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CRÍTICA Diário Rosa: Um caso de urgência
REVERBERA Tâmara Lyra
Crítica -Dentro do contêiner - O contentor - O contêiner
CRÍTICA DA CRÍTICA - Portal pro agora
RIZOMA - (De)Formaçãi de Quadrilha
ENCONTRO com Pisit Mota
ENSAIO O Direito de Interpretar Hamlet
SELFIE - CAbaré
TRETA - Então Falemos das raposas reais
Rebate -Larissa Lacerda

junho

V.2 n.4 2017

Dentro do Contêiner, Por Igor de Albuquerque

Foto de Andrea Magnoni

EDITORIAL

A videomaker, artista visual e performer Tâmara Lyra reverbera o espetáculo de rua "Belas, Arretadas e Fora da Casinha", apresentado no mês de junho, no Rio Vermelho.

Igor de Albuquerque encontra o humorista Pisit Mota.

Diário Rosa: Um caso de urgência, Por Agueda Tavares

Rebate à Crítica "Diário Rosa: Um caso de urgência", de Agueda Tavares

Portal para o agora, Crítica da crítica do site Farofa crítica,

por Bárbara Pessoa

(De)Formação de quadrilha, por Alex Simões

Igor de Albuquerque encontra Pisit Mota

O direito de interpretar Hamlet, Por Paulo Raviére

Cabaré, Por Laís Machado

Tâmara Lyra reverbera Belas, Arretadas e Fora da Casinha

Então falemos das raposas reais, por Daniel Guerra

Por Águeda Tavares

O Diário Rosa: um caso de urgência

O projeto Diário Rosa inclui 5 eventos, criados com base na temática da violência contra o gênero feminino e promovendo diálogos com outras linguagens a partir das propostas: Diário Rosa - Teatro; Carta Branca - Performance; Meu Assédio Diário - Instalação; exibição de curtas e bate-papo- artes visuais e show da banda Las Marditas - Música. Um belo reencontro de mulheres para falar sobre estratégias, outras perspectivas, e mais um exercício de alteridade em relação a outras poéticas. Esta crítica fará o recorte apenas do espetáculo Diário Rosa, que ficou em cartaz no Teatro Gamboa Nova.

As mulheres que se engajaram nesse projeto inspiraram-se no Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, nos relatos de outras mulheres e, a partir dos referidos recortes, propuseram uma imersão nesse espaço biográfico que traz, em sua ética de relação com o espaço, apenas mulheres no coletivo, uma estratégia de representatividade que tem se multiplicado nas iniciativas artísticas de Salvador, como podemos observar, principalmente de 2015 para cá, impulsionadas pela primavera feminista no Brasil. e em consonância com os movimentos de ativismo digital através de hashtags nas redes sociais: “Eu Não mereço ser estuprada (#EuNãoMereçoSerEstuprada)”, “o corpo é meu (#Ocorpoémeu)”, “Primeiro Assédio” (#PrimeiroAssédio) etc.

O espetáculo foi direto quando enfatizou, logo depois da abertura, que a urgência em falar mais uma vez sobre o tema do assédio e do abuso sexual foi um dos impulsionadores para a cena. A partir dessa informação fui fisgada por essa palavra urgência, tão pulsante nas militâncias, nas redes sociais, e nas manifestações artísticas  contemporâneas de cunho  identitário.

A palavra desdobrou-se em pelo menos três significados ao longo do espetáculo:

1.    A urgência sobre o tema que está posto;

2. A urgência da representatividade das mulheres nos espaços de poder, nas narrativas e no discurso feminista da cena;

3. A urgência da encenação, assumindo a performatividade como estética e colocando o que a dramaturgia do espaço propunha em segundo plano. Julguei ter sido urgência, mas pode ter sido escolha mesmo.

Contudo, suponho que a urgência-escolha de não se utilizar efetivamente da dramaturgia do espaço para lidar com a urgência do tema, que, por sua vez, impulsionaria a subversão que há no discurso proposto, tenha sido um dos fatores que nos colocaram como espectadores, receptores do discurso. Qual espaço foi proposto para o engajamento dos afetos do público? A urgência do jogo e do risco dessa relação não prescinde da unilateralidade?

Fui ao espetáculo com minha filha e reconhecemos muita gente entre os presentes, o que nos aproximou ainda mais das histórias e das cenas propostas. Quantas daquelas mulheres tiveram suas histórias contadas ou

As meninas voltaram para o palco e se sentaram, esperando aquele clima passar. Uns sorrisos meio amarelados, uma breve conversa e mais aplausos. O que o público de artistas, ativistas, familiares e amigos (visto que era uma estreia fechada para convidados) aplaudiram? Poderíamos ter saído com o silêncio e com essa cor rosa desfigurada, o rosa do início foi mais forte do que o relato final?

pretensão em ser, mas se descobriram sendo, ganharam visibilidade em Salvador do ano passado pra cá. Lugares como a Barabadá, Burlesque, Casa Antuak, Casa de Castro Alves, Casa Monxtra, Casa Preta, Coaty, Espaço Lalá, Galeria Entre, Largo da Mariquita e tantos outros a que não tive acesso ainda, nas periferias e fora de Salvador, têm revelado outras potências de poéticas. Não quero dizer com esse pequeno panorama que apenas os lugares “alternativos” têm potência ou são a fonte genuína da arte experimental e de outras poéticas, mas quero destacar como a dramaturgia desses espaços não está, na maioria dos acontecimentos, separadas do evento. E os teatros que são constantemente resignificados? A exemplo do teatro do Centro Cultural da Barroquinha e o Teatro Gregório de Matos. Os solos baianos do grupo NATA e do grupo Base colocaram em xeque os formatos de gênero, de performatividade, de espaço cênico e estado de presença. Chegaram de avalanche e de galera com as urgências todas.

Descobrir as potências e as reais motivações da vida, da cena, é um trabalho muitas vezes às cegas. O Diário Rosa é um espetáculo que nos toca de cara pela afetividade, desde o convite no Facebook até o compartilhamento de algodão doce e pipoca durante o espetáculo. É muito produtivo esse encontro com mulheres de várias linguagens artísticas para abordar as particularidades e outras estratégias poéticas, mas enquanto artistas, artivistas, militantes, estudantes, temos sempre que fomentar a criticidade das vertentes e das formas de produção dos espetáculos feministas e sobre o caráter das urgências para não reproduzirmos padrões que tentamos modificar.

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 Referências

http://esquerdasocialista.com.br/juntas-a-primavera-feminista/

Hilst, Hilda. O Caderno Rosa de Lori Lamby. Ed- São Paulo: Globo, 2005.

MALCHER, Beatriz Moreira da Gama. A Crítica, moral e espetáculo: o caso do feminismo digital. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro 2016. Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Comunicação em Cultural- UFRJ.

espelhadas nas cenas? No começo, o norte de ironias e posturas do ser mulher para o senso comum nos preparava a bílis para as histórias das crianças que viriam logo em seguida.

