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CRÍTICA Manequim - crítica a partir de SerEstando Mulheres ISTC
REVERBERA Heron Sena
Crítica -Silêncio! Crítica a partir de Entrelinhas, obra de Jack Elesbão
CRÍTICA DA CRÍTICA - O ritmo do nada
RIZOMA - Sobre asas extirpadas ou como Icaro até que tentou
ENCONTRO com Mari Buente
ENSAIO FAntasias revolucionárias
SELFIE - "Vídeo-dançar"
TRETA - Querido Pretato,4
Rebate -Isaura Tupiniquim

maio

V.2 n.3 2017

Silêncio

Sobre Entrelinhas, de Jack Elesbão, por Diego Pinheiro

Foto de Andrea Magnoni

EDITORIAL

O ator, performer e dramaturgo Heron Sena, reverbera o espetáculo "Barrela", montagem do consagrado texto de Plínio Marcos, com direção de Nathan Marreiro. 

Na Edição #12. Laís Machado encontra a musicista e técnica de som Mari Buente.

Manequim

Crítica a partir de Isaura Suélen Tupiniquim Cruz, de Isaura Tupiniquim,

por Laís Machado

Rebate à Crítica "Manequim", de Laís Machado

O Ritmo do Nada, Crítica da crítica do site Bocas Malditas,

por Igor de Albuquerque

Sobre asas extirpadas ou como Ícaro até que tentou , por Matheus Menezes

Laís Machado encontra Mari Buente

Fantasias Revolucionárias, por Daniel Guerra

Vídeo-Dançar, por Bárbara Pessoa

Foto de  Ives Padilha

Por Diego Pinheiro

Silêncio

Crítica a partir de Entrelinhas, obra de Jack Elesbão.

Segundo John Cage[1], Kant dizia que há duas coisas no mundo que não reclamavam por significados: a música e o riso – desconfiável seleção. Levando em conta as iniciativas musicais do primeiro, será possível perceber que o enunciado de Kant fomentava as problematizações entre som e silêncio que foram levantadas pelo compositor americano. Cage tinha um certo fascínio pela liberdade sonora, um romantismo coerente para o anarquista que era. Essa liberdade sonora, digna de amor, nada mais é que o próprio silêncio – talvez nisso Cage tenha acertado, o silêncio sempre será uma questão de exterioridade. Mas nunca direi que John poderia ter sido menos intransigente, quando percebeu, se dispondo de uma possível ingenuidade, que estar envolvido pelo silêncio é uma das questões mais hediondas. Não sei se o próprio gostaria de ter ouvido aquele silêncio no Cabaré dos Novos, quando Jack Elesbão simbolizava as violências a partir de uma performance de adestramento da mulher.

 

Entrelinhas, nome demasiado lacônico para uma obra, um pequeno disparate para com a lógica bárbara do mercado. Porém, há no nome um convite severo, uma necessária austeridade que reclama minha atenção. Um convite feito por Jack Elesbão para algo, talvez, anômalo na dança contemporânea: uma relação inventariada nos símbolos. A carga simbólica que constitui a coreografia parece ansiar por uma ideia antissoporífica. Inegavelmente, é uma obra criada, em primeira estância, para a visão. Os elementos levantados, contudo, tentam instigar os olhos para que a imagem force uma abertura em nossos auvidos. É assim, a partir desses dados imagéticos e simbólicos, que Elesbão parece buscar uma aliança entre visão e audição em sua performance. Visão como disparo ou ferramenta, e audição como sensação, coisa desejada, ou melhor, o discurso nas entrelinhas da obra.

 

Não era necessário esperarmos nosso contato com a máscara de flandres, usada pela dançarina, para identificarmos que a obra também tem como motivação a própria experiência de Jack, uma mulher negra, que, com efeito, sabe das opressões e agressões que potencializam essa condição. A máscara surge como um gatilho para começarmos o processo de desautomatização dos ouvidos, estabelecermos um contato com as violências existentes no silenciamento[2]. A imagem dessa mulher negra, ao centro do tablado – enquanto oscila entre estar de perfil, de frente e de costas -, com a máscara de flandres e com

Mas lidar com simbologias atualmente, se torna muito perigoso; no fundo, desde sempre. A armadilha está no duro processo de tradução. Por essa via, a obra artística pode cair na atraente possibilidade de propor uma linguagem comum ao ensemble

cavalo. Não sabemos se a dançarina está chorando ou rindo atrás da máscara. Há uma angústia, e uma fissura é aberta em Entrelinhas – um dia ouvi de alguém que Fernando Guerreiro, durante a temporada de suas peças, somente assiste o seu “público”. Me peguei fazendo o mesmo: homens constrangidos, uma mulher chorando, outra com a mão no rosto como se não quisesse “ouvir” aquilo ou, quem sabe, ouvindo notas similares, progressões íntimas... uma outra atonalidade. Quase 10min de tensão que pareceram 60. Nas entrelinhas o contrassenso. Uma harmônica áspera.

 

As palmas finais, tão juntinhas, tão em coro, tão absurdamente altas... Disfônicas perante a voz de Jack Elesbão.

 

 

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[1] Foi um compositor e teórico musical norte-americano. Um dos ícones da música aleatória que também integrou o movimento Fluxus.

 

[2] A performance de Jack tem ressonância em obras como Há Violência no Silêncio?, peça coreográfica com direção de Nirlyn Seijas e Obsessiva Dantesca, performance cênico-musical de Laís Machado. Na Revista BARRIL tem crítica e Rizoma sobre essas obras. Respectivamente nas edições 5 e 8 da Revista. 

 

[3]Foi uma ensaísta, romancista, crítica de arte e ativista norte-americana. Esreveu ensaios como A Vontade Radical, Sob o Signo de Saturno e Contra a Interpretação.  

um canhão de luz sobre o seu corpo, é a primeira que vemos quando entramos no Cabaré dos Novos. 

 

É nesse momento que temos contato com todos os elementos que compõem a obra: um código de barras sobre o sexo, a considerável quantidade de sutiãs sobrepostos por Jack, o salto alto, uma ave-maria e o samba – a performer samba, fluidamente, quase em slow motion, tendo a versão de Schubert como ambiência sonora. Mas antes disso, os sinais. Aqueles, presentes e característicos de uma edifício teatral de respeito, como é o caso do Teatro Vila Velha. As velhas e autoritárias pancadas de Molière, ainda pedem por “silêncio” -  uma das carências que edifica a tradição teatral. Depois do 2º sinal, uma voz anuncia os apoiadores do Teatro, algumas marcas. A voz amplia o discurso de Jack. O código de barra sobre o sexo, o flandres e as marcas anunciadas se tornam prelúdio. A voz do mercado e a mulher com o código de barras. Uma cruel significação. 

