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CRÍTICA De Fudê
REVERBERA Marie Thauront
CRÍTICA - Major Oliveira: nossos bons velhinhos e o tempo que vivemos
REBATE Major Oliveira
CRÍTICA DA CRÍTICA - A grande crítica (8)
RIZOMA - Vidro e Grão (8)
ENCONTRO com Yuri Tripodi (8)
ENSAIO Quais os universos imaginários compõem as criações coreográficas dos coreógrafos que vem das Danças Urbanas? (8)
SELFIE - Se mágico (8)
TRETA - Carta aos criadores (8)
Rebate - Neto Machado

Há violência no Silêncio, por Igor de Albuquerque

Bárbara Pessoa encontra Yuri Tripodi

Carta aos criadores, por Bárbara Pessoa

Por Vanillon Lakka

Rebate à Crítica, por Neto Machado

'Escandalosa', de Brisa Morena

"Desastro", de Neto Machado, por Daniel Guerra

Rebate à Crítica

Major-oliveira: Os bons velhinhos e o tempo que vivemos, por Alex Simões

Se Mágico, por Diego Pinheiro

Na Coluna CRÍTICA DA CRÍTICA, Laís Machado problematiza a crítica sobre obras assumidamente feministas, propondo uma visão além da questão temática, a partir da análise das críticas de Daniel Guerra e Alex Simões, sobre as obras Isto Não é Uma Mulata, Paulada Silva Selva e Obsessiva Dantesca, no texto Entre o Político e o Estético.

Alex Simões apresenta o seu poema rizomático, sob a luz negra da performance da drag queen Nina Codorna, Bohemian Rapsody, no texto Um Rizoma Para Nina Codorna, na Coluna RIZOMA. Alex também encontra o ator, figurinista, cenógrafo, aderecista e enciclopédia viva do teatro baiano, Hamilton Lima, no Beco dos Artistas. Veja na Coluna ENCONTRO.

 

Por fim, na Coluna SELFIE, a arte educadora, dramaturga e pesquisadora, Bárbara Pessoa, nossa mais nova colunista, traça suas vivências durante a apresentação de Maloquêro, espetáculo de Jhoilson de Oliveira, apresentado durante o evento Terças Pretas, projeto do Bando de Teatro Olodum, no Teatro Vila Velha.

 

Se joguem!

 

Boa leitura!

Sobre o senso crítico soteropolitano.

 

A cidade é dividida em três polos: a canonização, a cooptação e a indiferença. Dentre estes polos, a canonização crítica é a mais nefasta, pois é ela que promove os outros dois polos. Acima de tudo, a canonização possui a característica da manutenção de um determinado tipo de feitura cênica, propagando a ideia do que seria a linguagem teatral. Consequentemente, a produção crítica se disponibiliza a vigiar e dizer se aquilo é ou não teatro a partir dos chavões críticos que os artistas soteropolitanos estão acostumados a receber e/ou produzir. A canonização crítica também é responsável pelas reproduções, que ganham forma via alguns assaltos estéticos, de modo que em Salvador se diz: “Fiz um Brecht.”, “Fiz um Shakespeare.”, “Fiz um Nelson Rodrigues.”, “Fiz um Beckett.”, “Fiz um realismo.”, “Fiz um absurdo.”. A canonização crítica é um professor de história do teatro autoritário que preza pelo mais do mesmo.

 

A crítica da cooptação está na lógica do mercado, do próprio capital. Se efetua na tentativa de absorver algo novo, ou algo que ganha foco “no momento”, em sua própria feitura caduca. Salvador é experiente nessa colagem sinistra. Geralmente essa cooptação, que também pode se configurar em um assalto estético,

 

rouba quem ao seu redor produz; o artista roubado fica sem saber do assalto e não ganha referência, como é de praxe, no que se refere aos grandes teatrólogos do século XX.

 

Já a crítica da indiferença se justifica pela birra estética dos mantenedores do “bom fazer”. É a ferramenta crítica mais eficiente contra uma ameaça à supremacia das reproduções. A esse polo também chamamos de silêncio. Salvador é uma cidade aferrada e não seria diferente no que se tange a obras e outras inciativas culturais. Por isso, a BARRIL tenta lutar contra o silêncio crítico, esse gigante que defende o portão do cânone estético e crítico.

 

Na 6ª edição da Revista BARRIL temos duas CRÍTICAS: O Sentido e o Homem Torto, sobre a performance coreográfica de Eduardo Fukushima (SP) no IC – Encontro de Artes 2016, e Sob o Manto do Bispo, sobre o espetáculo Bispo, solo de João Miguel. Críticas compostas, respectivamente, por Diego Pinheiro e Igor Albuquerque. Eduardo Fukushima compõe o seu REBATE à crítica de Diego Pinheiro.


O ator e dramaturgo Thor Vaz, a convite da Revista BARRIL, atua em dose dupla nesta 6ª edição a partir de seu REVERBERA In Completo, movido pelo espetáculo Bispo (João Miguel) e na Coluna ENSAIO, com o texto Espectro das Divindades.

Bárbara Pessoa  encontra o performer Yuri Tripodi 

Bárbara Pessoa encontra Yuri Tripodi

A maquiadora e performer Marie Thauront reverbera o espetáculo "Escandalosa" de Brisa Morena

Por Alex Simões

Major Oliveira: nossos bons velhinhos

e o tempo que vivemos

Antonio Fábio, faz uns anos, uma vez me disse que estava interessado na questão do envelhecimento para trazer para o palco. Ele cumpriu a promessa. Chamou Daniel Acardes e resolveu falar do envelhecimento, ou de um estado de senilidade, de uma pessoa e de uma nação. Todo o espetáculo fala dessa ambiguidade: Major Oliveira é o retrato desse Brasil profundo, para usar as palavras que Caetano Veloso tomou para referir-se ao Brasil da ditadura militar.

São poucos os elementos em cena: um ator, em um único figurino de militar de reserva que não abre mão de se vestir como se estivesse de uniforme, cinco pallets em forma de cruz, duas cadeiras (uma de visita e outra de hospital), um criado mudo como altar com a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia, uma bola que faz as vezes de cabeça, um pedaço de fígado de boi, spots de luz, sobre e ao redor do palco e da plateia.

Entramos no Vila Velha pela parte debaixo e ouço uma pessoa perguntar: é aqui mesmo? Nunca entramos por aqui. Descemos os porões, do teatro, como se estivéssemos descendo os porões da ditadura, nos acomodamos nas cadeiras que estão no palco do teatro de arena, ao redor do cenário minúsculo e esperamos começar. Vem lá de cima, do caminho que nós, os da plateia, estamos acostumados a fazer, o ator, que primeiro alonga os músculos do pescoço, aquecendo para mais uma sessão de seu ofício, e desce em nossa direção. Já nas primeiras palavras que balbulcia, entendemos estar diante de um velho execrável, mais do que um defensor da ditadura, um ex-torturador, abandonado pelos filhos, em um asilo.