A minha relação com o espetáculo foi se estranhando quando as cenas mais densas de violência foram se intensificando, não pelas narrativas em si, mas pela sensação de que, talvez, a estrutura que estava posta não teria vazão ali dentro do teatro e que seria invariavelmente quebrada pelos aplausos.

Logo após o último relato, de uma violência extrema, veio o blecaute. As atrizes cantaram, quase acalentando aquele eco de narrativa que pairava; entretanto, a dimensão posta foi execrada pelos aplausos retumbantes. As meninas voltaram para o palco e se sentaram, esperando aquele clima passar. Uns sorrisos meio amarelados, uma breve conversa e mais aplausos. O que o público de artistas, ativistas, familiares e amigos (visto que era uma estreia fechada para convidados) aplaudiram? Poderíamos ter saído com o silêncio e com essa cor rosa desfigurada, o rosa do início foi mais forte do que o relato final? Ou nada disso de rosa tem a ver com a questão, estamos no teatro e a convenção imperou. Ou, nesse caso, se a convenção imperou sobre o que foi feito, qual a responsabilidade - estratégias das artistas sobre o engajamento dos afetos? Qual é o pacto que se propõe ao público? Essas questões foram relevadas na construção do espetáculo? O aplauso ou qualquer interação com o público ainda são questões relevantes para o espetáculo.  Como interagir com a dramaturgia do espaço do teatro Gamboa?

Já que entramos nessas questões poderíamos refletir também acerca da representatividade do próprio teatro Gamboa Nova, um teatro pequeno, com uma estrutura confortável para qualquer instalação, acessível ao público do Centro. É um teatro realmente conveniente e aconchegante onde outra convenção, além do aplauso, que é a regra geral, está se instaurando: o de justificar a “urgência” ou a “performatividade” verbalmente em cena. Vi outro espetáculo que também fez essa escolha. Onde estaria a urgência desse espaço para que não precisássemos de outros artefatos na comunicação com o público?

 

O assunto que quis abordar com isso foi a escolha das urgências e espaços de vazão para o que urge. Quando estamos em processo de criação muitas vezes entramos no caos ou criamos porque já estamos nele. O processo criativo torna-se mais revelação do que autoria, muitas vezes. O lugar da criação é um elemento  fundamental na construção/ desconstrução de qualquer obra; parece óbvio, mas não é. Enquanto não assumirmos o espaço como parte fundamental do discurso cênico, seja ele qual for, estaremos com as pernas quebradas e procurando apoios onde não há.

Como podemos observar, os pontos “culturais” que ganharam mais visibilidade ou nasceram de iniciativas que até não tinham tanta

Agradeço à Barril por proporcionar este espaço de diálogo sobre o nosso fazer artístico, nesta outra esfera, a da crítica. Recebi a proposta de Águeda Tavares para “fazer o rebate” à sua crítica sobre O Diário Rosa. Considero a palavra “rebater” menos potente do que “dialogar”; portanto, seguirei no exercício do diálogo a partir das questões levantadas pela autora supracitada. Lembrando que as criadoras do Diário Rosa são muitas e eu, Larissa Lacerda, represento uma dessas vozes.

O convite inicial que resultou na rede do Diário Rosa foi:  construir um espetáculo teatral centrado nas questões do assédio e do abuso sexual que partisse de uma imersão no “espaço biográfico”. E, fora isso, tivemos O Caderno Rosa de Lori Lamby como um inspirador imagético e poético do modo como operaríamos diante do material que seria levantado. Quando começamos o processo de criação do Diário Rosa, ou a “abertura dos diários”, sabíamos do desafio que seria, em primeiro lugar, lidar com nossas memórias, memórias de pessoas queridas, e também, memórias de mulheres até então desconhecidas: memórias de dor, memórias escusas, apagadas, violadas: terreno feito de escombros, espaço nebuloso. E descobrimos que lidar com essas diversas memórias era como assistir a um filme como Dançando no Escuro repetidas vezes... e muitas vezes fizemos a escolha de não assistir... Porque todos os dias, depois de nossas rotinas cansadas e repletas de assédios diários e de submissões e dos velhos jogos de cintura, não queríamos mais repetir. Descobrimos que precisaríamos de afeto. Porque estávamos levantando a poeira de muitas e muitas mulheres, e nossas próprias poeiras. Nos cuidar, nos proteger, nos acarinhar era preciso. Era necessário. Não deixaríamos de mexer na ferida, de remexer, porque é preciso, mas o que ficou mais forte é que precisamos nos confiar, nos fortalecer, nos reconciliar, nos amar. E tudo foi feito com muito amor. Queríamos levar isso adiante na cena.

Não entendo bem o que Águeda tenta colocar sobre uma “possível” “dramaturgia do espaço”, nem o que quer dizer com a utilização de “artefato”. Gostaria de ter visto mais uma leitura crítica sobre o que apresentamos dentro das escolhas que fizemos e menos a expectativa da crítica sobre o que acredita que poderíamos pensar ou fazer. E isso me marcou bastante durante a leitura, porque li curiosa tentando encontrar o Diário... Mas um “termo” tomou muito espaço na sua escrita de modo que ficou impossível ignorá-lo. A noção de

Rebate à crítica "Diário Rosa: Uma questão de urgência" de Águeda Tavares 

Por Larissa Lacerda

convenções são convenções... Elas permanecem mesmo na transgressão. E aplausos aconteceram... e não aconteceram em alguns dias... foi pensado, repensado e previsto. É estranho? Depende... e me fiz a mesma pergunta: o que as pessoas aplaudem? Mas aí é o “outro”, e ele carrega aquilo da imprevisibilidade. Algumas mulheres vieram falar comigo, logo ali, enquanto eu aguardava a saída da maioria para abrir o fosso e fazer a limpeza do palco para o dia seguinte: algumas falaram sobre “coragem”, outras sobre “necessidade”, outras só choravam abraçadas comigo, outras desejavam “força”, choravam um pouco mais, com a certeza de que aquelas histórias eram nossas, ou que podiam ser, ou talvez, simplesmente, por se sentirem identificadas pelas narrativas. Mulheres conhecidas e desconhecidas... lembro de uma que voltou com uma sobrinha, um sobrinho e a filha; outra mandou o filho para, sei lá... Mas algumas sentiram que poderiam compartilhar suas histórias comigo, ali mesmo, no final do expediente. Que pena que não podíamos nos estender para uma troca aberta, para “terminar” como começou, só que com outros corpos, outras relações: “intimidade”? Parece que aquele espaço pequeno e aconchegante do Gamboa criava uma sensação de intimidade. Ou o próprio desenrolar formal das narrativas, relatos, ou a forma como nos dirigimos ao público, ou tudo junto? E me faço outra questão: será que através de efeitos de real num espaço ficcional conseguimos criar um pacto público de intimidade? Era um dos objetivos iniciais. Será que seria possível uma abertura para troca de relatos como continuidade do espetáculo... Uma diluição das nossas vozes? Gostaríamos de experimentar isso. Cabe no Diário Rosa. No entanto, dentre outras questões, temos problemas estruturais em Salvador que transcendem o Gamboa Nova: transporte, segurança, por exemplo e, por outro lado, o financiamento que pudesse bancar uma equipe sem hora determinada para o “fim”.