 

Mas lidar com simbologias atualmente, se torna muito perigoso; no fundo, desde sempre. A armadilha está no duro processo de tradução. Por essa via, a obra artística pode cair na atraente possibilidade de propor uma linguagem comum ao ensemble. Ou seja, não há colapsos ou crises e, por consequência, não há crise no contato com a obra.  Contudo, o símbolo pode funcionar como uma espécie de corpo, pronto para exumação. Ele próprio só resta em simples matéria, pronto para reprogramações; em arte, uma relação em “entrelinhas”. Foi assim que Susan Sontag[3] se relacionou com a obra de Bergman, “interpretando” além do convite para a interpretação.

 

Entrelinhas lida com essa zona de risco: o sutiã, o cristianismo, a máscara de flandres, o código de barras, o crucifixo que também está sobre o sexo em momento pontual. Instituição religiosa, poder econômico e mercado, leio como os disparadores de tal agressão ao corpo dessa mulher negra; e sim, eles são.  Mas como a performance possui uma espécie de processo anticatártico, numa sequência de mais ou menos três quadros, cair nessa armadilha da tradução, uma vez ou outra, se torna real. Mas é no segundo quadro que encontramos aquele silêncio.

 

Jack fica de quatro sobre o tablado do Cabaré dos Novos, anda por ele nessa posição. Faz movimentos que lembram o processo de adestramento de animais como um cachorro ou

Por Laís Machado

MANEQUIM

Crítica ao solo Isaura Suélen Tupiniquim Cruz

Isaura Suélen Tupiniquim Cruz é o solo de Isaura Tupiquim, que teve estreia no dia 26 de maio de 2017 no Teatro Gregório de Matos. Partindo da questão “Como ser guru de si mesma?”, Isaura faz um convite para que “tornemos móveis e múltiplos os olhares sobre o outro e sobre si”[1]. Tentando “friccionar e estilhaçar suas autorrepresentações”[2]. O que percebi é que dentre os inúmeros caminhos possíveis para a construção desse solo, Isaura escolheu nos mostrar dois, tornando possível comparar Isaura Suélen Tupiniquim Cruz com Isaura Suélen Tupiniquim Cruz.

No primeiro momento, com o palco ainda sem sua presença, encontramos um manequim com um amplificador na região do estômago que vibrava e aos poucos ganhava volume apresentando-se como Isaura, perguntando-nos do que tínhamos fome e colando faixas e faixas da mesma coisa até tornar-se caótico.

Então, no meio desses ajustes surge Isaura outra vez. Desta vez no corpo da performer Isaura Tupiniquim. Envolta num manto preto, usando um cocá e uma máscara. E, afirmando-se como plataforma do tempo, caminha lentamente na mesma atmosfera mântrica que havia sido iniciada em meio ao caos-Isaura-manequim.

Foi então que, me permitindo a adjetivação, vi[vi] uma cena muito impactante: em um espaço vazio e preto, com a luz em penumbra, usando como recurso um cinto, uma máscara e um top que serviam de suporte para lasers vermelhos, ficamos imersos em uma fenda espaço-temporal. Contemplando uma mulher que parecia explodir e se transformar em mil pedaços. Um corpo que parecia ser capaz de radiografar cada partícula que estivesse ali. Memórias que eram invocadas de algum ponto obscuro. Contemplando um céu estrelado de sangue. Um corpo que poderia ser o de qualquer um, naquele exato momento e ao mesmo tempo.

Ali, não havia Isaura, nem eu, nem o outro. Havia aquilo, cuja mensuração do tempo parece, ironicamente, perda de tempo.

Foto de Elzinha Abreu

Ali, não havia Isaura, nem eu, nem o outro. Havia aquilo, cuja mensuração do tempo parece, ironicamente, perda de tempo.

E então do mesmo modo em que fomos atirados naquele espaço, somos trazidos de volta ao Teatro Gregório de Matos com pouco cenário e arquibancadas dispostas para a apresentação de um desfile. Trocando o efeito imersivo pelo tom de informalidade cuja forma nós, contemporâneos, conservamos.

Nesse segundo momento, em que comecei a ler coisas, mesmo com todas as tentativas de ressignificação, “as roupas eram pedaços de pessoas” desconhecidas, algumas das quais Isaura escolhia dar vida e outras apenas carregar de um lado e para o outro, como uma carga [in]cômoda de memórias e ancestrais. E ao contrário da primeira parte (caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz), todas as coisas eram apresentadas de maneira coloquial e apressada. Estávamos agora em um outro momento: um desfile (Isaura-manequim-contemporâneo).

Na medida em que as coisas retornavam aos seus devidos lugares e nomes, a plateia ia se sentindo confortável. Seus corpos mudam em seus assentos e o olho de Isaura convida-os para a conversa. Então, chega Temer, a América do sul, suor e sangue, e enquanto Isaura cumpre seu papel de se alinhar com o momento político atual, eu me pergunto: Se o objetivo era tornar múltiplo o meu olhar, por que está me dando um mapa? Você me deu, ou nos foi dado por uma linguagem que nos é familiar?  

Durante o segundo momento, que estou chamando aqui de Isaura-manequim-contemporâneo, as tentativas de borrar os contornos identitários de Isaura Suélen Tupiniquim Cruz são feitas através das relações que vão se estabelecendo com as roupas, com o baterista e com o microfone. São muitas imagens, mas o desfile parece não ter relação alguma com a imersão inicial, fazendo com que

aquela Isaura-caos-manequim-mantra-isaura-luz do primeiro momento parecesse parte de outra coisa. Mesmo que ela tenha sido tão potente no borramento de todas as limitações que havia naquele corpo-Gregório.

Um outro ponto, é que a partir do momento em

que somos apresentados a Isaura-caos-manequim-mantra-Isaura-luz nossas expectativas são ajustadas. Afinal, estávamos diante da introdução, da mestra de cerimônia. Mas o caos e a imprevisibilidade daquele acontecimento são ajustados, logo em seguida, a uma forma pré-determinada pelo Contemporâneo. Contradizendo as leis da física que dizem que o caos tende ao máximo. Poderíamos falar em clímax também: é como se ele tivesse sido apresentado no começo. E, mesmo que intencional, é importante lembrar que formalizar um corpo depois que este foi estilhaçado demanda muita energia..., mas não quero voltar para a física.  

Perto do fim, Isaura come uma banana sentada ao lado do manequim que agora usa o cocar e todos os apetrechos futuristas, e nesse momento vislumbro o caos-Isaura-manequim-mantra-Isaura-luz outra vez. Ela se dava tempo, nos dava tempo. Cortava, mastigava e deglutia na beira de uma estrada, diante de um mundo em potência.

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[1] Texto de Isaura Tupiniquim no programa do solo.

[2] Idem

Por Igor Albuquerque

Dar forma a um tablado editorial é uma das atividades mais desafiadoras no que se refere à prática social da intelectualidade, pois os caminhos já trilhados desde Gutemberg são muitos e não faz sentido se repetir copiando Pierre Menard. Uma coisa é derrubar o mito da originalidade, outra é assumir o “mais do mesmo”. Para complicar a situação, as individualidades reunidas em grupo – sem as quais nada de novo sob o sol seria possível – muitas vezes se mostram resistentes quando precisam abdicar de suas convicções em nome da viabilidade de um projeto. Outro grande problema: como conceber e diagramar as matérias verbal e não-verbal desenvolvendo, com personalidade, uma dicção potente sem se transformar em um mero criado das demandas e caprichos dos leitores contemporâneos? Uma coisa é compreender o presente, outra é curvar-se a ele.

