao invés de se render à sedução do riso fácil, ao humor histriônico. A brincadeira acabou. Agora é aproveitar os rendimentos do contrato firmado com o Governo e seguir caminho, experimentar outras estéticas, crescer como artista. Hipótese número três.

           

Tudo bem, Mainha uma hora tinha que se vender. Mas será que eles não se venderam rápido demais? Será que não poderiam investir mais um pouco e apostar num projeto a longo prazo que fosse viável na economia da Internet? Faltou coragem e paciência. Hipótese número quatro.

           

Knockout

           

Hipótese número cinco. Mainha ressurge em esplendor mostrando que a fase de Governo passou e que ainda tem muito pra dar. Roteiros originais hilariantes, broncas em Júnio, bordões pescados da boca do povo e o velho pinscher se tremendo em primeiro plano. Melhor que o Porta dos Fundos.

Oito e Oitenta

Crítica a partir de SerEstando Mulheres, de Ana Cristina Colla,

por Bárbara Pessoa

Rebate à Crítica Oito e oitenta, de Bárbara Pessoa

Tradicionalmente experimental ou palimpsesto crítico: uma leitura de excertos de um texto de Prisca Augustoni sobre performance de Ricardo Aleixo,

por Alex Simões

Glossário para ignorantes e amantes de café, por Laís Machado

Diego Pinheiro encontra Chico Assis

Não é arte, ainda bem.As antipalestras de Rabih Mroué, por Pedro Luis Braga

Egípcias e Outras Colagens, por Diego Pinheiro

Por Alex Simões

Esta crítica da crítica faz a escolha de um texto acadêmico (na verdade, excertos de uma seção de um capítulo) que se debruça sobre uma performance cujo referencial é o texto escrito. Feita essa ressalva, devo explicar as motivações da escolha por esse texto. Trata-se de uma análise de performance poética, mais especificamente o “Poemanto”, ação performativa concebida e realizada pelo poeta e performer Ricardo Aleixo que vem sendo apresentada em diferentes contextos desde o início da década de 2000. Ao tratar, aqui, numa revista de crítica de artes cênicas, de um texto dessa natureza, quero ao mesmo tempo demarcar e firmar meu interesse, pouco maturado ainda, em refletir criticamente sobre ações performativas cujo texto de partida e/ou de chegada sejam poemas, aquilo que venho aqui e ali chamando de “poeformances”, além de sinalizar que se trata de um campo de análise com pouca produção crítica fora do ambiente acadêmico.

O trabalho de Prisca Augustoni, poeta-e-pesquisadora suíço-italiana radicada no Brasil desde 2001, vem há alguns anos se debruçando sobre a produção de poetas afrobrasileiros, inclusive aqueles cuja produção poética abarca diálogos com as artes visuais, a música e a performance. O cerne desse trabalho pode ser conferido no livro[1] que resultou da sua pesquisa de doutoramento e que também serviu de referência para esta crítica da crítica.

Por tratar-se de texto de cunho acadêmico, o amparo em referências bibliográficas e teóricas antecedem a análise do trabalho, que vem, na construção do texto, como que sustentado por eles. Não por acaso uma das primeiras referências é Paul Zumthor, estudioso suíço medievalista responsável por um arcabouço teórico analítico sobre a poesia oral e a vocalização, muito estudado por Ricardo Aleixo. Vale trazer também aqui, assim como no texto de Prisca Augustoni sobre o “Poemanto“, o conceito de performance defendido pelo medievalista: “ação complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário e circunstâncias [...] se encontram concretamente confrontados”. (ZUMTHOR 1997, apud AUGUSTONI 2013). Embora não se detenha unicamente nessa referência, esse viés é muito importante para entender por que a analista, bem como o analisado, não se/o filia a uma vertente da performance art. Aleixo, inclusive, prefere o termo “performador” em lugar de “performer”.

 Um dos eixos de análise de Augustoni, reforçado pelas referências teórico analíticas apresentadas, parte da ideia de que o poeta-e-performer lança mão das tecnologias do contemporâneo para rasurar o que a tradição dos “griots”, mediado pelas interpretações das diásporas e do próprio artista, lhe legou. Um uso de tecnologias às vezes precárias, ainda que amparado por um refinamento conceitual, que consiste no acerto das escolhas das tecnologias e de processos de precarização. Melhor dizendo, a analista parte da ideia de “griotização contemporânea e urbana” como viés analítico da performance poemanto e do trabalho de corpo-e-voz do poeta-e-performer Ricardo Aleixo. Para tanto, vai recorrer além do medievalista, a dispositivos argumentativos gerados por teóricos em sua maioria europeus, sobre procedimentos de apropriação estético-política das tecnologias do contemporâneo (Haraway) bem como das tecnologias da tradição oral (FRASCA, COLOMBRES, GLISSANT, MARTINS, entre muitos outros).