No final das contas, penso que, para nós, essa pode ser uma chave de leitura: a intimidade pública. Mas são cenas do próximo capítulo. Acredito em trabalho em processo e na estrutura dinâmica que esse tipo de teatro nos permite: ver o trabalho maturar, mudar, e sim, se transformar, principalmente depois que ele se encontra com o “outro”, o público. Há sempre algo de imponderável no que fazemos e a nossa melhor recompensa é poder vê-lo reverberar por aí. Espero, minha cara Águeda e minhas queridas e queridos da Barril, que tenhamos a oportunidade de elaborar mais e mais por aqui e por aí. Grata pelo presente.

“dramaturgia do espaço”, no meu ponto de vista, foi trabalhada com certa imprecisão. Por exemplo, na questão “Como interagir com a dramaturgia do espaço do teatro Gamboa”? Na tentativa de chegar perto dos anseios da crítica com relação a essa questão (dentre outras suscitadas pelas mesmas reflexões), posso dizer o seguinte: penso que escolher um espaço não-convencional ou convencional para desenvolver um trabalho não define o discurso proposto pelo trabalho. Nesse sentido, acredito que a forma como nos utilizamos do espaço pode nos revelar outras camadas de significação, mas não determiná-las. Concordo que podemos potencializar os discursos provocando outras formas de “jogo” ou de experiência com o público. Mas não concordo que jogar com o convencional resulte determinantemente em uma relação unilateral. Se eu pensasse assim, deixaria a literatura e o cinema de lado, por exemplo. Por outro lado, eu, particularmente, gosto dos “artefatos” técnicos que um teatro pode proporcionar. Gosto de assumir uma ficção e jogar com “efeitos de realidade”. Mas tudo é pesquisa, possibilidade e necessidade do momento. Se poderíamos utilizar o espaço do Gamboa de outra forma, por exemplo? A falta de contato com o espaço durante a criação acaba sendo fator importante para os caminhos do trabalho. Contudo, a resposta poderia ser “sim”, poderíamos, mas o que surgiu dos laboratórios e da sala de ensaio foi determinante para que estabelecêssemos aquele formato. Logo adiante aprofundo nisso um pouco mais.

Sobre a ida para o Gamboa: escolhemos o Gamboa e o Gamboa nos escolheu e nos acolheu. Pedimos a pauta e ganhamos a possibilidade de ocupar o teatro inteiro. Vimos nisso uma oportunidade de ampliar a discussão. E ampliamos. Queríamos a troca e tivemos. As outras atividades citadas pela crítica aconteceram: tudo sem subvenção, sem patrocínio (como vem acontecendo em tantas produções na nossa cidade); com vontade, necessidade e coragem. E fundamentalmente pela união de muitas mulheres que têm muito para dizer. E precisamos dizer! E sim, concordo com a leitura feita pela crítica, há um formato previsto pelo espaço do teatro. Há uma convenção. E a proposta era lidar com a convenção. E também estabelecer outras. Uma das coisas que aprendi e compreendi um pouco mais com o fazer teatral: a sociedade é feita de convenções. E no caso do Diário, nós, desde o princípio, resolvemos olhar de frente para todas elas, quando resolvemos, especialmente, colocar no “altar” do teatro, o palco, aquele excesso de Rosa. Lá colocamos as convenções que queríamos transgredir. Mas

Por Bárbara Pessoa

Se tem uma coisa que favorece a permanência de um visitante em qualquer site é a facilidade da navegação. O portal Farofa Crítica, de Natal (RN), apresenta já em sua página inicial o conteúdo que produz e que deve em primeiro lugar ser acessado: fotos de eventos cênicos com um botão central “leia as críticas”. Do que se trata o projeto, quem são os farofeiros, os festivais que já cobriu e o meio para contato podem ser explorados caso se deseje, mas o convite primeiro é bem claro: leia as críticas.

O site foi inaugurado em dezembro do ano passado e desde então é alimentado toda semana, por seis críticos em revezamento, com textos sobre eventos oriundos da programação natalense, mas também de festivais de outras regiões do Brasil.

A descrição do projeto já anuncia que o Farofa Crítica surge “num cenário deserto de críticas nas áreas de teatro, performance e dança”, apesar de serem as artes cênicas umas das mais organizadas no estado, segundo o Tribuna do Norte, que acrescenta: “a crítica tem papel importante no amadurecimento artístico do segmento cultural”.

 

Parece ser um consenso, no âmbito da conversação, a relevância da crítica para o desenvolvimento daquele domínio sobre o qual lança seu olhar. Quando o assunto está no campo do abstrato, ou seja, quando não se refere a nenhum crítico especificamente, mas à crítica em geral, não consigo vislumbrar uma roda de conversa na qual uma das opiniões seja: “a crítica não deve/ria existir, a crítica não faz sentido” etc. Ao mesmo tempo, aqueles que se arriscam em adotar uma “atitude crítica” diante de qualquer “produção de pensamento” (definição de arte dada por Heloísa Sousa do Farofa Crítica) nem sempre é visto com bons olhos, sabemos.

Certamente em função desse paradoxo, o crítico, isto é, aquele que ousa suspeitar, recusar, questionar um discurso afirmado em determinada obra, tende a argumentar sobre seu trabalho em um tom quase de defesa: “Não estamos aqui para falar mal de ninguém; fazemos isso com respeito aos artistas, às obras; o objetivo é dialogar etc.” Quando, na verdade, esses propósitos já serão inevitavelmente revelados na própria produção crítica, o que deveria poupar o crítico das justificativas prévias, afinal, se a crítica deve lançar questões, sabemos que perguntar não ofende. O Farofa Crítica, a par dessa realidade, finaliza sua descrição: “Lançando nossos olhares, corremos riscos de colher sentimentos. E é para correr riscos que existimos”.

Ao que parece, um cenário deserto de crítica, no qual a mesma é

Portal pro agora

Ao que parece, um cenário deserto de crítica, no qual a mesma é exaltada em teoria, porém pessoalizada na prática, não é uma particularidade de Salvador. Assim como não são infundadas as suspeitas lançadas pelos artistas àqueles que se põem a criticar; afinal, muitos críticos ainda estão mais preocupados em (des)qualificar uma obra a partir das verdades que sustentam seus corpos cansados que levantar questões, construir pontes ou iluminar bordas.

Foto de Lucas Emanuel

exaltada em teoria, porém pessoalizada na prática, não é uma particularidade de Salvador. Assim como não são infundadas as suspeitas lançadas pelos artistas àqueles que se põem a criticar; afinal, muitos críticos ainda estão mais preocupados em (des)qualificar uma obra a partir das verdades que sustentam seus corpos cansados que levantar questões, construir pontes ou iluminar bordas.