Vamos ao assunto.

 

Se você não conhece o Bocas Malditas, não se sinta por fora, não se espante. Em matéria de crítica de artes cênicas online o site é uma novidade de apenas três meses. Diretores, dramaturgos, críticos e artistas visuais formados em diversas Universidades do Paraná compõem a equipe que inaugura e sustenta essa recente empreitada. Seus textos ganham as telas dos computadores e celulares a partir de um layout seco, elegante e muito funcional. Quase tudo preto no branco.

 

Na página inicial há cinco retângulos grandes que dão acesso ao material do site (quem somos, escritos, caderno de artista, entrevistas, contato). Até aí uma escolha editorial conservadora de simples decodificação. Mas o conservadorismo acaba por aí. Logo na descrição pregada abaixo do título está riscado o seguinte: “Bocas Malditas é um site de escritos e outros materiais críticos e reflexivos de/em artes cênicas. De/em/para Curitiba, e para além dos pinheirais”. Eis uma primeira marca de distinção: o estilo hiper-preposicional.

Clicando no “quem somos”, o leitor é levado para o campo de batalha mais turbulento dos tempos que correm: a zona dos jogos de identidades. É preciso responder a uma das três questões fundamentais da filosofia. Nessa seção, as estratégias desenvolvidas são muitas e as discussões quanto ao conteúdo estão latentes, mas para o propósito deste texto, focaremos a forma do texto a partir de quatro eixos. As operações destacadas são: 1) alheamento do mundo via conjunção reticente; 2) repetição de frase taquigráfica visando a integração de segmentos estético-sociais; 3) articulação de olhares inclusivos em direção a diversas linguagens artísticas e não artísticas; 4) emprego do artigo X;

 

(grifos deles)

número 1: “Bocas Malditas. Bocas Malditas porque aqui. Bocas Malditas porque plural. Bocas porque falantes. Malditas porque insistentes (…) Bocas porque dentes língua. Malditas porque mordida lambida. Bocas porque beijo. Malditas porque Gilda”.

número 2: “Uma crítica.  Uma crítica amiga. Uma crítica bicha. Uma crítica que conversa no fim (…) Uma crítica metalinguística. Uma crítica preta.  Uma crítica americanizada. Uma crítica europeizada. Uma crítica latino-americana. Uma crítica universitária. Uma crítica novelística. Uma crítica que dorme cedo. Uma crítica que fica até fechar o bar”.

número 3: “Artes Cênicas. Várias perguntas, algumas crises, e nenhuma certeza. Artes cênicas?Teatro-Dança-Performance-Musical-Circo-Mágica-etc.Visualidades-Sonoridades-Corporalidades-Espacialidades-Temporalidades-Sociabilidades-Politicidades-etc”.

número 4: “Pensar sobre. Pensar sobre é estar permanentemente em trânsito.Convidar. Convidar é dizer “vamos juntxs”.

Além de funcionar como demarcação de território, essas citações também apresentam valores que o grupo cultiva de modo recorrente em outros textos. E nesses valores nada de mal há, pelo contrário. Nas linhas escritas acima e nas críticas propriamente ditas percebe-se a verve democrática, a preocupação com a igualdade social nas artes e a generosidade de olhares atentos que pouco ou nada querem deixar escapar. Como é o caso da crítica de “Bimobaba”   – performance de Bia Figueiredo – escrita por Francisco Mallmann. Aqui se podem observar

O Ritmo do Nada

Há um tipo de escrita que se pretende inclusiva e abrangente, mas se esquiva das questões mais complexas quando recorre justamente a estruturas pré-moldadas. Não são as justaposições de preposições, nem as metralhadoras de travessões, muito menos o artigo X, que fazem um texto justo, honesto, responsável e relevante.

todos os cinco elementos estilísticos citados anteriormente: o hiper-preposicional “Bimobaba é um trabalho de/em dança”; a reticência via conjunção unida à repetição de frase taquigráfica “Se ela usa a boca, se usa os pés, se usa a bunda. Se ela usa os braços. As mãos, se ela usa. Se ela atrita contra a parede. Se ela move a cintura. Se move as pernas.”; articulação de olhares para diversos segmentos estético-sociais via travessão “Mu-dança de lugares, corpos, territórios e paisagens. Híbrido-performance-dança.”; artigo X “Bia Figueiredo vem pesquisando já há alguns anos, junto de várixs outrxs”. Note-se que os recursos muitas vezes pegam características emprestadas uns dos outros.

No afã de responder as questões do presente, na mesma medida em que busca firmar seu lugar na crítica, o Bocas Malditas vai sedimentando seus discursos utilizando-se de técnicas caras tanto aos artistas contemporâneos entusiastas de correntes filosóficas recentes, quanto aos publicitários mais arrojados do mercado. Não é difícil encontrar semelhanças entre os textos citados, as propagandas da Rede Globo (Agro é tech. Agro é pop. Agro é tudo), Skol  (Skolors), os catálogos de exposição, as hashtags do instagram (#sobre  ontem), e até mesmo o que fizeram vinte anos atrás no clipe “We are the world” transpondo a sintaxe do texto para a linguagem audiovisual.

 

Há um tipo de escrita que se pretende inclusiva e abrangente, mas se esquiva das questões mais complexas quando recorre justamente a estruturas pré-moldadas. Não são as justaposições de preposições, nem as metralhadoras de travessões, muito menos o artigo X, que fazem um texto justo, honesto, responsável e relevante. A automatização desses recursos funciona para simplificar a complexidade do outro e para domesticar olhares. Reduz-se o caos a um abraço coletivo.

No entanto, engana-se quem acha que o estilo tradicional seria uma opção viável. É importante pontuar que a escrita antiga, em toda sua violência excludente, está repleta de formas pré-estabelecidas que durante muito tempo domesticaram gerações de letrados e iletrados. Esses grilhões sofreram duros golpes das vanguardas, da linguística, da psicanálise, da filosofia, do feminismo e dos estudos culturais no último século. Mas a iconoclastia conceitual das revisões formais operadas por esses grupos pode virar enfeite de sala comprado na Tok&Stok. Eis o anúncio de Perigo! (que também pode ser comprado na Tok&Stok).

 

Se, por um lado, a escrita envolve alegria e satisfação, por outro é quase impossível concebê-la sem uma boa dose de desespero. No desespero não há formas prontas, não há caminho fácil a ser seguido. As instâncias da criação estão repletas de desassossego e tensão; a crítica – criação a partir de outra criação – não deve se esquecer disso:

 

dentro das traves de medida o ângulo da folha em branco abriga uma barra vertical que existe e desaparece. o ritmo do nada. a angústia assoma ante o vazio e a esperança do preenchimento. as ambições de novo nada. o resto antes e depois disso é som e fúria.