Naturalmente aqui se faz um resumo precário que não pretende nem de longe substituir a leitura do texto original, mas flagrar alguns dos procedimentos de análise e leitura, pensando, sobretudo, na ausência de textos outros que se debrucem sobre performances outras que tenham a poesia como referência e que não estejam no âmbito estritamente acadêmico (como é o caso). O autor estudado ostenta em sua fortuna crítica outras teses e dissertações e, pelo menos, uma outra tese, exclusivamente voltada para a sua perfomance[2].

Voltando ao texto, segue-se ao momento ritual-acadêmico das citações legitimadas pelo saber ocidental – pertinentes e bem fundamentadas e em consonância com o próprio repertório do artista analisado – a descrição da performance em si, o “Poemanto”, apontando, na descrição, possibilidades de variação observadas nas diversas vezes em que a analista pôde assistir à performance, e abarcando o imprevisível da performance nessa análise.

O olhar de quem assiste é o olhar que pensa a encenação, os usos das tecnologias, as precariedades pensadas, as limitações e riscos da ação, embora deixe pouco espaço para tratar das próprias limitações de análise. O lugar de fala de quem vê não é assumido explicitamente no texto. O que em se tratando de alguém que tem uma relação com o poeta, de intercâmbio intelectual e artístico, de parceria, é potencialmente esclarecedor e enriquecedor da análise, ainda que saibamos as implicações e os riscos que esse tipo de assunção incorreria numa escrita acadêmica de tese de doutorado.

Tradicionalmente experimental ou palimpsesto crítico: uma leitura de excertos de um texto de Prisca Augustoni sobre performance de Ricardo Aleixo.

Uma crítica de um objeto multissemiótico não deveria se bastar no signo verbal: a ilustração com fotos e poemas de Aleixo para demonstrar suas relações com a poesia concreta, por exemplo, são gatilhos para muitas outras leituras. Mais do que ler a relação entre o “poemanto” e os mantos de Arthur Bispo do Rosário, ver fotos do manto nos permite fazer outras ilações e pensar outras referências.

O texto é um vai-e-vem entre as referências teórico-analíticas, intertextuais e intersígnicas, o que torna a leitura positivamente abrangente e eficaz. Uma crítica de um objeto multissemiótico não deveria se bastar no signo verbal: a ilustração com fotos e poemas de Aleixo para demonstrar suas relações com a poesia concreta, por exemplo, são gatilhos para muitas outras leituras. Mais do que ler a relação entre o “poemanto” e os mantos de Arthur Bispo do Rosário, ver fotos do manto nos permite fazer outras ilações e pensar outras referências.

Algumas dissonâncias são produtivas, haja vista que suas produções (ela também é poeta, como referido mais acima) estão em diálogo e arrisco a dizer que o poema que reflete sobre a performance “Poemanto”[3] aqui e ali responde às indagações de Augustoni. Por exemplo, quando afirma que a performance está mais próxima de Bispo do Rosário do que de Oiticica, e as referencias ao rito dos egunguns assumida por Aleixo e aparentemente ignorada pela analista.

Um dos pontos fortes do texto diz respeito à relação entre “invisibilidade do negro” e as escolhas “precárias” de iluminação e sonorização na performance. O blackout como escolha política, o precário como escolha política, e a associação entre essas escolhas e a origem afrodescendente do artista dão o tom à análise e nos fazem entender melhor outras performances, como as de Michelle Mattiuzzi,  Diego Alcântara e Malayka SN, por exemplo. Como em todos os momentos analíticos do texto, a pesquisadora lança mão de referências na própria obra poética do poeta-performer, promovendo, desse modo, uma teoria fundamentada, o que ganha força e se destaca do momento ritual da inserção de pressupostos teóricos que “preparam” o leitor para a análise.