A despeito da maneira por vezes descritiva de se relacionar com os espetáculos, o Farofa Crítica possui um frescor na maneira de se comunicar que funciona como um eficiente chamado à curiosidade pelo portal. Não me refiro apenas à estrutura do site em si, mas também às obras que os críticos escolhem examinar, ao tom que dão às suas críticas, bem como às questões eleitas para reflexão. Tanto as obras (as que pude conhecer a partir das críticas) quanto o tom, como as questões se cunham na expectativa pelo diálogo, pelo encontro, ainda que discordante. E o frescor do Farofa Crítica, analisando os três pontos que trouxe, reside em não mais se apoiar em qualquer verdade que seja, mas, ao contrário, na puerilidade de quem estende a mão.

O debate sobre a contemporaneidade e o modo contemporâneo de criticar aguçam o interesse pela cena de Natal – cena tão pouco considerada e que ao mesmo tempo se mostra tão potente, como acontece, é bem verdade, com todo o horizonte das artes cênicas no Norte e Nordeste: verdadeiro portal para o agora aviltado pela remota esqualidez do que chamam de eixo.

O bom de ser honesto

é que a concorrência é pequena.

(Marcos Castelhano, “Love Songs”, A Tarde FM)

 

Nas vésperas do São João, os caminhos que levam ao Teatro Martim Gonçalves estão tomados por um tipo de burburinho que só floresce nessa cidade. Ao longo das ruas comerciais do centro, crianças e sacolas de compra disputam os braços de mães apressadas, enquanto feirantes disparam berros a quilômetros de distância, provocando insistentes revoadas de pombos. Robôs de brinquedo coabitam com bombinhas juninas e cachorros teimam em pedir a última parte do milho cozido ao cidadão saciado. Sinal fecha, sinal abre, e os corpos se arremessam de um lado a outro das ruas, passando tão perto dos carros que parece milagre não produzirmos diariamente dezenas de mutilados.

Em meio a essa geleia geral desponta a brancura fuliginosa da Escola de Teatro da UFBA. Guardado em seus muros está o Martim Gonçalves, teatro à italiana de proporções consideráveis. Sobre o palco impõe-se uma imensa sala de estar à moda antiga. Ali estão as paredes altas cobertas de cores pastéis, um janelão que dá para um jardim imaginário, uma lareira de onde arde um fogo cenográfico (brando), uma escadaria, umas cinco cadeiras acolchoadas em veludo, um tapete e um ou dois abajures de mesa. Enfiados em vestidos longos e paletós costurados sob medida, os atores de Harildo Déda sobrevivem graças à invenção do ar-condicionado.

 

Como em grande parte dos textos realistas, As Pequenas Raposas acompanha a decadência moral de uma família burguesa, neste caso os Hubbard’s, habitantes do sul estadunidense.

Montar uma peça realista, de maneira realista, sobre uma sociedade e uma época radicalmente distintas das nossas, jamais constituiu um problema fundamental. Se o fosse, não viveríamos tão intensamente o fulgor de certos romances fantásticos ou filmes sci-fi. Mas a capacidade de comunicação dessas histórias está justamente naquilo que ultrapassa sua condição alegórica, preservando ao mesmo tempo a distância tranquilizadora da representação. Isso explica o sucesso de The Little Foxes, tanto nas telas de cinema quanto nos teatros da Broadway.

O cinema tem o realismo por essência, como defendia o crítico francês André Bazin[1]. Tanto que se chega a ele por subtração: retira-se cenários construídos, elege-se uma locação real; retira-se a empostação na voz, assume-se a proximidade do close-up. Já no teatro, o realismo é alcançado por adição: no palco vazio um enorme cenário é erigido; o fogo na lareira vem de um refletor; a voz deve soar “natural”, mas empostada o bastante para que chegue às últimas fileiras. Curiosamente, o realismo teatral só é conquistado através de uma rigorosa artificialidade. Por isso, ao fazê-lo, deve-se ter em mente a supressão da distância entre a peça e o espectador, quero dizer, o caminho que este terá de percorrer entre a assimilação da informação exposta e a vivência pessoal da história fabulada. O realismo necessita, mais que qualquer outra forma estética, de uma poderosa relação de confiança e identidade, na qual a imagem refletida no espelho seja tão fiel que nos ponha assustados. Tal pacto é o que faz chegar em todos os cantos do mundo a Rússia de Tchekhov e o Alabama de Hellman, o Brasil de Plínio Marcos e a Noruega ibseniana.

A saga Star Wars, por exemplo, nos leva facilmente a galáxias distantes. Nela podemos sentir (e compreender) as paixões de um robozinho que só se comunica por apitos. O mesmo se dá em Borges, seja quando evoca uma Buenos Aires cósmica ou certos sonhos labirínticos que nunca imaginaríamos ter. É assim que os Hubbard’s do Alabama podem soar a nós, brasileiros, tão familiares quanto os Flinstones ou tão desconhecidos quanto os nossos vizinhos de porta, dependendo do tratamento que se dê ao traço alegórico intrínseco a qualquer fabulação.

Mas Harildo e sua equipe deslocam a peça do seu contexto original como quem desloca o tacape de um índio às galerias de um museu. Nesse movimento, tão cuidadoso quanto desastrado, sacrificam o brilho da vivência direta do realismo, e o que resta em nossas mãos é a mera alegoria esquelética, pretensamente desejosa de abordar temas que a mídia espontânea e o jornalismo contemporâneos exploram com muito mais rapidez e sagacidade. Aqui, a distância do processo de tradução, que deveria ajudar-nos na passagem da fábula para a vivência pessoal, é grande demais. É com muito esforço que o espectador deverá passar as duas horas e meia de espetáculo tentando capturar qualquer fagulha de identificação com aqueles personagens, interpretados por atores baianos fazendo de conta serem norte-americanos, quando no fundo são

Por Daniel Guerra

ENTÃO FALEMOS DAS RAPOSAS REAIS 

Sobre o espetáculo “As Pequenas Raposas”

Mas essas ideias são apenas fantasmas, assim como todo o resto; já estão bem mortas, apesar de se quererem atuais. Elas só funcionariam dentro de uma estrutura vibrante, que fosse política em si.

Foto de Diney Araújo

assediados por pequenos e constantes espasmos de nordestinidade que, à revelia da formalidade empolada, explodem aqui e ali como espíritos malignos a tomar posse de um crente no meio do culto. Uma repressão que não resulta apenas dos vestidos longos, dos paletós e do pó no cabelo simulando o tom grisalho, mas da concepção geral, tomada em seus detalhes.

Segundo o diretor, "é importante montar” a peça “neste ‘tempo de homens partidos’, para tratar sobre as raposinhas de nosso tempo: corruptas, racistas, misóginas”[2]. É certo que o texto traz referências diretas ao estado de coisas capitalista, escravocrata e patriarcal. Na verdade, são essas estruturas que provocam os seus famigerados sintomas: “corrupção”, “racismo” e “misoginia”. Mas nessa produção a incongruência entre o texto e a cena é flagrante, o que se torna ainda mais grave pelo uso injustificado de um recurso brechtiano que, sempre que surge, interrompe a peça de forma brutal. Então, o que serviria para aproximar termina afastando ainda mais: sempre que um personagem fale uma coisa que, aos olhos da encenação, “sirva de lição” à nossa sociedade atual, ele virá para a frente, olhará para a platéia, e, iluminado por um círculo branco, soltará aquela opinião que supostamente deveria nos afetar, nos fazer refletir, conscientizar ou revoltar. Mas essas ideias são apenas fantasmas, assim como todo o resto; já estão bem mortas, apesar de se quererem atuais. Elas só funcionariam dentro de uma estrutura vibrante, que fosse política em si. Por isso não podem ser destacadas e transformadas, sozinhas, em manifestos. Esses momentos só servem para evidenciar o desespero da direção em salvar uma estrutura caduca, que, ironicamente, termina revelando em seu próprio funcionamento a persistência dos mesmos problemas que deseja retratar.