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Link para o site Bocas Malditas: http://bocasmalditas.com.br/

Em “Memórias do Subsolo” Dostoiévski narra a fábula de um sujeito que resolveu mijar numa das pilastras do Palácio de Cristal. A imagem deve ter proporcionado boas risadas ao autor; imaginar esse personagem sacana e insensato, que simplesmente “porque sim” sai disparando seu jato em cima do sonho da humanidade, partindo depois como se nada tivesse acontecido e assobiando uma melodia qualquer pelas estradas.

Nessa história, a graça vem do choque entre a utopia e o nonsense. O hipotético Palácio de Cristal levou séculos para ser erigido. Custou trabalho, educação e cuidados de gerações. Muita fé e tempo. Aprenderam a liberdade, o amor e a igualdade. Eles devem ter se organizado como Marx pensou: “cada qual conforme sua capacidade”. Tudo isso pra vir um merdinha qualquer e se aliviar justo em cima do grande símbolo da paz! Ele não deve ter pensado muito sobre o que significava o enorme cristal à sua frente, além de um prédio pontiagudo que se interpunha entre o caminho restante e a bexiga inchada. É evidente que não incluíram na utopia a construção de banheiros públicos. No mais, Freud que venha justificar esses sonhos onde não nos fornecem sequer uma privada.

Vira e mexe essa anedota retorna à minha memória. Ela aparece ainda mais repetidamente nos momentos turbulentos, porque é neles que começam a pulular todo tipo de desejos utópicos — e esses são os mais perigosos.

Nos últimos anos, a hashtag “utopia” veio com tudo. Deu as caras em festivais, mesas de debate, palestras, workshops e espetáculos, isso só pra falar do campo humilde das artes cênicas. Enquanto isso, o mercado cultural brasileiro já girava em torno da ideia há pelo menos quatro anos, contando com a adesão de marcas de cerveja e telenovelas, isso sem falar na ala dos gringos, com suas séries milionárias da Netflix e as mais recentes produções hollywoodianas. Ou seja, se dependesse da boa vontade publicitária, já estaríamos vivendo um mundo bem melhor.

Ao menos na terra tupiniquim, logo após as explosões das primeiras manifestações de 2013 — onde já não se sabia se tudo aquilo terminaria sendo “de esquerda” ou “de direita” — precisou-se apenas de um curto respiro para que pudessem reformatar o sentido do jogo e finalmente, começar a jogá-lo.

O capitalismo não age somente por metodologias de repressão. Por sua própria complexidade, ele é bem mais sutil: estimula oposições oportunas ao seu próprio funcionamento, encena conflitos espetaculares inspirados em antagonismos reais, e todos os dias põe mais lenha no teatro da rebeldia versus a “reação necessária”. Mas se o faz, é sempre criando um movimento correspondente de banalização. Os efeitos já tinham sido diagnosticados por Debord meio século atrás: “Assim como [a sociedade do espetáculo] apresenta os pseudobens a desejar, também oferece aos revolucionários os falsos modelos de revolução”[1].

É curioso constatar que paralelamente à ideia bastante propalada de uma “morte da representação” — ou seu simples cansaço —, esteja acontecendo uma intensificação comercial das narrativas engajadas. Quando a política passa a ser o tema e não a estrutura, ou quando há cisões de forma e conteúdo que privilegiem este último, deve-se levantar as duas orelhas, e ativando as narinas, começar a farejar.

Uma das frases que mais tenho escutado no metiê artístico-revolucionário é o tal do “urgente e necessário”. O jargão sai fácil da boca de artistas e críticos, e aparentemente contempla um círculo ilimitado de atribuições. O “urgente e necessário” substitui, no plano das adjetivações, tanto o “belo”, herança trazida de tempos clássicos, quanto o “potente”, idílio sussurrado pelo bloquinho dos filósofos pós-estruturalistas e comentadores da PUC.

Digamos que alguém não saiba muito bem como avaliar uma obra, ou porque ela apresente reais dificuldades de enfrentamento, ou porque ela é frágil. Às vezes pode se dar, num sujeito, uma real falta de talento para a avaliação das coisas que se passam ao seu redor, ou então uma recusa ideológica, terrorista e sentimental — similar à de alguns ecologistas — em “julgar qualquer coisa que respire sobre a Terra”. Então não demora muito e lá vem o “urgente e necessário”, rápido como uma bala, firme como uma muleta. Ele serve pra tudo. Principalmente para a adesão massiva, já que possui as mesmas características do meme.

Imagino que a expressão deseje estabelecer um pertencimento mútuo da obra ao seu tempo, se bem que um tanto forçado. Nenhum juízo é só uma avaliação; um juízo também legisla, determina a essência do objeto, o transfigura sob as lentes populares. E com o apoio massivo e anônimo do mundo virtual, fica muito mais fácil criar uma relação de necessidade ou impertinência ali onde um niilista dostoievskiano veria nada vezes nada.

Eu concordo facilmente com Nietzsche, cada forma de decadência tem seu bordão predileto. “Estou cheio de desconfiança e de malícia do que chamam “ideal”: esse é o meu pessimismo em ter reconhecido o quanto os “sentimentos superiores” são uma fonte de infelicidade, quero dizer, de amolecimento e depressão do homem[2]. Por exemplo, se começamos uma busca a partir do principal ideal da contemporaneidade, a ansiedade de pertencimento ao próprio tempo, e seguimos procurando até a raiz, provavelmente surpreenderemos coisas “urgentes” substituindo o que na verdade é inútil, e “necessário” ocultando aquilo que à luz do dia figuraria ingênuo ou supérfluo.

Fantasias revolucionárias

Por Daniel Guerra

"Art Fair, Booth no.4", Eric Fischl

Tampouco há salvação (“Graças a Deus”, diria Buñuel). Pensar ou agir em termos de mau, imoral ou monstro não significa superar o bom, o moral ou o santo, assim como pensar ou cometer sacrilégios nunca fizeram o teto de uma igreja desabar sobre a cabeça do papa.

Cada utopia reproduz não só uma fraseologia, mas também um corpo que as alimenta e delas deriva. Uma passada de olho nas obras engajadas revela recorrências fantásticas. Eu poderia chamar de clichês essas repetições formais, sejam elas estruturais (dramaturgia, texto, movimento), ou “espirituais” (a maioria tem uma moral da história, uma mensagem ou um tipo de presença bastante específico), mas pelo próprio caminhar dos jargões contemporâneos, substituo “clichê” por “sintoma”. “Sintoma” é ele mesmo uma patologia do uso verbal, e se o emprego é porque vejo na palavra uma pertinência que não encontro mais, por exemplo, na palavra “luta”. Me causa estranheza que, nas redes sociais, uma artista negra que afirme lutar “contra o racismo diário” coexista na mesma dimensão que uma dona de casa branca “lutando contra a corrupção” ou com um adolescente de classe média que, ao fotografar o amanhecer no seu Instagram, com um café na mão e um livro de Hilda Hilst na mesa, declara: “A luta continua, e ela é de todxs nós”. Hoje se luta e se fica de luto com a mesma rapidez que se tem ao escrever essas palavras. Isso é o que eu chamo de indiferença engajada. Então vejo artistas — com toda a razão — se perguntarem confusos, cabisbaixos: qual é o meu lugar?