Sendo um único ator em cena, ele dialoga com dois personagens que não vemos, mas que estão ali: o enfermeiro de todos os dias, e a testemunha de Jeová das visitas dominicais. Trata-se de um motivo recorrente em alguns textos literários: o velho execrável, envolvido com alguma ditadura, que tem como confidente de suas práticas abomináveis a enfermeira. Lembro de  Leite Derramado, de Chico Buarque, Memoria de mis putas tristes,de Gabriel  Garcia Marques, um dos contos de A Eternidade da Maçã, de Marcus Vinicius Rodrigues. Certamente o leitor mais bem informado lembrará de outros tantos textos sobre o tema. Daniel Arcades mergulha nesse universo sombrio para falar do presente, já me explico.  Embora seja um monólogo, o personagem está sempre em diálogo com dois personagens que não vemos mas que ele vê, é essa característica dá uma agilidade ao texto, que resulta num olhar para além dos maniqueísmos, dando contornos complexos a essa personagem racista, misógina, homofóbica, mas que é, sobretudo, um ser amedrontado e fascinado por aquilo que odeia.

O texto aponta para o presente porque menciona o crescimento do evangelismo no Brasil, bem como o avanço dos negros favelados, das bichas e das feministas. Em outro momento, em con-

Foto de Andrea Magnoni

 A ditadura já está, Bolsonaro não existe no vácuo e os militares nem precisam tomar o assento para que a “ordem” cale a maioria. Mas enquanto houver arte e artistas preocupados com o seu tempo, há possibilidade de refletir. E de agir.

-versa com o enfermeiro, o Major se refere ao recente ataque terrorista dos Estados Unidos, provavelmente o atentado do WTC, e a ameaça da “invasão” muçulmana nos Estados Unidos. São muitos os sinais de que estes tempos são sombrios e que num rosto plácido, de olhos azuis, de um velhinho temente  aDeus e devoto de Nossa Senhora da Conceição da Praia saem as palavras e as práticas do terror fascista.

Há sinais ali que nos coloca entre um futuro ameaçador que já sabemos onde deu e um passado que já sabemos onde vai dar. É nesse tempo de suspensão, entre passado e futuro, que vemos os símbolos nacionais, uma bandeira do Brasil no alto do proscenio, as estrelas da farda do Major, a austeridade travestida de simplicidade presente nos cenários, e alguns momentos musicais, seja através de um hino que não identifico mas que deve ser do Exército e alguns acordes que nos lembram de uma ambientação nazista.

Antonio Fábio é daqueles atores rigorosos, que partem de um trabalho elaborado com o corpo para nos mostrar a degradação de um ser que envelhece. O Major Oliveira tem mal de Parkinson ou alguma outra morbidade na mão esquerda, uma limitação que quase nos desperta piedade, muito embora não seja um fator que o impeça de realizar, em cena, atos não muito convencionais aos bons velhinhos. Podem descansar, leitores, não serei um spoiler. O desenho coreográfico dos movimentos do ator em cena são cuidadosos, bem traçados, circulares de modo a contemplar a todos que estamos na plateia, com aquela sensação de que ele nos olha nos olhos sem se fixar em nenhum 

de nós. A direção, dividida entre ator e dramaturgo, dá conta das nuances do personagem e da relação com o espaço do teatro e com a plateia, muito embora às vezes pareça que a voz e dicção do personagem é mais jovem e ágil do que o corpo em degeneração. Isso não é necessariamente um defeito, porque parece ser uma escolha.

Aquele homem podia ser avô, pai, nosso ou de um vizinho nosso, ex-patrão, pai do patrão, enfim, um personagem terrivelmente verossímil, cada vez mais possível de existir, não porque não existisse antes, mas porque personagens assim cada vez menos têm vergonha de dizer as barbaridades que pensam.

Há uma bengala e uma Bíblia sobre os quais o personagem se apoia. Esta serve para, em alguns momentos, ilustrar o sofrimento exemplar das vítimas, com a leitura do livro de Jó, aquela serve como sustentáculo de um corpo em degradação, mas também como instrumento de ameaça e de tortura. A maldade tem seus limites e ninguém é totalmente perverso. Aquele velhinho temente a Deus é abandonado pelos filhos.

A trilha sonora de Roney Jorge resulta de uma pesquisa de sonoridade em diálogo com a ambientação soturna que o espetáculo impõe.

No entanto, pelo caráter intimista e, talvez, por ter uma plateia reduzida no dia em que assisti, tive a sensação de que a imponência e o vlume de alguns momentos da trilha beiravem o limite de se impor um pouco acima do tom do espetáculo. Mas o risco é parte do processo. O nazifascismo precisa fazer barulho, preencher o espaço com sua austeridade e seus hinos de ostentação à glória.

O espetáculo nos faz pensar nos tempos que vivemos, e na velhice esclerosada de um personagem e de uma democracia que mal nasceu e já parece velha. A atmosfera sombria, provocando  nosso silêncio em resposta ao volume do som que encerra o espetáculo, nos deixa apequenados diante desse beco escuro em que estamos nos encurralando. A apresentação que assistifoi abrigada pela programação  intitulada “Ditadura Nunca Mais”, no velho Vila Velha, local da resistência à ditadura dos 60 aos 80 e também do golpe atual. O espetáculo, que não conta com apoio nem patrocínio nem passou por edital, é resultado de uma teimosia de um ator em pleno exercício de sua função social, de seu exercício político de pensar o mundo e o tempo em que vive, contando, claro, com a parceria da equipe, do teatro, e da plateia interessada em ser provocada a refletir e, quem sabe, agir para estancar a sangria.

Se alguma pessoa da plateia sair dali pensando que, cada vez que um colega postar uma piadinha preconceituosa, ou um meme escroto, ou um depoimento fake com o clichê neofascista ”direitos humanos para humanos direitos” e ele se calar estará sendo cúmplice de um um momento histórico assombroso, o espetáculo terá valido a pena de ter existido. É preciso intervir nessa realidade lamentável que estamos vivendo. A ditadura já está, Bolsonaro não existe no vácuo e os militares nem precisam tomar o assento para que a “ordem” cale a maioria. Mas enquanto houver arte e artistas preocupados com o seu tempo, há possibilidade de refletir. E de agir.

Major Oliveira nasce há dois anos quando, em um café da Livraria Cultura nós nos apresentamos e nos parabenizamos um pelo trabalho do outro e falamos sobre um trabalho que pudéssemos realizar sem o compromisso de editais, sem a urgência dos projetos atuais e, principalmente, com nossos percursos juntos. Antonio Fábio tinha um tema que o tocava muito e Daniel Arcades propôs uma situação. A partir daí vieram as leituras e os almoços sobre temas e situações: A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, A obscena senhora D, de Hilda Hilst, os documentos da Comissão da Verdade, conversas sobre a transformação dos valores sociais atuais e muito, muito papo que, aparentemente, nada tinham a ver com o que faríamos.

Entre conversas e pausas para ganhar algum trocado com outros trabalhos, foram dois anos de conversas, pensamentos e discussão de concepção para irmos à sala de ensaio. Sabíamos de algo que jogava a nosso favor: a diferença de nossas gerações e a possibilidade de olhar para o ontem através do hoje. Apesar de muitos jornais terem identificado a peça como uma peça sobre a ditadura militar, esse foi um caminho encontrado para pensar numa situação extrema de controle das coisas, mas nossa peça deseja pensar na perda de controle. Seja a perda física, seja a perda dos comandos familiares ou dos comandos políticos.  É um peça sobre a perda de controle e a partir daí surgem todos os outros caminhos: velhice, política, religião, família...