Palimpsesto a refletir sobre outro palimpsesto, as diversas camadas de análise, que partem de referências teóricas para a performance, passando por referências estéticas, poemas, produções sígnicas, escrita performativa, escolhas técnicas, estéticas, ideológicas, em um texto que na sua circularidade propõe-se aproximar de seu objeto de análise nesse vai-e-vem entre objeto que é visto por um sujeito, podem ser pensados em outros contextos, com outros artistas, que relacionam poesia e performance, ou melhor, no simultaneamente aqui e agora, escrevem o poema da presença, da rasura e do imprevisível.

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[1] A poeformance do poemanto. In: AUGUSTONI, Prisca. O Atlântico em Movimento: signos da diáspora africana na poesia contemporânea de língua portuguesa. Belo Horizonte: Mazza Edições. p. 167-191. Uma versão menor desse excerto pode ser lida em: < https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4846183.pdf  >

[2] SANTOS, Luciany Aparecida Alves. Modelos Vivo em uso: poesia e performance de Ricardo Aleixo (em) um exercício crítico de literatura contemporânea. João Pessoa: PPGL-UFPR, 2015. (Tese de doutorado inédita). Disponível em URL: < http://tede.biblioteca.ufpb.br/handle/tede/8524  > Acesso em 24 abr. 2017.

[3] ALEIXO, Ricardo. O poemanto: ensaio para escrever com o corpo. In: Modelos Vivos. Belo Horizonte: Crisálidas, 2010.  Vale ressaltar que o poema em questão embora tenha sido publicado antes  do livro de Augustoni, provavelmente foi escrito depois da defesa da tese de doutoramento, o que ocorreu em 2007.

VII

Mas já dentro da performance de Malayka, sinto minhas contradições vulcanizarem. É ridículo estar num espaço e pensar que encontrou algo que esperava tanto – é necessário perder essa necessidade de conceitualização, tanto no agenciamento que nos leva à obra quanto no que nos leva ao depois da obra. Toda a produção crítica cairia naquelas redomas costumeiras e horizontalizadas pelos críticos de cinema, de Roger Ebert a Pablo Villaça. A crítica de cinema é uma coisa. Consegue, de um modo ou de outro, produzir um texto boleado. Fecha qualquer possibilidade numa máxima semiótica. 

 

III

Claro que, em meus parcos estudos sobre a civilização egípcia, tinha um interesse agudo pela sua mitologia e o antropozoomorfismo – admito que é meio cruel resumir a mitologia às possibilidades de colagens entre homens e animais, negligenciando a sua realidade simbólica. Mas desde cedo tudo que é meio disparatado me chama a atenção; talvez seja a hora de levar isso a sério.

 

IX

Ser convidado para estar em Bastet, principalmente como uma espécie de abantesma, é lembrar que Diego Alcantara sempre expressou seu interesse pela mitologia, seja ela egípcia, yorùbá, grega ou romana. Lançava algumas dessas referências quando falava de cultura pop ou de alguma performance que estávamos criando juntos. Mesclava essas referências, inclusive, quando tecia alguns argumentos críticos das performances que via. O interessante é que ele não aludia a um imperativo intelectual metido a doutor, mas a uma necessidade, por vezes poética, de justaposição.

 

IV

Na verdade eu não sabia que existia essa profissão, a de egiptólogo. O que eu queria mesmo era ser pesquisador da civilização egípcia quando mais velho. Cheguei a investigar áreas que contemplassem essa minha necessidade e, durante um período curtíssimo, achei que futuramente optaria por me especializar na área de antropologia. Ser um Henry Jones Júnior, sem aquela característica hollywoodiana, obviamente. Por felicidade, desisti de ser um colonizador de profissão. 

 

VIII

Essas realidades codificadas caem por terra na construção do fenômeno. Malayka não carregava um braço de manequim masculino por acaso. Em seu quarto – todos as performances ocorrem nos quartos dos artistas que residem na casa – lá estava uma divindade masculina,  carcaça de boi e corpo de homem, deitado a sua cama. Havia um velamento de um suposto antigo homem entre os silêncios e as músicas ritualísticas que saíam de seu computador. Vagarosamente, o mistério era concebido para morrer. Quando ela saiu do quarto, deixei de ser a egípcia de Malayka para me aproximar do morto. Ao mesmo tempo, um gato pula na cama – Bastet vigia minha expectação. Cabeça bovina. Corpo de homem. Short de surfista. Na camisa, pirâmides do Egito. Duplo possível.