Na maioria das revoluções históricas, ao artista foi reservado o papel de publicitário. É como se os soldados e burocratas dissessem: “Você pode vir até aqui. A partir dessa linha de segurança, você pode fazer o que quiser, só que do lado de lá. Por exemplo, você pode confeccionar cartazes. Ou escrever slogans”. Também, imagine que desastre seria ter Maiakovski no meio de um conflito fronteiriço. Se fosse um filme, Woody Allen poderia incorporá-lo. Já Sartre foi precavido; antecipou o pedido de distância ao negar uma conversa pessoal com o Che em meio à guerrilha. Devia estar se borrando todo, mas foi com dignidade heroica e com aqueles olhos desesperados apontando pra todos os lados que avisou: “Lá eu não vou não. Neste conflito honrarei meu papel de intelectual”.

Por ser essencialmente publicitária, a arte que serve a um período revolucionário não necessariamente valerá para o próximo. As mudanças formais do agitprop leninista ao realismo socialista stalinista são sintomáticas. Como toda estética utópica, as duas trabalham na afirmação panfletária, seja a de um futuro distante, seja a de um presente que se quer vangloriar. Mas a afirmação maiakovskiana era bem distinta da afirmação stalinista. Perceba-se o quanto chamar o Sol para um chá (“Ouça, topete de ouro/e se em lugar/desse ocaso/de paxá/você baixar em casa/para um chá?[3]) é distinto de retratar realisticamente a ascensão do camponês trabalhador ao lado do Pai dos Povos. Uma diferença estética que valeu uma vida. Hoje sabemos que Maiakovski não foi o único suicidado. 

Quanto a nós, a utopia específica do século XXI é a do empoderamento pessoal (porque as utopias de redes coletivas, essas sobrevivem ao tempo). Não por acaso, os produtos culturais reproduzem estruturas similares. Reservadas suas diferenças de grau e forma, a grande parte conta a história de um auto-entronamento do personagem principal. Nelas, mesmo após o crepúsculo dos ídolos na era moderna, a figura do herói volta a fazer sentido, mas as peripécias passam do mundo exterior para o mundo interno, para a subjetividade, e o caminho de superação individual evolui rumo à descoberta de um poder oculto até então.

O problema das utopias é que elas criam zonas de endurecimento. A porosidade da existência, que deixaria atravessar todo traço de vida, termina soterrada por sentidos inequívocos e afirmações unilaterais. O que se solicita é sempre uma clareza incontestável, o que invariavelmente descamba no didatismo. O caminho do herói deve, portanto, estar pautado em uma série de acertos consigo, do contrário voltará ao ponto de partida e estará condenado para sempre à derrisão social.

O que acontece num processo de enrijecimento formal é a exclusão progressiva das quebras de sentido, do absurdo, do gratuito, do acaso, da galhofa, da fraqueza. A mobilidade básica da vida encontra-se ameaçada pela assertividade moral, e é por isso que a defesa de uma utopia já aloja em si o germe da distopia vindoura. Talvez fosse preciso escutar aquilo que os mestres das artes marciais ditavam: face ao risco da quebra, conservar a elasticidade dos bambus e a fluidez das águas. Eis o antídoto do mijo contra a obstinação da areia no cristal, de onde ressoa o grito político de Macunaíma: “Ai, que preguiça!”.

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[1] Guy Debord, “A sociedade do espetáculo”, 2016, pg. 38.

[2] Friedrich Nietzsche, “Vontade de potência”, 2017, pg. 208.

[3] Vladimir Maiakovski, “A Extraordinária Aventura vivida por Vladimir Maiakovski no Verão na Datcha”.

Tudo bem com você? Eu sei que não, mas as convenções de gênero me mandam iniciar uma carta saudando o interlocutor, estabelecendo a função fática da comunicação, naquela em que se verifica a eficácia do canal. Seguindo esse protocolo, sigo dando notícias do que se passou entre uma carta e outra, mas como não é o caso, pois se trata da primeira e talvez única carta, vou contar sobre os últimos acontecimentos relacionados à sua existência e que eu pude testemunhar. Nesse gesto, vou cumprir o itinerário do gênero híbrido carta-treta, ao mesmo tempo que situo minimamente os leitores do que se trata o objeto deste texto.

Tenho ouvido falar de vocês e sei que todas as terças, às 19h, no fuso soteropolitano, vocês apresentam uma ação de caráter estético-político, inspirado ou revertendo o Ato de Quatro[1], que é uma ação da Escola de Teatro da UFBA. Há uma série de imbróglios envolvendo vocês e eles, mas faltam muitos dados para abordar isso aqui. Como essa tensão é objeto de um Processo Administrativo e por não se tratar, aqui, de uma reportagem investigativa, vou fazer o recorte a partir do que eu pude ver: não os imbróglios fora da cena, mas os imbróglios em e em torno da cena. E talvez tentar apontar para algumas estratégias e táticas que o Pretato[2] vem usando nos três momentos em que tive a oportunidade de assistir.

Mesmo já tendo ouvido falar muita coisa sobre, o primeiro contato que tive com a encenação que vocês levam à Escola de Teatro foi na vizinha Escola de Belas Artes, na Mostra de Performance da EBA. Vocês apresentaram o “Afroconveniência”, uma ação performativa encenada a partir de um clipe de Saulo, uma situação constrangedora para a querida gente não branca ou “passável” ali presente. Eram corpos negros se sobrepondo a uma imagem em que um cantor branco, loiro, baiano, de classe média-alta, de sorriso feliz, cantava África-Iô-Iô Salvador meu amor minha raiz... ad infinitum.  Os corpos de vocês promoviam uma tensão pela presença, pela diferença não só da pele, mas do uso da tecnologia do Power point, do videoclipe, com a precariedade dos recursos que vocês, seus corpos, figurinos, adereços, nos apresentavam. Tinha entre alguns que assistiam um constrangimento necessário. Ainda que, no momento em que acaba o clipe, a performance perca força. Porque ali, naquela hora de apontar o dedo na ferida, olhando em nossos olhos e segurando o clima de constrangimento, o que vi foram corpos fortes em uma encenação nem tanto. O saque de propor seminário/simpósio GT para discutir o genocídio negro funciona, a onda é como dizer isso e como fazer do constrangimento um passo de dança. Isso foi em abril e me deu vontade de ver vocês.

Fui semana passada e foi muito massa ver o público que vocês mobilizam. Cheguei cedo e ao esperar começar vi uma roda de free stile incrível. Minas e manos se desafiando nas rimas, ao som de uma batida beatbox. Vi lá dentro dos muros da Escola de Teatro minas e manos, negras e negros, em sua maioria em idade secundarista, tendo um contato com a universidade mediada por vocês. Fiquei pensando na potência desse encontro entre esse público, a UFBA, a ETUFBA e vocês.