A localização do tempo é justamente para sabermos que esse passado não está tão distante de nós e ainda tem interferências fortes na nossa vida. E eis que a sintonia do

Por Antônio Fábio e Daniel Arcades

Rebate à crítica "Major Oliveira: nossos bons velhinhos e o tempo que vivemos" de Alex Simões

rigorosamente pensado: colocação de mãos, divisão de coluna, movimentação pela arena e Edeise fez um trabalho de muita valia nesta parte.

Ronei Jorge foi outro presente para a concepção do trabalho. Consciente de que era uma peça na qual o que estava na fala e no corpo do Major necessitava ter o tom da peça. A direção musical concebeu uma trilha sonora soturna com poucos instrumentos e poucas intervenções. São três momentos em que  o risco do volume e do tom da música e é exatamente isso, uma concepção que se arrisca em sair do silêncio somente nos momentos nos quais o Major se sente dono da situação ou, ao menos, finge ser dono de uma. A música é o Hino do Exército Nacional com propostas de variantes caminhos sobre o hino feitas por Ronei.

Ficamos muito felizes com a leitura da obra feita por Alex. Nosso caminho é exatamente este: tentar estampar a face, as falas e os possíveis comportamentos de um opressor que não admite dividir seu espaço com o outro. E essas pessoas têm cada vez menos receio de expor seu ódio, sua raiva diante de sua impotência, para tentar ganhar força e ficar potente novamente. Não deixemos que voltem, não deixemos!

teatro nos faz estrear em um dos momentos mais oportunos para falarmos sobre isso; Não podíamos ter ido ao palco em momento mais oportuno, mas acreditamos também que fizemos uma peça para além do momento sombrio e difícil que vivemos hoje. Queremos que tenha vida, que não seja um espetáculo realizador de dez apresentações de um possível edital e pronto e, devido a isso, tudo foi concebido para viabilizar esse caminho.

O cenário é uma grande prova da nossa ideia de maturação. O conceito do mínimo sempre foi norteador para a concepção, mas a cada conversa íamos diminuindo as formas, tendo clareza das texturas, dos desenhos. A lógica artesanal foi aplicada no sentido do tempo, nada foi feito com “esquema fast-food”, não porque queríamos acertar, mas, principalmente, por uma consciência da necessidade de que este trabalho precisava ter o peso da experiência de vida de um cara como o Major. Vamos aos questionamentos implícitos da crítica (que estamos muito felizes em ler):

Sim, foi uma escolha da direção de tornar jovem e potente a voz e o corpo do Major em muitos momentos da peça. O trabalho de mesa feito durante os primeiros meses era justamente para discutirmos as nuances de voz e corpo nas relações da peça (a santa, o enfermeiro, a testemunha e os demais), optamos por desenvolver essa jovialidade vocal corporal nas situações em que ele acredita que pode ser poderoso, como uma lembrança materializada dos tempos de torturador. Para tanto, destacamos a forte contribuição de Edeise Gomes, diretora de movimento da peça, que cuidadosamente nos apontou soluções para as transformações desse velho frágil para a materialização do torturador vigoroso dentro do espaço. Tudo foi

Por Daniel Guerra

DE FUDÊ

Imagino que ao leitor deva estranhar duplamente o título da crítica. Primeiro deve vir o susto de topar com uma expressão desse quilate escrita assim, logo no topo, mesmo em revista tão afeita a certas diversões. Depois, porque este mesmo leitor deve saber que procuramos manter e promover uma educação no que concerne ao estilo crítico, a bem dizer: a economia dos adjetivos, que aliás abundam nos nossos jornais e fofocas de bar (esta última, a mídia soteropolitana por excelência). Por isso tive que fazer essa pequena digressão introdutória, que logo mais será esclarecida.

Desastro não esconde sua fonte inspiracional máxima, seu monolito onipresente. Assim como nos cinemas, onde costumam botar músicas eruditas pra servir de cama ao mastigar de pipocas e sussurros molhados, aqui adentramos no teatro ao som de “Space Oddity”, hino máximo do rockstar britânico-marciano David Bowie. Ao espectador desavisado, distraído ou simplesmente ao purista sacana, essa introdução atmosférica funciona exemplarmente bem, porque é por meio desse primeiro movimento que o regime de citações — que acompanhará todo o espetáculo como num jogo — será estabelecido, e o melhor, com base numa referência de enorme popularidade.

 

O universo pop, esse deus que tem Sir Bowie como um dos seus santinhos, encontra, em Desastro, um desenvolvimento cênico à altura do famigerado “Efeito Chiclete”. É assim que David Bowie, suas iridescências e camaleonices, junto com pedaços de sci-fi e restos de heróis, mutantes e monstros, serão os fantasmas, meteoritos e tralhas espaciais retornando eternamente ao decorrer da estrutura espiralada do espetáculo, assim como retornam teimosamente os refrões de certas canções em nossas vidas, tais como “não me chame não viu”, “pega a metralhadora”, ou neste caso, “ground control to major Tom”. E como provado na semiótica, na vida cotidiana e em Desastro, o contexto sempre modifica a mensagem. Aqui, repetição é diferença.

 

Quando falo em universo não é por acaso. As luzes vão se apagando progressivamente ao nosso redor, e de pronto somos arremessados pras cucuias do espaço sideral. A viagem é conduzida por outra versão da “Space Oddity”, tocada agora em versão épica, com direito a violinos, metais e tudo mais o que a indústria fonográfica pode nos proporcionar. A duração dessa escuridão, maior que a costumeira, amplia a sensação de soltura, errância e passagem. É como se o procedimento padrão, esgotado pelo uso institucional, reencontrasse aqui sua essência radical. Em Desastro, a transição para o blackout torna-se 

Desastro não esconde sua fonte inspiracional máxima, seu monolito onipresente. Assim como nos cinemas, onde costumam botar músicas eruditas pra servir de cama ao mastigar de pipocas e sussurros molhados, aqui adentramos no teatro ao som de “Space Oddity”, hino máximo do rockstar britânico-marciano David Bowie.

Foto de Milla Carillo

Uma crítica sobre “Desastro”, de Neto Machado

(ou assume-se como) portal de um estado de consciência a outro. É interessante observar que por meio de um detalhe simples — a incorporação de um procedimento trivial enquanto discurso cênico — revela-se uma das mais eloquentes possibilidades rituais do teatro à italiana.

A descrição desse início é importante, porque é justamente o momento em que as peças do jogo são posicionadas, e de fato, Neto Machado vem trabalhando a algum tempo na produção de uma dança contemporânea feita para crianças e adolescentes. Seu campo de combate é o lúdico. Mas não esperemos disso uma série de representações acavaladas, que se conectariam como um passe de mágica à subjetividade juvenil. Aqui é todo um pensamento que é invocado; uma maquinaria cognitiva funcional, e não apenas seleção de representações escolhidas a dedo, com o fim de chocar ou gerar identificações exclusivamente lucrativas, tais como os parasitários remakes de desenhos animados, sempre traduzidos de forma tão tosca para o teatro.