Ver um espetáculo de Harildo Déda dentro do Teatro Martim Gonçalves — mesmo que desta vez se trate se de produção independente — gera uma irreprimível sensação de déjà-vu. Se no realismo o objetivo é fazer refletir o macrocosmo social no microcosmo familiar, aqui o efeito se  rebela contra o próprio espetáculo. Pois se não nos desloca satisfatoriamente aos problemas da sociedade norte-americana, se não nos faz encarar os nossos próprios seriamente, e se nem sequer diverte fazendo apelo à imaginação, só nos reenvia ao tédio mais imediato, enquanto lá na frente a peça se desenrola, solitária, como num aquário. Nos faz lembrar, por exemplo, que certas raposas bem conhecidas e próximas persistem no poder, seja dentro mesmo das estruturas e hierarquias cênicas, seja pairando pelos corredores da Escola de Teatro. Que essas pequenas raposas soteropolitanas continuam decidindo coisas importantes e silenciando discursos que, se bem estimulados, resultariam em coisas bem mais interessantes. É como se essa estética mofada da distância alegórica, presente em tantas montagens vistas no mesmo lugar, preservasse as pequenas raposas do ter de assumir as corrupções que acontecem no seu próprio território, silenciosamente, por anos a fio.

[1] O Realismo Impossível (2016). Autêntica. Tradução de Mário Alves Coutinho

[2] Texto de apresentação na página virtual da produção.

Em um dia normal do bairro Rio Vermelho, mulheres apresentam no Largo da Mariquita o Cabaré Belas, Arretadas e Fora da Casinha. Em um dia normal para mim, que se tornou sinônimo de exaustão, faço todo esforço do mundo para caminhar até o largo e assistir suas proposições.

Tenho feito esse tipo de esforço desde o dia em que decidi, como posicionamento político, assistir tudo que fosse produzido por mulheres na cidade. Obviamente não consigo assistir tudo, mas o esforço existe. E iniciativas como essa surgirem de modo tão autônomo e auto-organizado já se configura como uma vitória. Não só nos tempos de hoje, mas sempre. Ocupar espaços públicos é um ato político. É colocar o corpo como manifesto, seja para reiterar a hegemonia ou confrontá-la.

Sendo um dia normal, próximo das festividades do São João, e levando em conta a movimentação da noite do Rio Vermelho, levei um tempo para encontrar o espaço que tinha sido reivindicado por estas mulheres, que era próximo de um palco onde uma banda animadamente tocava forró e um grupo de pessoas dançavam suas músicas.

 Encontrei o espaço, mas não conseguia encontrar um bom lugar para me colocar e assistir. Havia um semicírculo de pessoas em pé que impossibilitavam, para quem, como eu, chegava atrasada, encontrar um bom lugar. Quando pensava em me irritar, repetia para mim: Estamos na rua. A rua tem leis próprias. Lide com isso.

Tive a impressão de que não houve um ensaio coletivo, mas apenas uma predeterminação da ordem de entrada, o que dava ao evento uma atmosfera caótica. Era visível a inexperiência de algumas na rua, embora fale isso do lugar de alguém que não tem nenhuma experiência e tem até bastante medo da rua. Mas, para mim, gritava aos olhos quando havia uma disputa com espaço público e quando havia um diálogo com ele. Considerando que o objetivo do evento (segundo a descrição na sua página no Facebook) era celebrar a atuação e empoderamento feminino na arte, toda experimentação deveria ser estimulada. Me perguntei por que não estava sendo generosa então, e até onde eu deveria ser.

 No cabaré teve um pouco de tudo. Teve número de palhaçaria, teve lipsinc, teve obra em processo, teve número de contorcionismo, teve funk do parto humanizado etc. Como sou do tipo tiete, preciso dizer que fiquei apaixonada pela palhaça de Joice Aglae. Ela não teve um número. Era uma espécie de contrarregragem performativa, mas aquela atmosfera triste e mal humorada que emanava daquela palhaça roubava minha atenção sempre que ela se colocava. Mesmo que fosse para entregar um microfone, ou para verificar se estava tudo certo.

Depois de insistir, torcer e discretamente ir abrindo espaço, consigo um excelente lugar para ver. Então, como uma grande pegadinha da rua, chove. Chove torrencialmente no final de uma apresentação.

Por Laís Machado

Cabaré

Foto de Nina La Croix

Enquanto todo mundo correu para se abrigar nos stands da feirinha armados no largo, eu fiquei parada assistindo Bafuda (palhaça de Felícia de Castro) receber a chuva. Nesse momento, era como se naquele largo só existíssemos nós duas. Pensei: Talvez devesse me arriscar e fazer algo na rua. Não pesquiso presença? Não me interessa pensar os fluxos das relações que se estabelecem durante um acontecimento cênico? Haveria algum lugar mais desafiador para isso do que a rua? Seria aquela relação entre nós duas um sinal?

Depois que a chuva passou, as pessoas voltaram e o cabaré recomeçou. Eram 11 artistas e ainda tinha muita água para rolar.

No novo lugar em que fiquei depois da nova organização daquele espaço, era possível observar a audiência, e ao fazer isso senti um aperto na região do osso esterno, característica da angústia. As mulheres disseram: “A arte de rua tem valor fundamental pra nossa sociedade através da inclusão social, levando atrações para as pessoas que nunca teriam possibilidade de assistir um espetáculo.”[1].mas ao olhar pro lado, eu via as mesmas pessoas que encontro ao assistir coisas em espaços fechados.

Me distanciei, já era final do evento, e fui fumar um cigarro, quando ouço: O Rapaaaa. E vejo todos os ambulantes correndo com suas mercadorias para que não fossem apreendidas, enquanto tomávamos as nossas cervejas que já haviam sido compradas com eles        mais cedo. E continuávamos nossas conversas sobre a “situação atual da política”. Como se não houvesse conexões entre uma coisa e a outra. O aperto aumentou.

A estrutura do Cabaré foi sendo desmontada, as palhaças foram tirando os narizes, as performers foram se trocando e aos poucos foram se retirando. Mas aí aconteceu outra mágica. O cabaré saiu, mas o espaço não foi desocupado. E organicamente outras coisas foram acontecendo ali. De ensaios a conversas, selfies, danças e afins. Isso é uma das coisas que mais admiro em iniciativas na rua. Depois que o espaço foi marcado como um espaço ocupável ele permanece ocupado. E dessa vez, majoritariamente por mulheres. Todas lindamente fora da casinha. Exceto as ambulantes, que tiveram de sair correndo.