E é aí   que quando vocês começam, depois da lindeza do free style, o que vejo é uma sequência de ações que apontam todos os clichês da branquitude, que denunciam o racismo, que reagem ao que é indiscutivelmente terrível e que nos massacra, mas que parece se contentar com isso. O clichê é um perigo, porque é sedutor. Até que ponto empretecer o Recital da Novíssima Poesia Baiana é efetivo para discutir o racismo? Até que ponto trazer à cena uma pessoa trans, ou não binária, provocando o riso para depois meter o dedo nas feridas certas, mas sem a inflexão necessária para fazer do riso inicial aquele riso constrangido que vi na EBA é eficaz para a formação dessa plateia e das sensibilidades em torno das afetividades que não as heteronormativas? Até que ponto a empregada doméstica que fala dos direitos trabalhistas não é apenas mais uma mulher negra fazendo o papel de servidão da branquitude, objeto de tantas e tantas objeções de mulheres negras que passaram e ainda passam pela Escola de Teatro da UFBA?

Por Alex Simões

Querido Pretato, 

A partir do Projeto PRETATO da Escola de Teatro da UFBA

Até que ponto trazer à cena uma pessoa trans, ou não binária, provocando o riso para depois meter o dedo nas feridas certas, mas sem a inflexão necessária para fazer do riso inicial aquele riso constrangido que vi na EBA é eficaz para a formação dessa plateia e das sensibilidades em torno das afetividades que não as heteronormativas?

Para quem estamos falando? Quais são mesmo as estratégias de formação e de que modo nós podemos incorporar a força dessas vozes, as dissonantes, ritmadas não ao som do Axé malemolente e desconstruído, mas do hip hop no contratempo do Freestyle, não no já mais que usado A Carne mais barata do Mercado é a carne Neeeeeeeegra e o já quase tão desgastado Lemmonade em vez de trazer pro repertório dessa sua plateia o que tá rolando de massa no som LGBTQI de hoje, com as demandas de hoje, com os ruídos de hoje?

Não vou terminar essa carta sem dizer aqui como é bonito de ver o esforço de vocês em levantar a cena, construir um palco, improvisando, usando o cami para a plateia sentar no asfalto. Ver vários motoristas de ônibus cumprimentando vocês. Ouvir uma mulher negra dialogar com o solo da empregada doméstica como se estivesse diante do espelho. Tem um exercício do fazer que é o mais bacana de tudo e tem esse movimento todo das pessoas bonitas que vocês atraem. Falta fazer valer o mote. Falta ser mais esperto que eles. E ter sangue frio.

E desculpe por não me dirigir nem à Organização nem aos professores da Escola. Estou mais interessado mesmo é em ver essa gente bonita que tem ido todas as terças ver o Pretato em outros espaços, inclusive nos palcos, nas dependências da escola e de outros equipamentos culturais. Desconfio que eles tenham muito a nos ensinar sobre arte, cultura e combate ao racismo, ao machismo, à homofobia e à transfobia.

Atenciosamente,

Alex

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[1] O Ato de 4, um projeto de extensão da Escola de Teatro da UFBA, idealizado por Bertho Filho,  é um projeto de pesquisa e extensão coordenado pelos alunos e orientado por um professor, que visa à manutenção de um espaço laboratório para experimentação de cenas. É constituído de quatro cenas dirigidas por quatro diretores, que inscrevem seus projetos de cenas para serem apresentados. Saiba mais em : http://atodequatro.blogspot.com.br/

[2] O Pretato é uma ação promovida pela Organização Dandara Gusmão, inspirada no Ato de 4, e que vem acontecendo na frente da Escola de Teatro da UFBA todas as terças, às 19h.  Saiba mais em: https://www.facebook.com/teatrodandaragusmao

Sobre asas extirpadas ou como Ícaro até que tentou

Rizoma a partir da obra Ruína de Anjos

Por Matheus Menezes

Os santos de ca-Fé que vomitam sua própria adrenalina e acendem fogueiras divisoras em Nietzsche (em que na linha eudaemon e egocêntrica não se carburam). O sumo do sangue idêntico, tal qual univitelos, espalha-se no chão, em que uma travesti canta sua liberdade do desencarne e um potente jogador (das traves de chinelo) não sente mais seus pés pelo doce alheio. O mochilão, cosmopolitismo, latino-americano, vidas em malabares, Sahashara definido em socos do lucro de abdômen-matinê, que é, senão, mais um sofredor das imagens beatificadas da cosmogonia social. Anjos caídos como Lúcifer (Dono do céu, para Bressane), demonizados socialmente como tal, desenhados na imagem branca da bata eurocêntrica como antagonistas. Enquanto nos arrumamos com as becas-de-uma-vez-no-ano pro prêmio Brastemp, o prêmio e brinde da arma militar faz preces à Iansã do asfalto, o ronco gastro gasta a hora, a mão de macho fere o afeto, o fogo do artista é fodido pelo órgão é-de-tais, o encubado sofre por não chegar em Nárnia e o rapaz jovem continua em frente ao Subway da avenida 7, esperando que alguém compre a fatia de 15 cm do baratíssimo do dia para suprir sua saúde, que dona Maria perdeu jaz, em frente à primeira igreja da avenida (também 7), ao lado d’uma banca de revista, pertinho d’uma escola.

Dizem que 7 é o número de Deus por criptografia da perfeição. Talvez perfeito sejam os anjos da(s) avenida(s), esperando a cura da hipermetropia, tal qual em Varekai. 

Querido diário,

 

acordei e era a sessão Iberoamericana em Foco. Começamos com um Mergulho que se revelou, em mim, como a possibilidade de estar de pé. Levantar-se é se jogar de cabeça: uma ideia agradável para prosseguir. Dei alguns passos e, quando o Cotidiano passou por mim, foi como um outro qualquer, por isso, coloquei-me De cara al cielo a fim de experimentar a chance de algum infinito. O que encontrei foi a própria terra e uma beleza concreta: mulheres concretas, marcas concretas. Era bonito e eu cada vez mais à deriva como as casas tão verde- e-rosa. Caminhei ao lado d’El reflejo de tu deliro e chegamos à fuga: à fuga do reflexo, à fuga pro delírio. E o maior delírio de todos, parece, continuará sendo as crianças. Ainda que treinadas, ainda que ensaiadas: crianças. Crianças que mesmo En silencio nada se parecem com os ornamentais e imóveis cactos que me chegaram como o Retrato de un Pueblo – apesar de poderem se parecer naquilo que ambos têm de inusitado.  E diante dessa paisagem caótica de pessoas-cacto e crianças-silêncio, concluí que Se es necesario, es preciso flotar! Coloquei-me de barriga para cima e me deixei surpreender pelos recortes... e depois pelo todo! Ora olhando de longe, ora usando uma lupa... Dá pra fazer tudo! Entusiasmei-me e a excitação, paradoxalmente, expressava-se no deixar passar e também no passar junto como o próprio Tiempo que não pede nada a ninguém, apenas deixa ser no imperativo do tornar-se. Fui guiada pelo SZi de um mosquito até dar de cara com a Despedida que gentilmente me solicitava: “dance me to the end of love”. E, apesar do Ejercicio de un discurso amoroso, acordei assustada, quando me dei conta de que tudo não havia passado de um sonho, como tudo o é.