 

Quando os intérpretes “arrombam” a porta lateral do teatro procurando por “Major Tom”, além de surpreendidos, somos arremessados a um outro modo de pensar o mundo. A partir dali estaremos junto daqueles cinco corpos que brincam, e é por meio dessa brincadeira que surgirão os fantasmas, meteoritos e tralhas espaciais que falei lá atrás. O regime de citações, inaugurado como território semântico através da música inicial, é definitivamente incorporado quando os intérpretes sobem ao palco e executam fragmentos de ações de super-heróis, robôs ou monstros intergaláticos, de forma repetitiva, intensiva e intermitente. Se não distinguimos quais entidades específicas cada um incorpora — e isso realmente não importa — pelo menos acessamos como que um motor das ações. É como se por meio da repetição pudéssemos vislumbrar o mecanismo intensivo, o élan vital que move uma criança no momento em que pensa/faz novos mundos possíveis.


Mas falo isso como se pudesse me distanciar de mim ou da minha infância. Somos acostumados a ver uma fotografia antiga e pensar que aquilo já passou, como se entre o adulto e a criança não houvesse solução de continuidade. No entanto, como nos alerta Bergson[1], o tempo é feito de carne, e a passagem de um estado a outro não para de se dar. Na real, nem existiriam pontos, mas tão somente pontes — um dégradé sem fim. Ao acompanhar toda essa variedade de “vruuum's”, “pow’s”, “ziiiin’s”, “iáááá’s” e “tchen-tchen-tchen’s” emitidos pelos dançarinos, sou reconectado a um tipo de

relação com o corpo e com as coisas que só poderia ser acessada por um adulto em momentos de muita soltura, intimidade e despretensão. Muitas vezes me observei, junto aos outros espectadores, procurando, com olhar ávido, qual seria a próxima atração surgida daquele buraco negro. É que Desastro lança mão de uma consciência brutal dos pontos focais da cena, trajetórias do olhar, suspensões de expectativa e muitas outras malandragens mágicas, típicas de parques de diversão e filmes hollywoodianos, de forma que assistí-lo já se torna jogá-lo.

 

É aqui que retornamos ao começo, como que imitando os intermináveis ciclos de morte-vida desenhados por Neto Machado & Cia. Quando um adolescente profere “isso é de fudê”, o que está fazendo, na verdade? Está operacionalizando todo um sistema de coordenadas. Dispondo suas próprias ferramentas frente a um mundo-corpo em rotas de transe ascendente. É então que “de fudê” torna-se o centro galático de novos pensamentos e travessuras. Mas cuidado. Isso não é o mesmo que um crítico dizendo: “isso é belo”, “isso é leve”, “isso é divertido”. Estas são categorizações estáticas. Pelo contrário, “isso é de fudê" mobiliza mutações imediatas, tanto na percepção de quem assiste algo “de fudê”, como quem diz para si: “isso é de fudê”, e intensifica ainda mais seu próprio jogo.

 

Em suma. Para o espírito juvenil, que está presente de bom grado em todas as almas não-pequenas, “de fudê” já é uma ação no mundo. A todo momento de Desastro, seja qual for a idade do espectador, brota a mesma exclamação não judiciosa, arejada e dinâmica: “porra, isso é de fudê”. E o mundo pode ser novo de novo. Pelo menos enquanto isso durar.

 

[1] Henri Bergson (1859 - 1941), filósofo francês.

Por Neto Machado

Rebate à crítica "De fudê" de Daniel Guerra

Por Daniel Guerra

Parece que todas as coisas grandes, para que soem naturalmente grandes, devem invocar para si, em algum momento, todo o peso da história. Esse tipo de procedimento funciona bastante bem em monumentos, na vida política e nas academias. Constróem-se labirintos de referências, datas, cimento, mármore, nomes e toneladas de cobre, diz-se “a história nos julgará”, e é claro que a crítica também não se furtaria em vestir seus próprios lauréis. Na crítica teatral, quando se quer subir em coturnos trágicos e cantar aos deuses, a melhor coisa a se fazer é demonstrar um grande entendimento da história da dramaturgia e metralhar nomes e datas pra tudo quanto é lado.

Por algum motivo desconhecido eu não era leitor da CULT, mas na tentativa de deixar de lado o soterocentrismo fui atrás de alguma crítica com um mínimo de fôlego no jornalismo brasileiro, e o que encontrei foi o colunista Welington Andrade falando da nova peça de Gabriel Villela, aquele do “Romeu e Julieta” com o Grupo Galpão nos anos 90, cuja poética — dizem por aí — recebeu a alcunha de “o triunfo do teatro caipira”, rótulo criado por ninguém menos que Antunes Filho[1], e olha eu já subindo nas minhas tamancas referenciais.

 

O professor Welington, que escreve na coluna “Cena Contemporânea”, abre seu texto invocando James Joyce, que por sua vez fala a respeito do norueguês Henrik Ibsen: “Quando a arte de um dramaturgo é perfeita, a crítica é supérflua”. Se eu desse plenos ouvidos a Joyce, e ainda a Andrade, pararia naquele mesmo instante. Pensava: ora, meu amado Joyce, se a crítica é um mísero reflexo da perfeição de uma obra, por que cargas d’água estou eu aqui, começando esse enorme trabalho que é dedicar dez minutos a um texto? (Depois que escrevi isso fui ajoelhar no milho, debaixo do altar).

 

Mas, como sou um trabalhador dedicado e minha mãe me disse para nunca confiar em pessoas mortas, respiro e continuo descendo o cursor, preferindo acreditar, pelo menos por enquanto, que vivo é o Andrade e que o morto é Joyce. A crítica, que deveria tratar do espetáculo teatral “Peer Gynt”, dedica quatro enormes parágrafos à vida e obra de Henrik Ibsen, que não por mera coincidência é autor do texto “Peer Gynt”. Mas é só no quinto parágrafo que finalmente ficamos sabendo da existência desse artista mineiro, o Villela, que, segundo o crítico, “optou por compreender o personagem [Peer Gynt] por meio da ótica de uma linguagem artística genuinamente brasileira”.

Porém, no lugar de discutirmos o que seria esse problemático “genuinamente brasileiro”, preferiria ater-me à estrutura daqueles quatro parágrafos iniciais. Eles sintetizam dois dos quatro paradigmas da grande crítica: o historicismo e o a priori dramático.

Ao ler esse e outros textos de Welington, é flagrante a eleição do drama como epicentro legislador de toda a análise crítica. É claro que isso não vem, vamos supor, exclusivamente da consciência moral do autor. Essa é apenas mais uma das incorporações de uma tradição que o teatro carrega no lombo a milênios, e que, ao menos no campo da escrita especializada, parece não querer desencostar. Porque para a maioria dos criadores, é mais do que óbvio que a raíz do juízo estético da cena deva ser a própria cena, e mesmo em montagens fiéis aos textos dramáticos, deve ser o acontecimento, sua duração e presença, o crivo absoluto na hora de uma análise. Até porque o que seria de Ibsen sem um Villela? Um bom livro pra se ler num dia frio, preferencialmente escutando Djavan. Em outras palavras: um clássico da literatura.

E assim prosseguirá a sua análise, tentando sempre virar o olhar para o espetáculo em si, mas não resistindo à tentação de retornar às duas musas, Dramaturgia e História, para, a partir delas,  comparar as malajambradas belezas posteriores. Por falar nisso, a comparação é a tônica da análise welingtoniana, e é no vácuo dela que entramos nos próximos dois paradigmas da grande crítica: a adjetivação enquanto muleta e a mutilação enquanto metodologia.