 

[1] Texto encontrado na página do evento, disponível no link https://www.facebook.com/events/1364527663635783/?fref=ts

Por Igor de Albuquerque

Dentro do contêiner

Sobre o espetáculo “O Contentor – o contêiner”

No chão do Espaço Cultural da Barroquinha há um retângulo de luz desenhado por refletores. Esse espaço cênico exíguo é a base do sólido onde se passa quase toda a ação de O contentor – o contêiner. Após serem descobertos no convés de um navio, três refugiados de diferentes países africanos são trancafiados dentro da estrutura metálica. Alguns conflitos são travados entre os personagens, até que um deles seja retirado de lá depois de gritar que é um refugiado político. No fim da viagem, os outros dois homens são instados a sair de lá por uma voz em off dizendo que do contrário atirará, mas as vítimas ficam paralisadas. As luzes se apagam e – aberto o desenlace incerto – explodem os aplausos da plateia. Em menos de uma hora, a encenação de Ridson Reis precisa lidar com esses limites, na economia do tempo, do espaço e da ação.

O texto da peça é de José Mena Abrantes, premiado autor angolano cujo trabalho se volta em boa medida para o teatro. O contentor foi publicado em 1994, mas continua, em lamentável progressão, um texto muito presente, talvez ainda mais presente, pois retrata o tema das crises migratórias, que nos últimos anos tem se agravado e figurado como uma das principais pautas da política internacional. No recente contexto de antipatia aos direitos humanos, as migrações contemporâneas trazem à tona a xenofobia e os preconceitos sociais que grassam nas bocas de candidatos e líderes das maiores potências mundiais.   

Apesar da influência inegável sobre a macropolítica, as linhas das crises migratórias, no texto de José Abrantes, são reduzidas da escala de bilhões de seres humanos espalhados por todo o globo terrestre à agonia de três homens sobre uma pequena placa de

Os atores gritam ou choram suas falas unidirecionais emolduradas por uma guitarra que repete notas esganiçadas ecoando, em matéria sonora, o desespero dos personagens. Após o espetáculo, inclusive, a equipe da peça conversa com o público sobre a condição dos refugiados no mundo e no Brasil. Também fala que o texto apresentado é baseado em eventos reais. Como se o real precisasse nos explicar que é o real.

adulta em termos morais e psicológicos. Qual ingênuo questionaria a realidade da foto que mostra uma criança síria morta na areia de uma praia? Somos capazes de fazer isso, e podemos fazer pior.


Nesse sentido, uma encenação nitidamente aplicada em construir a experiência do contêiner não estaria, por vias anódinas, subestimando o senso de crueldade dos espectadores? Porque, além disso, pouco resta dos esforços empreendidos em cena. Se o contêiner ainda está ali, monolítico, os personagens evanescem em recursos ficcionais

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[1]          Diante da dor dos outros (2003). Companhia das Letras. Tradução de Rubens Figueiredo.

metal. Opera-se um movimento de compressão para inscrever estratégias de adensamento conceitual, ou de concentração. Nesse tipo de investida cênica tudo cresce e chama a atenção; todo jogo de corpo, toda fala, toda expressão facial, em suma, todo mínimo detalhe recita a máquina do mundo. Peter, George e John processam os versos: o primeiro, que diz ser refugiado político, é violento e intolerante frente às fragilidades do segundo, um rapaz amedrontado que em seus delírios vê o pai ausente; já John é mais moderado – sonha com um emprego em seu novo país –, embora atue mais como escada para George. Não há espaço para aprofundar caráteres, nem para sugerir desvios. Estilo direto, metodologia expositiva. O fato de os personagens serem refugiados subjaz todo discurso falado e sobrepõe qualquer tentativa de complexificar subjetividades.

 

Ridson Reis, então, utiliza o que tem em mãos para construir a ambiência que, com bastante insistência, quer explicar seu mundo. Passa-se frio – luz azul. Sente-se calor – luz vermelha. Os atores gritam ou choram suas falas unidirecionais emolduradas por uma guitarra que repete notas esganiçadas ecoando, em matéria sonora, o desespero dos personagens. Após o espetáculo, inclusive, a equipe da peça conversa com o público sobre a condição dos refugiados no mundo e no Brasil. Também fala que o texto apresentado é baseado em eventos reais. Como se o real precisasse nos explicar que é o real.


Em seus ensaios sobre fotografia de guerra[1], Susan Sontag observa que, depois de tantos registros de crueldade, aqueles que se mostram incrédulos diante das provas do que os seres humanos são capazes de fazer em matéria de horrores contra outros seres humanos ainda não teriam alcançado a idade

(DE)FORMAÇÃO DE QUADRILHA

(sobre uma noite junina da Terça Estranha, na casa de show de drags Âncora do Marujo)

Por Alex Simões

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Malayka SN amava Ah!Teodoro q amava Loren Taba 

q amava Frutífera Ilha q amava Babi Lon Labatut q amava Mamba Negra

q ñ amava ninguém.

Malayka ficou bem tranquila, Ah!Teodoro se lambuzou de dendê

Loren foi lá fora dar uns tapas na Taba, Frutífera Ilha ficou para tia cis,

Babi Lon Labatut bateu cabelo e Mamba Negra se enroscou com Vanusa

que não tinha entrado na história.

 

***

São algumas terças estranhas que venho frequentando e coligindo impressões em formas de nota. Nunca sei exatamente o que dizer além de um sentimento entre pertença e estranhamento. Uma vez Gina D’Mascar (Google pesquisar urgente!) me disse que não entendia a proposta. Eu retruquei que também não. Mas o que que a gente entende mesmo? O que a gente precisa entender? ZMário, de quem roubo muita coisa, inclusive a ideia de plagiar Quadrilha de Drummond, foi embora pra Brasília, mas continuo indo ao Âncora assistir como se estivesse indo com ele, vendo com o olhar dele essa arte distópica, fora da galeria, que é também de rua, porque as Monxtras são menos um coletivo de drags que penduram tudo o que a cola Super Bonder© permitir em suas peles e barbas do que um delirium ambulatorium coletivo.

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Cheguei tarde. Mas que importa? Este texto vai pra uma coluna chamada Rizoma, portanto não tem começo nem fim. Não pretende dar conta da complexidade das relações humanas. Não é romance, é um rizoma sobre um evento junino de uma noite temática da casa de shows de Drag mais interessante da América Latina que conheço (talvez pareando com a cubana Las Vegas, embora a nossa casa soteropolitana abarque muito mais diversidade de estéticas, como as Monxtras da Terça Estranha, as Bonecas Pretas, os vários concursos muito mais interessantes que Ru Paul Drag Race e tantas e tantas desfilando suas propostas fechativas sob o olhar de Rainha Loulou, a diretora de arte direta e indireta de todas as noites do Âncora do Marujo).