 

Um sonho bom. Os onze curtas do dia de abertura do festival foram passando e eu permaneci ali, passando também, em uma espécie de meditação. Apenas beijei, brinquei e deixei passar. Um dos motivos de meus desencontros com a contemporaneidade é o fato de ela parecer ser indiferente a mim ou aos desinteressados como eu. Os onze curtas de alguma maneira também pareciam, com a diferença de que também não me exigiam nada. Estávamos quites, passando uns pelos outros, ocupando os espaços, olhos que viam, ouvidos que escutavam etc.

Já no dia de encerramento, na sessão Mulheres Sementes, estive bem acordada o tempo inteiro, apesar de uns cochilos vez ou outra. Sete curtas: mais longos, mais dançados – de acordo com o que vulgarmente

Por Bárbara Pessoa

Vídeo-dançar

Sobre as Sessões Iberoamericana em Foco e Mulheres Sementes do FºDA

foto do vídeo-dança Se es necesario es preciso flotar em http://screendancefestival.com

se conhece como dança –, mais contados. E fui surpreendida pelo fato de me entediar com o reconhecimento dos inícios, meios e fins nos vídeos que se me apresentaram – logo eu, tão aristotélica! Devolvam-me os sonhos.

 

A possibilidade de vídeo-dançar, no dia 1, mostrou-se como a oportunidade do tudo – ou pelo menos quase. Nesse mesmo dia, em momento de conversa pós-filmes, ouvi a seguinte fala: “não faz sentido colocar em vídeo aquilo que poderíamos ver ao vivo”. E eu elaborei essa ideia em meu dia 2. Era uma vez e sentia minha cabeça contra a parede. Dois pra lá, dois pra cá e deixava o celular cair de minha mão. Ainda é o mesmo vídeo? As experimentações se mostraram como elemento fundamental para o real encontro entre as linguagens (o vídeo e a dança), ou seja, para o vídeo-dançar. Efeitos, ângulos, cortes, repetições, silêncios... que tal Conversas de jardim? Afinal, não me venha com um boi se podemos ornitorrincos. Dançar no vídeo versus vídeo-dançar. E por alguns instantes desconfiei daqueles que nem conheço, mas que pronunciam “participei de um vídeo-dança, fiz um vídeo-dança” quando poderiam apenas declarar “vídeo-dancei”. Pareceu-me que é a isso que o vídeo-dança convoca, convida: à invenção, inclusive, de um novo vocábulo, só pra início de conversa. Utilizar um outro verbo para acompanhar a expressão “vídeo-dança” é se colocar de fora, quase na insignificância de um apêndice que, como dizem, só serve pra dar problemas... E isso, de alguma maneira, explicou-me um pouco do abismo que muitas vezes se impõe entre mim e as produções contemporâneas: vivo a indiferença não somente porque me afastam ou afasto a mim mesma, mas porque seus criadores estão afastados, distantes, ausentes. E aí, sabemos, vira representação, contação de história, só que dessa vez mal feita porque não desejou existir assim.

A sessão foi encerrada com o documentário DanzaSur, de Tamara Gonzalez (2015), sobre o estado da dança contemporânea na América do Sul. Descolonizar, criar, inventar, produzir, descobrir... É o que temos para o hoje e certamente para o sempre.

 

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* As palavras que dançam são títulos de curtas.

Heron Sena reverbera Barrela

Querido Pretato,  por Alex Simões

O solo Isaura Suélen Tupiniquim Cruz não parte exatamente da pergunta que nomeia o projeto “Como ser guru de si mesma?”, mas do desejo de criar dramaturgias a partir desses nomes que formam um nome, o qual ao longo da vida me pareceu chamar atenção das pessoas por imprimir ou sintetizar uma imagem de brasil colônia pop sincrética, tendo para isso três eixos de passagem que seriam a dança, o show e o desfile, como ambientes que pudessem ser movidos por modos distintos de existir num mesmo corpo e no espaço. O nome do projeto tinha muito mais a ver com o modo de operar no processo compositivo, ou seja, o que de mim é tantos outros e como fazer disso um saber sobre si, sendo um projeto de criação de solo com direção de Leonardo França e colaboração de Sheila Ribeiro.

 

E quando você diz que só escolhemos mostrar dois caminhos para construção do solo fazendo uma comparação de materialidades que não se diferenciam, nesse caso, meu nome e nome do trabalho, eu não entendo muito bem... Me parece que fomos coerentes com o que foi possível durante o processo onde a contradição da materialidade do nome e as autoficções interessavam mais do que os recortes autobiográficos, de modo que o que apresento são variações de mim a partir de um corpo, de um repertório dentro de recortes culturais, subjetivos, econômicos, temporais, etc, que estão ali, mesmo nas suas delimitações, agindo no campo dos possíveis, ou das possíveis Isauras, Suélens, Tupiniquins e Cruzes que aparecem como índia gueixa cyber, manequim modelo cantora de samba funk rock, do campo ou da cidade, engajada e fútil, densa e leve, precária e privilegiada, feminina masculina, marginal, diva, pop...

 

É importante lembrar que as parcerias feitas nesse trabalho, o constituem. Leonardo França, que é criador da obra junto comigo e tem papel fundamental desde as referências trazidas por ele, como ele mesmo como multi artista baiano como eu, instaurando os procedimentos para processo de criação. Sheila Ribeiro que colaborou durante o processo tem uma trajetória respeitável como artista e pesquisadora de dança, moda e antropologia comunicacional. Além dos parceiros Antenor Cardoso e João Meirelles, que pensaram a trilha, outros amigos que acompanharam mais de perto o processo me ajudaram a selecionar o que dessas auto representações seria mais explorado.

Rebate à crítica "Manequim" de Laís Machado

Por Isaura Tupiniquim

por vezes alguns estranhamentos transitórios até configurar a Suélen Cyber Nikin Cruz.

 

E aí, respondendo um pouco as suas perguntas... Acredito que uma obra, qualquer que seja, já é um mapa em si, uma cadeira já é um mapa que lhe dá forma, materialidade, memória, função etc. Então, criar algo que proponha ao outro um olhar múltiplo diante do que ele vê é solicitar uma generosidade do olhar do outro para multiplicar ainda mais as variações criadas pela obra com a imaginação e os referenciais de cada um sobre a coisa. Assim cada imagem das diversas Isauras Suélen Tupiniquins Cruzes que surge pode variar com os contextos, mas partindo, como tudo na vida, de algumas restrições a começar pelo meu corpo, a direção, o espaço, o tempo, o momento histórico... E penso que nesse trabalho a linguagem seja bastante familiar mesmo, mas prefiro não buscar a origem das coisas.