Num movimento duplo, que cria dois planos paralelos e concorrentes (a cena e o texto), Welington é obrigado a agir como um pêndulo. E, já que um pêndulo não pode existir em dois lados ao mesmo tempo, é obrigado a estabelecer comparações entre a magnum opus ibseniana e o espetáculo villeliano, mecanismo que dá vida a passagens como a que leremos agora:

 

A Ibsen foi atribuído o epíteto de “Shakespeare burguês”, a partir do momento em que sua obra entrou na segunda fase, a das peças de tese sobre a mentalidade da classe média, mas talvez seja na primeira fase que ele tenha se aproximado com mais veemência do bardo inglês, justamente por seu desabrido romantismo e por sua vibrante poesia. Pois intensidade romântica e acento poético é o que não faltam à encenação de Peer Gynt por Gabriel Villela, exótica por conjugar cenografia, figurinos, iluminação, adereços e maquiagem em uma mistura da qual exala a aura de uma plasticidade inebriante. Cada um desses elementos funciona como uma espécie de nota musical de cujos cruzamentos surge uma portentosa imagem sinfônica em cena, de intensidade natural e beleza orgânica.

 

 

Percebam como Villela, frente aos bustos “veementes” e “vibrantes” de Shakespeare e Ibsen, torna-se quase um bom selvagem, de “intensidade natural” e ‘beleza orgânica”, e é aqui que Welington mostra toda a sua destreza na hora de cunhar adjetivos, como por exemplo: "A instauração em cena de climas que alternam lirismo, vida onírica e psicodelia se dá por meio da execução de canções dos Beatles – o que constitui um verdadeiro achado” ou “Certamente, este é um dos pontos altos do espetáculo, sublinhado, vale destacar, tanto pela interpretação inspirada de Maria do Carmo Soares como pela bela voz de Letícia Medella”. Neste último, já vemos despontar então o famoso “ponto alto”, que merecerá um parágrafo à parte.

Encontrar o ponto alto é a salvação de todo crítico. Se você depara com um deles, pode considerar o trabalho feito. O ponto alto, assim como o “verdadeiro achado”, é a senha para um encontro feliz entre crítico e artista criticado. Achando um ponto alto, o crítico já sente que pode respirar tranquilo, porque essa é a sentença que legitimará o texto frente ao artista, que, com os olhos tremelicando, no mais das vezes saltará todas as linhas para ler finalmente, em algum momento do texto, seu lindo nome ligado a algum “ponto alto do espetáculo”. E por falar nisso, o ator premiado da vez foi Chico Carvalho, que, segundo Welington, foi o “destaque do elenco”, com um “trabalho de corpo e voz [que] confere ao protagonista uma energia criativa toda especial.”

Se um espetáculo é corpo vivo, sujeito a pequenas ou grandes transformações ao decorrer de sua duração, porquê deveria ser condenado à dissecação, privado de sua coerência interna ou caos imanente, em prol do labor de cirurgiões destrambelhados?

A GRANDE CRÍTICA

Sobre a crítica “Imperadores de nós mesmos”, de Welington Andrade, na Revista CULT, publicada em 10 de outubro de 2016: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/welington-andrade-imperadores-de-nos-mesmos/

Esse tipo de adjetivação é uma muleta porque é o que permite ao crítico dissimular suas fraquezas. Quando as únicas ferramentas se baseiam na história e na dramaturgia, pouco sobra ao espetáculo enquanto acontecimento. É ai que o crítico jornalístico derrapa e é obrigado a fazer uso de certas artimanhas. Afinal, a presença não é feita de talento somente, e há aqueles que não sem razão afirmam: “talento é chocolate”. Porra, anos e anos de estudos da presença, da ausência e o cacete a quatro, seminários, congressos sobre o corpo enquanto coisa e a coisa do aplicativo enquanto corpo incorporado da ameba líquida do pós Bauman, Sennett e Foucault, para vir Welington e me dizer que o Chico é destaque porque o Chico é capaz de acessar “uma energia criativa toda especial”. Pelo amor de deus, então que alguém ao menos justifique a existência daquela praga de sotaque semiotiquês universitário paulista, explicando por A + B porque Chico, que é destaque lá no espetáculo do Villela, é melhor que os demais colegas de trabalho.

E que procedimento permite a ascensão dessa adjetivação enquanto estilo? Aqui chegamos ao último paradigma, a mutilação. Perpetrada por nove em cada dez escritos sobre as artes cênicas, a mutilação é, como o próprio nome diz, a separação em partes do todo cênico, geralmente sob os seguintes disfarces: atuação, cenografia, figurino, iluminação, adereço e maquiagem. Vamos encontrar um grande exemplo de mutilação naquele fragmento do texto welingtoniano. De acordo com Welington, é a conjugação das partes que permite ao todo a exalação de uma “aura de plasticidade inebriante”. De qualquer forma, Villela teve sorte, porque no seu espetáculo tudo se misturou no caldeirão do crítico formando uma boa sopa, e talvez seja essa a malandragem fundamental de muitos artistas.

O que acontece na mutilação é que as instâncias técnicas do espetáculo são confundidas com o espetáculo em si. São colocadas no lugar dos dispositivos e emanações, que por sua vez não são em nada parecidos, nem no cheiro, nem no gosto, nem na cor, com qualquer dessas instâncias técnicas, que certamente as promovem, mas que não podem tomar seus lugares. Se um espetáculo é corpo vivo, sujeito a pequenas ou grandes transformações ao decorrer de sua duração, porquê deveria ser condenado à dissecação, privado de sua coerência interna ou caos imanente, em prol do labor de cirurgiões destrambelhados?

E, assim como no texto da crítica local Eduarda Uzêda, que analisei numa edição anterior[2], ocorre a mesma finalização sintomática, como se a crítica jornalística fosse sustentada por dois pilares: a moralidade e a identificação. Em algum momento, ambos os estilos parecem ser compelidos a emitir uma nota moralizante ligada a uma consideração sobre a pertinência desta ou daquela “mensagem”, para a correta edificação do leitor/espectador. Tal comportamento estilístico coaduna com a aura jornalística, mas também com o universo classe média, a que muitos jornalistas se sentem naturalmente impelidos no momento da escrita. Acostumados que estão, desde sua mais tenra criação, a adular e excitar a opinião da maioria e do senso comum, devem necessariamente escrever coisas tão soltas e gratuitas como: “Entretanto, não passam incólumes na adaptação do próprio encenador a crítica ao esnobismo de classe e à falta de ética comercial, quando Peer se torna um mercador no Marrocos.”

Nessa frase encontramos o “ponto alto” da análise. Por meio desse pequeno período, aparentemente deslocado e non-sense, vemos transparecer a quem o texto é direcionado. O jornalismo impresso vem tomando machadadas brutais desde a virada do século, e a hora do tombo se aproxima vertiginosamente. Mas mesmo nas publicações virtuais, especializadas e responsáveis, como é o caso da revista CULT, subsiste um tom jornalístico que se conecta a uma suposta vontade da classe média em só fruir grandes nomes e espetáculos. Na coluna “Cena Contemporânea” encontramos um terreno de fomento do mais-do-mesmo em vez da exploração de territórios arriscados.