***

Como não ir pra um evento junino sem ter o olhar afetado pela discussão levantada por Elba Ramalho sobre a música sertaneja universitária nos eventos de São João? Ainda mais que Rainha Loulou estava lá e eu sou do tempo em que ela dublava mais Elba do que Madonna. Fiquei pensando que se Elba estivesse no Âncora (e estava) nesse dia ia confirmar que o sertanejo universitário ocupou até o São João da Terça Estranha cheia de drags super informadas do que há de mais contemporâneo dentre o que há de mais contemporâneo e talvez por isso não coubesse nenhum trio de forró ali entre as músicas dubladas, pelo menos no largo intervalo de tempo em que lá estive. Mas ah, queria muito ouver Mamba Negra dublando Luiz Gonzaga. Mas como Mamba Negra: androginia vigorosa, precariedade programática, fumaça de cigarro para compensar a máquina de fumaça que chegou na casa, mas quebrou antes de funcionar.

 

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“Sou pássaro de fogo

Que canta ao teu ouvido

Vou ganhar esse jogo

Te amando feito um louco

Quero teu amor bandido”

(Malayka SN lipsinxit)

 

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Babi Lon Labatut, com um chapéu feito do disco da novela Sétimo Sentido, dubla Jonny Hooker e “esse amooooooooorrrrrr marginaaaaaaallll” me parece tão junino quanto “no São João eu não / no São João eu não / eu não tenho alegria / só porque não vem / só porque não vem / quem tanto eu queria”.

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“Como dizia  João Cabral de Melo Neto

‘um galo sozinho não tece a manhã’”

(Frutífera Ilha lipsinxit)

 

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Malayka SN & Ah!Teodoro vestiram Calcinha Preta juntxs e Elba Ramalho não gostou. Eu tampouco, mas vejam bem, são uma dupla que recomendo conhecer mesmo que você seja Elba Ramalho.

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Ah!Teodoro me lembra o ator Zé Carlos de Deus quando o conheci no final dos anos 80 e acho que eles nem se conhecem. Pelo physique du role (em português "físico de cu é rola"), pelo talento, pelo fascínio que me desperta quando sobe ao palco. Dizem que escrever com exclamação é pobreza de estilo. Só que estou falando de Ah!Teodoro.

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Mamba Negra é contundente, ácida, desconstruidona, mas olha Vanusa com tanta ternura que esta dando churria naquela é o pulo da gata pra driblar a peleja da travesti fora da cena brigando pelo foco.

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Não vou fazer ilações sobre os sentidos de Formação de Quadrilha, pensando na arte como guerrilha nem tampouco no momento político atual de sempre do Brasil porque não sou obrigada a nada, beu abô.

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Tem uma hora que saio e fico conversando com Lucas Féres, performer, e encontramos Mell, pessoa em situação de rua, mulher negra que sempre que me encontra pergunta sobre a programação cultural de Salvador, que adora transformistas e que também me provoca essa sensação oscilante entre pertença e estranhamento. De repente nos damos conta de que nós três estamos de verde e tiramos selfies. Mais tarde eu tiro selfies com Malayka SN e Mell. E é nessa hora que a Terça Estranha me diz mais pertença do que estranhamento. E agora, sim, é noite de São João. Olha pro céu, beu abô.

 

***

Sempre volto à Terça Estranha como quem vai à aula de reforço da lição que Ednardo me ensinou na infância sobre os que, por pura conveniência, se dizem os iguais para que sejamos nós os diferentes:

 

“eles são muitos

mas não podem voar”

Foto de Gabriel Oliveira

Talvez o maior mérito do comediante indo-americano Aziz Ansari seja sua capacidade de fazer piadas ao mesmo tempo corretas e engraçadas. Intui-se que o humor não caminhe de mãos dadas com as boas intenções e, em vez disso, siga seus percursos à maneira de personagens da Corrida Maluca, trocando trapaças e truques, como se fosse possível ser apenas engraçado ou respeitoso, jamais ambos. O engajamento talvez esbarre em certo tipo de humor, impedindo-o de avançar, mas em mãos hábeis pode turbiná-lo. Por outro lado, é um direito do artista – de qualquer ser humano – não se engajar. A luta, mesmo em épocas turbulentas, não é essencial para a fruição artística. Em Ansari nota-se, tanto no livro Romance Moderno quanto nos shows de stand up, uma inclinação em favor dos imigrantes e da igualdade entre gêneros.

São questões que também permeiam Master of none [Mestre em nada], série lançada em 2015 pela Netflix, cuja segunda temporada estreou em maio. Nela, o nova-iorquino, além de escrever e dirigir, interpreta o protagonista Dev, também ator. O quarto episódio da primeira temporada, “Indianos na TV”, começa com uma colagem de filmes que apresentam indianos estereotipados, muitos feitos por atores brancos, entre eles Um Robô em Curto-Circuito 2, Indiana Jones e o Templo da Perdição, Um Convidado Bem Trapalhão e um polêmico comercial de salgadinhos com Ashton Kutcher. Em seguida seu amigo Ravi participa de um teste para o papel de “taxista indiano desconhecido”, com sotaque extremamente caricato; terminada a última fala, ele imediatamente volta a falar como um nova-iorquino. Dev, por sua vez, desperdiça a “oportunidade” ao se recusar a fazer o sotaque. Então levanta a questão:

 

Dev: Sabe A Rede Social? Max Minghella faz um indiano. Ele é branco. Deixaram ele moreno.

Ravi: Não, não. Eu li que ele é dezesseis avos indiano.

Dev: Quem liga? Se você procurar direito, todos nós somos dezesseis avos alguma coisa. Provavelmente sou dezesseis avos negro. Você acha que vão me deixar fazer Blade?[1]

 

Por que Hollywood não chama indianos para os papéis de indianos – ou pior, por que com tanta frequência usa atores brancos em seu lugar? É tão evidente que chega a soar ridículo que indianos não os interpretem desde sempre. Esta é uma das grandes questões em pauta nos últimos tempos. Não a de Ansari, especificamente, mas a do direito de utilizar para fins próprios, muitas vezes comerciais, elementos de culturas alheias.

Apenas recentemente isso começou a ser discutido na mídia virtual – do comentário privado aos grandes jornais. Quando os hipsters dominaram o mundo, no começo da década, adolescentes iam para baladas nova-iorquinas utilizando o talit, uma espécie de poncho judaico, para chamarem a atenção; mas era uma distinção vazia, uma vez que eles nada conheciam daquilo. Criticou-se neles a ironia, o esvaziamento do significado que aquele acessório tinha para os judeus. Isso, de certa forma, é análogo à reclamação de Dev. É deveras ridícula a imagem de um ator pintado de marrom, vestindo um berrante churidar azul, forçando o sotaque para se passar por indiano – tudo isso em nome do “nobre” propósito de vender salgadinhos. Por que não simplesmente deixar os indianos receberem os cachês dessas filmagens e mudarmos a pauta para a próxima polêmica?