 

II

Os livros foram condenados às traças e a camisa, de tão surrada pelo uso, se transformou em pano de chão – antigamente as camisas de algodão eram preferência para essa função, já que absorviam melhor a água; não eram como esses trapos de hoje, de trama apartada e que só ampliam a nojeira. Ótimo para os pais, péssimo para os filhos. Só hoje entendo essa astúcia[1]

VI

Depois de tanto perambular pela Casa Monxtra, espaço performático de Bastet – muitas das pessoas já tinham compartilhado de algumas das performances – eis que encontro a personificação da ethos egípcia: Malayka SN “se faz de desentendida, faz que não viu, mas viu tudo, sem nem sequer mexer o pescoço”, é essa a definição, no Dicionário inFormal, desse jargão que fomentou tantos memes. Definição das melhores, posto que tira a gíria de uma área melindrosa, nos apresentando a performatividade ali implícita. Malayka esquadrinha

Por Diego Pinheiro

Egípcias e Outras Colagens

tudo, parece que não há pontos cegos em seu perímetro. A imagem da performer com um braço de manequim masculino de cor azul marinho substituindo o seu próprio braço, enquanto, com um olhar gélido, mapeia o corredor onde se ajuntava um número graúdo de pessoas; emana uma atmosfera de esfinge, seja pelo seu enigma, seja pela sua fome. 

 

I

Lá para os anos iniciais de minha adolescência, sustentei uma curiosa vontade de ser egiptólogo. Isso se deu com a aquisição, em um sebo na saudosa rua 6 de Janeiro, na Cidade Baixa, de dois volumes intitulados O Mundo Egípcio, da coleção Grandes Impérios e Civilizações, da editora Del Prado. Essa obsessão durou até os 16 anos, se não me falha a memória, e era tanta (só tendo esses volumes como referência) que um amigo me presenteou com uma camisa azul marinho que tinha como estampas as pirâmides.

 

XI

Fiquei em frente à Casa quando me pareceu que a experimentação tinha dado por finda. Enrolava meu cigarro enquanto conversava com Malayka e outros tantos que estavam também inseridos na Per-Bast[2] temporária, quando fui tomado pela certeza de ter sido irresponsável. Não vi a performance de Shankar e estive, meio que às pressas, nas performances de Loren Taba e Frutífera lha.  Ora, me parecia que “se fazer de desentendido, fazer que não viu, mas viu tudo, sem nem sequer mexer o pescoço” era imprescindível para todos os fantasmas ali, sobrepostos. Sei que terá pessoas dizendo “mas você viu o que tinha ver”, “a obra é assim” etc, etc... essas patrulhas que sobrevoam as artes contemporâneas. Só diria para me deixar morrer com essa questão, se assim fosse do meu gosto: por que é condição dos contemporâneos não serem generosos?

 

V

É a partir desse meu antigo interesse que começa o meu envolvimento com a obra Bastet (direção geral de Diego Alcantara, que também está como performer). Ao ver a arte do experimento, um corpo humanoide e a cabeça de gato como um ciclope – uma figura aparece acomodada em sua contemplação preguiçosa de um olho só – comentei na postagem do facebook: fazendo a egípcia. É interessante pensar que neste momento começamos alguma relação com a obra. Essa relação já está fundamentada nas projeções possíveis. Através da imagem já estava eu organizando uma espécie de digrama: Bastet obra, Bastet divindade, Civilização Egípcia, Diego Alcantara e o Mito, Série da Del Prado, fazer a egípcia como ética crítica e performativa.   

 

X

Muito embora as performances ali concebidas possuíssem a pujança de seus artistas, estar inserido naquele experimento foi como adentrar o espaço mitológico, vasculhar os mistérios que povoam o imaginário de Diego, entrando em contato com as suas possibilidades divinas. Seria como estar no Mundo de Tim Burton – outro artista por quem o ator e performer tem estima especial. Estando em seu minúsculo quarto, espaço de sua performance, comi pão e bebi água de jarra de barro ao som de Barbara Lewis. Foi uma interação estética pautada nos silêncios e na observação de alguns escritos. Acho que começo a entender o furacão do que Diego chama de mito pessoal – não há nada mais a ser dito sobre isso aqui.  

 

Quando saí da performance de Diego, tive um breve pavor do futuro e, de dentro do quarto, saía um ilá de cágado. Ele abre novamente o quarto para uma nova interação. 

 

Maiorzinho, it seems like a mighty long time.

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[1] O jeans é o melhor de todos.

[2] Antiga cidade egípcia que cultuava a deusa Bastet. Significa, em livre tradução, Casa de Bastet.

Colagem de Diego Pinheiro

V.2 n.2 2017

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