Enquanto isso, lá fora continua o ruído das machadadas, e tal como os personagens de Tchekhov[3] — para usar uma metáfora dramática — persistimos olhando pela janela. Uns esperam o tombo final como uma grande redenção, outros apenas desesperam, outros ruminam o passado. Mas o real, o real mesmo, é que o mainstream está cada vez mais circunscrito ao próprio mainstream. A televisão, os jornais, os espetáculos e os críticos mais “oficiais” tem falado cada vez mais deles mesmos e para eles mesmos, porque sua penetração nos outros mundos, essa miríade de novos mundos criados pelas redes sociais e múltiplas ações urbanas, se torna mais e mais impotente. Ou tais publicações escolhem encarar a realidade, falando realmente para os corpos loucos e complexos deste milênio, ou continuarão presas na sala de estar, esperando o anjo exterminador, monologando para outros monologadores, todos ainda pensando que existirá um dia um futuro mais alto, a celebridade, o foco, a cena, o drama, Ibsen, século XIX, e por aí vai. Até que se diz basta e olha-se para o a potência seca de cada machadada. Talvez alguém transforme aquilo em música. E publique diretamente no seu Soundcloud.

 

 

 

[1] Diretor teatral paulista (1929 - ).

[2] http://revistabarril.wixsite.com/revistabarril/critica-da-critica-lapides-pracas-e

[3] Anton Tchekhov, médico, escritor e dramaturgo russo (1860-1904). O texto invocado é “O Jardim das Cerejeiras”.

Vidro e Grão - Rizoma de Há violência no Silêncio?

Por Igor de Albuquerque

Vidro e Grão - Igor de Albuquerque
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Em novembro deste ano a França mais uma vez invade o Brasil com sua Dança. Em uma mostra que percorre 15 cidades de nosso território, composta por 16 companhias que trazem coreógrafos consagrados, como Jerome Bel e Maguy Marin, e outros menos conhecidos, como Mourad Merzouki, com sua Cia Käfig, que estará em cartaz no Teatro Castro Alves, no dia 13 de Novembro, em única apresentação.

Merzouki carrega em seu histórico o contato com as Artes Marciais, o Circo e as Danças Urbanas. Interessa ressaltar essa última característica no trabalho deste coreógrafo e a importância que as Danças Urbanas adquiriram no contato com a Dança Contemporânea, especialmente no Brasil e na França. Mas também, quais características as Danças Urbanas têm adquirido quando levadas aos palcos mesmo sem um diálogo tão próximo com Dança Contemporânea.

Partindo do pressuposto de que qualquer tipo de criação, artística ou não artística, possui como matéria prima a base cultural que os indivíduos vivenciaram, ou seja, em que lugares viveram (cidades, casa, apartamento, fazenda), quais músicas ouviram, em que comunidade conviveram, o que comeram, com quem dançaram, com quem caminharam, onde estudaram, que filmes viram ou, mesmo se viram na TV ou no cinema. Esses elementos estão presentes no processo criativo, e a habilidade de manipulá-los, organizá-los e as relações que esses artistas conseguem estabelecer entre eles dão a cara e o teor de suas composições.

A cultura hip hop começou a se delinear em fins da década de 1960 e início de 1970. Vários elementos contribuíram para elaboração dessa cultura e de suas manifestações pela dança. Dentre eles, a Black Music americana, com o Soul e a Funk Music; dão crescimento da população de  imigrantes latino americana para os EUA, levando consigo danças como a Rumba, Mambo, Cha-cha-cha, a Salsa e a própria Capoeira; o universo tecnológico do período com filmes de ficção cientifica e a popularização do videocassete, de câmeras, da TV a cabo, do computador pessoal; o diálogo da cultura pop com as danças hip hop levando para shows de inúmeros cantores, as tensões criadas em metrópoles inchadas, desiguais, e, sobretudo, violentas, com pouca oferta de lazer para os mais pobres.

Portanto, considerando que só é possível criar algo a partir da sua cultura, e de que essa é permeada por memórias e universos imaginários, a questão que se coloca é: quais os universos imaginários que geralmente são acionados por coreógrafos com  origem nas Danças Urbanas da Cultura Hip Hop?

A partir dessa reflexão, apresento quatro núcleos de temas e universos imaginários que creio serem recorrentes quando esses artistas colocam seus trabalhos em cena, obviamente, não é possível fechar nesses quatro, mas considero estes um ponto de partida. São eles: o universo tecnológico; o trânsito com a Cultura Pop; a periferia das grandes cidades e o retorno constante à raiz; a busca por uma origem.

 

Universo Tecnológico

 

O período no qual as danças urbanas e a cultura hip hop começam a se delinear é marcado por alguns elementos do que se pode chamar de uma cultura tecnológica, que não começa nesse período ou tampouco acaba nele. Essa linha de raciocínio considera dois pilares que são importantes para o hip hop. No primeiro, o universo cinematográfico da época, com destaque para filmes como Star Trek (1966) que começa inicialmente como uma serie na TV, Star Wars (1977) que se segue com O exterminador do Futuro (1986), Robocop (1987) - dentre outros. Esses filmes com frequência mostravam robôs e formas pelas quais esses robôs se movimentavam, alguns mais duros e rígidos, como Robocop, e outros mais humanizados, como os das  versões de Exterminador do Futuro.

O impacto dos filmes e das novas tecnologias estimulou a criação de um universo imaginário povoado por robôs e seus padrões mecânicos de movimentos, que primeiro se tornaram dança social, já que era comum ver dançarinos imitando robôs em festas. Posteriormente, a dinâmica social fez com que esses movimentos adquirissem codificação e se estruturassem em um conjunto de técnicas, resultando em uma Dança Urbana.

Num segundo pilar, outro fator tecnológico importante no desenvolvimento das danças urbanas é a popularização do videocassete.  Esse mecanismo situa-se entre o cinema, a TV, o DVD e o início da difusão de vídeos pela internet.

O videocassete apresenta uma nova dinâmica de ação ao permitir outra relação com as imagens, na medida em que torna possível pausar, passar para frente, reproduzir em câmera lenta ou mesmo assistir pausando a imagem, vendo-a quadro a quadro.  O videocassete interfere diretamente na maneira de se aprender movimentos, pois torna possível perceber com mais clareza como os movimentos acontecem tecnicamente, ou seja, quais são, por exemplo, os pontos de contato com o solo ou o caminho do movimento.

Urbanoides 2.0, coreografia de Frank Ejara da Cia Paulistana Discípulos do Ritmo, criada em 2010, é um exemplo da busca por essa estética andróide e que tenta criar um universo robotizado e tecnológico.

 

 

O trânsito com a Cultura Pop

 

Hoje é senso comum a ideia de que ninguém trouxe o Hip Hop ao Brasil, e de que a responsabilidade por apresentar as Danças Urbanas ao país ficou a encargo dos videoclipes de cantores americanos como Michael Jackson, dos comerciais que utilizavam os movimentos mais virtuosos para vender produtos e por filmes de Hollywood, como Breakdance 1 e 2 (1984), que demarcaran as primeiras apropriações da indústria cinematográfica americana do tema. Acredito que a difusão da Cultura Hip Hop e das Danças Urbanas em outros países, e mesmo em várias regiões estadunidenses, tenha ocorrido da mesma forma.

Quais os universos imaginários compõem as criações coreográficas dos coreógrafos que vem das Danças Urbanas?