É possível analisar a questão por outros ângulos. No curto texto “Urdiendo imbecilidades”, publicado em outubro de 2016 na sua coluna semanal no El País, o famoso ficcionista espanhol Javier Marías percebe algo mais. Na sua crítica, que não tem direcionamento específico – ou seja, ataca ideias, não quem as profere –, ele vê tudo isso como uma imbecilidade que só poderia ter sido organizada na época da internet. Sua elegante diatribe apresenta um ponto interessante: “Houve um tempo não distante em que os coletivos se sentiam lisonjeados se alguém imitava seus cantos e suas danças, se atravessavam fronteiras demonstrando assim sua pujança, sua bondade e sua capacidade de influência”. Ou seja, a apropriação de elementos de culturas alheias seria antes homenagem, admiração e respeito, que propriamente pilhagem. Um egípcio pode dançar reggae, um jamaicano comer sushi, um japonês tocar cavaquinho e um brasileiro erigir obeliscos, sem causarem danos para as culturas originais.

O DIREITO DE INTERPRETAR HAMLET

Por Paulo Raviere

Assim como é muito fácil concordar com o personagem de Ansari, é difícil desconsiderar a lógica de Marías. O argumento central do madrilenho é sobre a dramaturgia. Ele afirma que “esses injustiçados, pela lógica, condenariam qualquer ator que, não sendo dinamarquês, fizesse Hamlet; que, não sendo ‘mouro de Veneza’, fizesse Otelo; que, não sendo manchego, fizesse o Quixote, e daí até o infinito”. Privar Wagner Moura de encenar os augúrios do príncipe ou Orson Welles os do mouro seria um hiper-fetichismo do Clássico tão ridículo quanto pintar brancos de marrom para atuarem como indianos.

Lembremos ainda que o próprio Shakespeare foi um grande apropriador: tirou de Plutarco peças históricas sobre líderes da antiguidade como Cleópatra, Marco Antônio e Júlio César; Romeu e Julieta é uma variação, entre outras, da trágica história de Píramo e Tisbe, presente nas Metamorfoses de Ovídio; Hamlet provém de um erudito dinamarquês chamado Saxão Gramático e, como bem nos mostra Stephen Greenblatt[2], o inglês reciclou pedaços inteiros de Michel de Montaigne, notoriamente o ensaio “Sobre os Canibais” em A Tempestade. Ainda assim, nos parece um descalabro uma recusa das peças do bardo de Stratford-upon-Avon.

As histórias, ao adquirir certo verniz, se depreendem de seus autores; não temos pudor em nos apropriar das obras de civilizações antigas e adaptá-las ao gosto contemporâneo, pois nos é impossível lê-las de maneira diversa. Inevitavelmente, vamos continuar a encenar de nosso jeito as histórias dos poetas da antiguidade. Se os argumentos de Master of none fossem levados ao pé da letra, Paapa Essiedu jamais poderia ter interpretado Hamlet. O problema é esta lógica funcionar tão bem para Shakespeare e soar tão mal quando nos lembramos de Ansari.

No final não existe uma resposta. A anônima massa virtual geralmente propõe dicotomias, mas sabemos ser o mundo sempre muito mais complexo que as opiniões expostas numa sequência de comentários apressados e irredutíveis. É possível pensar sobre o assunto sem necessariamente escolher lados. Aplicadas às artes, as questões de nosso tempo adquirem outros contornos. Ensaia-se neste texto, portanto, não uma solução definitiva, mas possíveis caminhos – diálogos, reações, oxalá interações.

Uma solução possível seria sair dos extremos aqui apresentados. Minha proposta seria a união de ambos os argumentos – uma aplicação pensada caso a caso. Que se busquem as vias intermediárias ou se tente criá-las quando não existem. Que a utilização dos clássicos seja direito inerente a qualquer ser humano, mas que as obras contemporâneas sejam operadas por quem lhes compete. Que o conflito entre as “ansiedades da representação” e as “angústias da influência” se apazigue não por omissão, mas por inter-relação.  Em suma, que Aziz Ansari faça um nova-iorquino sem sotaque, mas que seja livre para fazer também o cara da loja de conveniência de sotaque caricato, e que faça até Hamlet, se lhe aprouver; mas, por favor, que ele jamais faça um brasileiro!

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[1] Todas as traduções aqui citadas são minhas. Diálogos tirados do site IMDB.

[2] No ensaio “O Montaigne de Shakespeare”, publicado na revista Serrote n. 20, Greenblatt apresenta uma minuciosa tabela comparativa de citações de Montaigne utilizadas por Shakespeare.

Treze. Número de sorte para alguns, de azar para outros. Para além dos arcanos e da volta no calendário, aqui na Barril o décimo terceiro marco aponta um eixo de andanças e escritas através das quais revisitamos, imaginamos e reinventamos as cenas das cidade. No intenso frio compreendido entre os 20 e 25 graus celsius, desviamos de bombas juninas e de traques arremessados por crianças encapetadas, mas sobrevivemos ao mês com uma edição nova debaixo do braço.

A primeira CRÍTICA traz uma leitura de Igor de Albuquerque sobre a peça O contentor – o contêiner, texto do angolano José Mena Abrantes montado por Ridson Reis. A outra CRÍTICA é escrita pela convidada Águeda Tavares, que interage com as várias linguagens do espetáculo Diário Rosa.

Bárbara Pessoa leu com olhos atentos o site Farofa Crítica, observando quais os pontos mais interessantes que essa recente iniciativa de pensadores natalenses propõem a seus leitores. A

As Pequenas Raposas de Lillian Hellman, mas a reboque carregou também Daniel Guerra. É TRETA. Paralelamente à teorização acerca do realismo no teatro e no cinema, o crítico opera uma leitura contextual. Da matéria da rua às vigas do teatro.

O vídeo da coluna REVERBERA fica por

conta da artista visual e performer feirense Tâmara Lyra. O evento/acontecimento reverberado foi o mesmo que serviu para matéria da SELFIE de Laís Machado. Duas visões personalíssimas sobre o Cabaré Belas Arretadas e Fora da Casinha.

É isso. Se sobrou amendoim cru, vai um conselho. Lave-os muito bem em água corrente, depois deixe de molho por trinta minutos. Pegue uma panela de pressão, encha até a metade com amendoim e coloque água. Corte um limão no sentido longitudinal e acomode-os confortavelmente entre as vagens. Sal a gosto. Tampe a panela e deixe cozinhar por 25 minutos. Agora abra a BARRIL, leia petiscando o quitute e nunca saia por aí dizendo que nunca aprendeu nada com essa revista.

CRÍTICA DA CRÍTICA dialoga com a anterior (edição n.12), na medida em que trata de mais uma revista online, isto é, uma colega da BARRIL.

 

O RIZOMA foi produzido por Alex Simões. Dessa vez o poeta se arrisca na prosa experimental inspirada pelas drags que festejaram São João no Âncora do Marujo.

No ENCONTRO, Igor de Albuquerque vai ao estúdio do ator e comediante Pisit Mota. Não apenas engraçada, não apenas bêbada, a conversa passa por temas intrincados das artes na Bahia e chega às paragens nebulosas da Internet. Como bônus, Pisit conta como se deu sua caminhada de Canavieiras até os palcos de Salvador. 

Paulo Raviere é o outro convidado do número 13. Em seu ENSAIO, o escritor chama Aziz Ansari e Javier Marías para discutir com ele as nuances da representação no contexto das apropriações culturais.

Harildo Déda levou ao Teatro Martins Gonçalves o clássico norte-americano

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