 

Quando você diz que “as tentativas de borrar os contornos identitários” são feitas pelas trocas de roupas, etc, você esquece de avaliar a coisa mais importante pra mim ali que é a corporalidade, as sutis mudanças criadas no modo de se mover, de se relacionar com as trocas, de friccionar a modelo com o mano, o meu corpo orgânico e inorgânico, o curto-circuito de personas que associo como movimento no diálogo com bateria no desfile da roupa azul, por exemplo. Ou quando me sento para comer banana e o modo como imprimo um jeito de me curvar de sentar de mastigar de olhar... O modo como eu canto e as escolhas das músicas...

 

E nesse trabalho, como já disse antes, não há problema em a imagem inicial não ter nada a ver com a seguinte ou com o fim, a coerência como lei só nos interessa se conseguirmos reforçar as contradições como lei que se expressam no meu nome, no seu nome e no que constitui esses brasis.

O desenho dramatúrgico em ISTC vinha sendo criado para finalizar com a roupa de laser, mas entendemos que outros momentos precisavam ser tão importantes quanto este em que o efeito é tão impressionável e artificial. Pra nós, ficou cada vez mais presente o desejo de terminar de modo menos místico e mais cru com um toque de samba que é essa coisa da tristeza alegre que nos deixa com um pouco mais de esperança. E acho que aí entra um outro recorte impossível de eliminar que é minha existência de América do Sul e Nordeste no momento em que se encontra o Brasil. Não tem como passar por cima disso, então pra mim, não quer dizer cumprir nada, mas manifestar mais uma vez o que está em mim como um mix de revolta, medo e esperança diante do eterno retorno do brasil colônia que é de onde eu falo.

 

A mudança de nuances e atmosferas do trabalho podem ter te dado à impressão de um momento de “informalidade” de um jeito recorrente na arte contemporânea, acho que essa pode ser sua leitura, mas isso realmente é o que menos nos interessa nesse trabalho, onde exploramos sem medo os excessos, as possibilidades da cena, do show, do desfile. Não houve durante o processo e também acho que não apareça na configuração nenhum desejo de imprimir uma ideia de neutralidade.

 

Bem, tem um momento do seu texto que pra mim é bastante difícil de compreender, porque não consigo me situar na obra a partir da sua descrição. É o momento em que você diz que começou a “ler coisas”, mas que as “roupas sempre pareciam pedaços de pessoas”. Sim, isso também me ocorre, principalmente quando elas saem do formato passarela do primeiro momento e ficam espalhadas pelo espaço caotizando o ambiente depois do meu giro com todas essas peças sobre a cabeça. Esse momento pra nós tem haver com memória, moda, morte, ritual e sim, aquelas roupas pelo chão podem ser pedaços de pessoas e de eus, um campo de guerra com estilhaços...

 

Nesse mesmo parágrafo você continua, numa perspectiva bastante apressada, afirmando que carrego roupas de um lado para o outro dando vida a algumas e outras não. Não sei se te acompanho, mas imagino que esse seja o momento após o giro em que componho a Suélen. E esse é o único momento onde brinco de colocar e tirar peças de roupa e com mais velocidade justamente para criar as variações dramatúrgicas necessárias ao trabalho criando

Na atual conjuntura política, a comunicação parece estar cada vez mais rarefeita e o campo artístico é, ou deveria ser, um terreno favorável para a experimentação de outras formas de diálogo. Geralmente, e não é diferente na atual condição política brasileira, os artistas se desassossegam, analisando e tentando organizar da melhor forma o seus discursos poéticos. Seja a partir da sede de explorar outras configurações de relação estética ou se preocupando, a partir de uma versada convenção, com a máxima clareza de sua expressividade. Claro, deve existir quem se neutralize, quem se mantenha imóvel (por medo ou por simples alienação) com a atualidade que lhe demanda ação. Mas a improdutividade nunca será uma porta saída.

 

 A 12ª Edição da Revista Barril traz para o debate essas questões poéticas e políticas, e as proposições estéticas que são fomentadas a partir dessas problemáticas contemporâneas: o símbolo, a utopia, a arte contemporânea, a representatividade e a ética política, colocando em questão os modos de comunicação da chamada arte contemporânea e a necessidade de diálogo honesto com o momento conturbado em que vivemos.

 

Discurso poético e política têm seus

Gusmão, coletivo formado por estudantes negros da Escola de Teatro da UFBA. De quebra, Heron Sena pergunta Quem Está Preso Agora?, sua reverberação do espetáculo Barrela, direção de Nathan Marreiro, na Coluna REVERBERA, propondo uma experiência que, ao mesmo tempo que flerta com o jornalismo, possuí um tom poético-profético. 

 

Já Igor de Albuquerque produz um texto sagaz na Coluna CRÍTICA DA CRÍTICA, O Ritmo do Nada. Igor lança o seu olhar sobre o editorial da recente revista de crítica em artes cênicas, a curitibana Bocas Malditas.

 

Por fim, ficamos com o ENCONTRO descontraído entre Laís Machado e Mari Buente (publicitária, musicista e técnica de som).  Mari expõe a problemática de ser mulher e técnica de som, área bastante masculina e, por consequência, machista. Neste Encontro, há uma convocação, não só para os profissionais dessa área técnica, como também para diretores musicais, encenadores e produtores da área cênica, em analisar com mais empenho este problema.

 

É isso!

 

Mais uma edição Barril pra vocês.

entrelaces nas CRÍTICASSilêncio, de Diego Pinheiro, sobre Entrelinhas, obra da performer e dançarina Jack Elesbão e Manequim, crítica de Laís Machado sobre a obra Isaura Suélen Tupiniquim Cruz, da performer e dançarina Isaura Tupiniquim, que também produz o seu REBATE a crítica. Podemos encontrar essas reverberações na SELFIE Vídeo-dançar, de Bárbara Pessoa, sobre o FºDA – Festival Ornitorrinco de Dança Audiovisual, evento realizado pela Deslimites Mediações Artísticas. Ambos os textos colocam uma lupa sobre a atual cena da dança contemporânea em Salvador.

 

Nos textos Fantasias Revolucionárias, Sobre Asas Extirpadas ou Como Ícaro Até Que Tentou e Querido Pretato, respectivamente compostos por Daniel Guerra, Matheus Menezes (colaborador do mês) e Alex Simões. Podemos identificar as constatações políticas tratadas na obra (exposto por Matheus, na Coluna RIZOMA, a partir do espetáculo Ruína de Anjos, da Outra CIA de Teatro), à estranheza quanto as narrativas engajadas que atingem os níveis de comercialização (como vemos no ENSAIO de Daniel Guerra), bem como a ânsia por um conteúdo político e de enfrentamento institucional como analisado por Alex Simões, na Coluna TRETA, ao dissertar sobre o Pretato, projeto realizado pela Organização Dandara

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