Por Vanilton Lakka [1]

"Pixel", de Mourad Merzouk/ Fotografia: Guilles Aguiar

Interessa ainda destacar que quando essas danças começam a interagir com a TV, os Clipes e o Cinema, elas ainda estão em fase recente de elaboração. Dessa forma, a aproximação resulta em um trânsito de mão dupla, no qual essas danças interferem nos shows e no modo como os cantores e dançarinos se movimentam no palco, ao mesmo tempo  que as adaptações feitas nos movimentos para levar aos palcos interferem também na configuração desta cultura de corpo tão recente.

Não é raro perceber que coreógrafos tomam decisões de composição a partir da experiência de construção cênica realizada nos palcos e na TV, optando por elaborações cênicas que privilegiam a frontalidade, sendo,  portanto, bidimensionais e tentando imitar a lógica da tela, ou mesmo reproduzir gestos e movimentos de cantores.

As criações do videomaker, dançarino e coreógrafo americano Daniel Cloud Campos com frequência fazem referência a elementos da Cultura Pop, seja nos palcos , sejaem suas coreografias feitas para o vídeo. Dentre elas ressalto o vídeo Like Mike (2011), que parte das movimentações e do próprio personagem Michael Jackson, enquanto ícone da Cutura Pop e referência para o próprio Cloud.  

 

A Periferia das Grandes Cidades

 

As metrópoles americanas passaram por um aumento da população de imigrantes centro americanos e caribenhos, bem como mexicanos e sulamericanos nos últimos 50 anos. Essas comunidades chegaram com sua cultura e com a esperança de viver o sonho americano; algumas fugindo de guerras civis, no caso de El Salvador, outras tantas de regimes totalitários comuns nas Américas. Essa população, somada a outros fluxos migratórios, inflou rapidamente cidades que não haviam sido projetadas para receber tal contingente de pessoas. Esses fluxos migratórios levaram à convivência de comunidades vindas de lugares distintos, compartilhando espaço em cidades desiguais, precárias e com pouca oferta de equipamentos de lazer. Um cenário que não raras vezes se igualava a um cenário de guerra.

Como consequência direta desse fluxo, muitas cidades americanas viram uma explosão da violência nesse período, ocupadas por gangues que delimitavam fronteiras e disputavam espaço e zonas de influência na cidade. Esses confrontos estão na estruturação das Danças Urbanas, presentes nos movimentos que acontecem em um posicionamento espacial circular de batalhas, com muitos movimentos imitando golpes, e que de algum modo, guardam uma energia de confronto, que, com frequência, emerge nas coreografias em forma de temas.

Trabalhos como Meio Fio, da Cia Membros de Macaé-RJ, lidam com essa característica ao discutirem violência urbana e o uso de drogas nas periferias dos grandes centros.

 

Retorno constante à raiz e a busca por uma origem

 

Não é raro encontrar discussões entre os praticantes de Danças Urbanas reivindicando um retorno às raízes, a busca por uma origem e a eleição de iniciadores das danças e da cultura, a busca por uma espécie de cosmologia e genealogia do movimento cultural e das práticas corporais que compõem as danças hip hop. Como as danças urbanas são um fenômeno recente, muitos dançarinos reconhecidos por terem iniciado as primeiras danças ainda estão vivos. As primeiras formulações datam das décadas de 1970 e, de lá para cá, elas passaram por algumas etapas que resultaram em novas danças, atualizações de outras e questionamento das atualizações realizadas.

Qualquer tipo de tentativa de explicar o fenômeno da busca da origem é incipiente e incompleto, mas o que nos interessa aqui é que essa busca é recorrente em coreógrafos que emergiram da Cultura Hip Hop.

Não são raras as  coreografias com títulos que buscam essa ligação, que almejam alcançar os movimentos originais e que seriam os verdadeiros movimentos do hip hop. Essa busca acaba por interferir não só nos movimentos, mas também nos figurinos, no cenário, na música e, por fim, nas ambientações presentes na obra.

Caso recente é da Cie Accrorap, com a coreografia The Roots, do coreógrafo Kader Attou. Nessa obra não há objetos, música ou figurinos que remetam a uma origem do hip hop, mas todo trabalho é composto por movimentos de Popping e B.boy, tidos como as danças originais das Danças Urbanas. 

Pixel, em cartaz esse ano em várias cidades brasileiras, traz o histórico do seu criador com as Danças Urbanas, bem como suas outras vivências. Pixel talvez seja um trabalho no qual se possa verificar justamente a acumulação de experiências com universos culturais com os quais Merzouki teve contato. Apesar desse trabalho não expor nenhum dos universos imaginários mencionados, talvez apresente justamente um quinto desses universos, cujo tecido elementar seja a capacidade da Cultura Hip Hop de se ajustar, conviver e interagir com os demais.

_________________________________________________

[1] Coreógrafo, Dançarino, Professor da Escola de Dança da UFBA, Bacharel em Ciências Sociais-UFU/MG, Mestre em Artes PPGArtes-UFU/MG, Doutorando em Artes Cênicas PPGAC-UFBA.

I: ao dramaturgo, ao diretor e aos atores de “E a Vida Continua...”

Caros criadores,

Não gostaria de, assim, principiar esta carta, mas devo dizer, logo de início, que saí triste do Teatro ISBA, na noite de 9 de outubro de 2016.

Vejam bem, fui assistir ao espetáculo de coração aberto. Achava mesmo que a peça poderia me mostrar uma maneira mais positiva de enxergar a vida e seus obstáculos, dar-me um pouco de otimismo, subtrair-me a ansiedade. Tanto foi assim que nem dei importância ao cenário fajuto, à encenação ingênua, aos corpos automatizados. Entretanto, existem coisas que são demais, sobretudo no teatro! No teatro, é possível suportar a ausência de uma luz grandiosa, de efeitos especiais ou mesmo de interpretações extraordinárias, mas, por favor, criadores, não nos incite, a mim e a meus colegas de plateia, o ódio, a docilidade, a utilidade. Isso, eu não aceito! Isso é de entristecer! Sei que minhas palavras não passam de uma opinião pessoal, mas, afinal de contas, isto é uma carta – modo como também são chamados os textos psicografados que nos chegam. Vocês sabem a que me refiro.

Bem, desculpem algum descontrole, dirão que estou sendo obsidiada, mas vamos ao que interessa. Atualmente, reconheço-me como mulher e tenho trinta anos. Mesmo que não me reconhecesse como tal, gostaria, ainda assim, de poder enxergar como absurdo o que, mais à frente, relatarei, mas, persistindo a impossibilidade de entendimento, quem dera mesmo, apenas, ser um peixe, ó humanos... Vamos à obra, só para citar algumas das barbaridades: o personagem Caio passou a ter uma nova namorada quando descobriu que sua esposa, Evelina, estava enferma. Caio trata essa nova namorada muito mal: empurrões, pontapés e palavrões. Primeiro, vocês fizeram disso uma piada: um homem violento é engraçado? Poxa, fico sem palavras. Segundo, a tal namorada, apesar desse tratamento, vive pedindo a Caio que case com ela. Sei que ainda é uma prática comum. Apesar disso, acredito que se a violência de Caio fosse tratada, pelo espetáculo, de modo sério, nós, público, enxergando o absurdo a que nos submetemos cotidianamente, seríamos convocados à insubmissão. Insubmissão ao que nos fere, entende? Como um convite à evolução mesmo – assunto que vocês abordam. E não é isso que acontece: o que nos chega é uma mulher maltratada e submissa, como tantas, e é isso mesmo, afinal, a vida continua... Lamentável. E ainda tem mais: Ernesto, já falecido e tido como um espírito razoavelmente iluminado, pai dessa mulher, entediado no além, está arquitetando um jeito de fazer com que todos aqueles que cometeram crimes na terra paguem por isso lá mesmo, ops, aqui mesmo – é que, com tudo que o espetáculo me ensinou, não vi diferença entre o aqui e o além. Caio é também um assassino: matou um pretendente de Evelina porque não aceitava perdê-la. Diante desse cenário, qual a grande ideia de Ernesto para sua filha? Sua grande ideia é favorecer-se de sua posição de alma penada e sussurrar ao ouvido de Caio que aceite casar com sua filha, pois o homem a quem ele matou será seu filho no futuro e, assim, ele poderá amar aquele que, um dia, odiou etc. Essa história, que vocês vendem, de que a criança amoleceria o coração de Caio não me convence. Quantas crianças maltratadas, abandonadas? Tá errado, isso. E outra coisa: e a mulher? Que tem ela a ver com o destino desse homem violento, assassino? Isso, vocês não disseram. O pai não pensou nela? Não tinha um ouvido de homem mais amável para soprar? Ou por que não soprou à própria filha? “Meu amor, saia dessa, esse problema não é seu!” Ou será que Caio melhoraria depois do casamento? Sugiro olharmos as estatísticas! Injusto, viu? Quem tem um pai desses não precisa de inimigo. Ou melhor: quem tem um anjo desses não precisa de obsessor.

Outra coisa que devo falar é sobre o modo como a peça termina. Uma amiga, uns anos atrás, alertou-me pra uma coisa muito interessante: ela pontuou como as histórias de amor, mais divulgadas, são ludibriadoras. Vejam bem, os casais, normalmente, passam por um monte de impedimentos até que, finalmente, consigam ficar juntos e, então, o enredo termina com um “felizes para sempre”. Por favor, sejamos honestos! Os espíritos podem ter esquecido, mas nós, que vivemos a vida real, sabemos que as maiores dificuldades e provações, no quesito amor, encontram-se na convivência. Essa parte, as historinhas não mostram. Daí, vêm vocês e fazem a mesma coisa: apontam o que cada personagem realizou em vida e o que deve ser

Por Bárbara Pessoa

CARTA AOS CRIADORES

Então, como educadora, fiquei pensando se não seria interessante organizar, aí no além, tipo umas oficinas, debates, encontros, experimentos com outros espíritos de luz interessados numa humanidade melhor.

consertado para que evolua espiritualmente; apresentam os planos dos espíritos alcoviteiros para cada um dos vivos e para os que devem reencarnar; vem todo mundo pra terra se encontrar, a fim de passar pelos entraves e evoluir, e então, quando a vida vai continuar e tudo vai se desenrolar, o que acontece? A peça termina. Tenham santa paciência! Isso é nos tapear! Desculpem-me a franqueza, mas, na peça, a vida não continua.

II: a André Luiz.

Querido espírito de luz,

o senhor, autor do texto psicografado, levado aos palcos e às telas, merece, com certeza, todo nosso respeito, espíritos em erro. E é com essa deferência que vos escrevo. Na verdade, com toda ignorância que, a mim, cabe, gostaria, sem me intrometer, de fazer-lhe um pedido. Vou tentar ser breve.

Concordo que o Todo Poderoso concebeu uma bizarria a partir do céu e da terra. Entendo vossa preocupação, e de vossos semelhantes, nas reparações mundanas. Interpretei, a partir de “E a vida continua...” e de algumas leituras kardecistas, que os espíritos de luz devem auxiliar os demais espíritos no caminho da evolução espiritual. Não me leve a mal, mas sei que vocês têm tempo de sobra por aí – e não vejo problema algum nisso; o que digo não é nem uma crítica nem um deboche, pelo amor de Deus. Então, como sabe, aqui na Terra, as coisas continuam difíceis para quem escolhe exercer o livre-arbítrio. E o livre-arbítrio, o senhor bem compreende, é um direito nosso. Tenho absoluta convicção de que, do auge de sua instrução, o senhor deseja um mundo mais justo, menos sangrento, mais alegre. Além disso, o senhor também deve estar por dentro de tudo que vem acontecendo aqui embaixo. As coisas mudaram, afinal, a vida continua... Então, como educadora, fiquei pensando se não seria interessante organizar, aí no além, tipo umas oficinas, debates, encontros, experimentos com outros espíritos de luz interessados numa humanidade melhor. Uma atualização, digamos. Tenho até uns nomes interessantes de desencarnados que fizeram muito pelo mundo, enquanto vivos, e que podem ajudar. Dou apenas um exemplo para ilustrar: Paulo Freire, aquele da “Pedagogia da autonomia”, para citar um título. O cara foi professor, alfabetizador, afirmava a conscientização, capacitação e libertação de todos os oprimidos, trabalhou na zona urbana, na zona rural, em países considerados de terceiro mundo (principalmente na África), revisou e propôs currículos para a Educação, lutou pelos direitos humanos, desenvolveu trabalhos para a educação de crianças, mas também de adultos e, principalmente, estampava indignação com qualquer tipo de injustiça. Um verdadeiro cristão, eu diria. Imagina só, André, pessoas, emancipadas, exercendo o livre-arbítrio! Porque livre-arbítrio, em meio ao obscurantismo, não tem chance de dar certo. Concorda?

Enfim, Freire foi apenas um exemplo e outros nomes ele mesmo poderá sugerir. Entretanto, ratifico que um bate-papo com essa turma melhorará sensivelmente a qualidade dos conselhos que os espíritos de luz venham a nos dar.

Com sinceridade, obrigada pela atenção.

 

III: ao grande criador.

Não tenho como defendê-lo.

Ser artista e compor, juntamente com outros artistas, um coletivo de crítica têm sido, definitivamente, um rico aprendizado. Quando falamos em “exercício da crítica” é porque, de fato, se configura num treino extremamente abstruso: aquietar um pouco nossas ambições estéticas para adentrar o universo poético do outro, sem contar com a disponibilidade empreendida. É por isso que eu acredito que as grandes potências críticas estão com os próprios artistas. O trabalho está sendo demasiado grande para que vejam, simplesmente, como um bando de jovens intelectuais e “contemporaneozinhos”. 

 

Tenho experimentado e estudado minhas iniciativas críticas. Venho tentando não permitir que minhas “projeções estéticas” interfiram demasiadamente na análise por mim feita – embora, em algum nível, ela sempre esteja lá, presente, logo, “expectante” por natureza. Contudo, também sou passível de projetar minhas inócuas ambições de maneira categórica.

 

Ver o espetáculo O Galo, me fez constatar que ainda sustento muito do “SE eu estivesse fazendo isso, faria assim ou assado”.  Para compor esse texto tive que acessar alguns documentos, alguma coisa que apontasse o resquício de um pensamento ante crítico. Lá estava, nos recônditos porões da academia de arte, um exercício crítico sobre a peça O Olhar Inventa o Mundo, da CIA dos Novos. Crítica que eu tive de refazer 2 duas vezes para cumprir o anseio catedrático – que tempos sofridos foram aqueles de meus primeiros anos numa universidade.

 

Além da exigência em se ler a peça teatral, ou seja, desvendar os signos propostos, e dizer, como quem traduz uma língua para outrem, do que se trata; tinha de apontar lacunas e faltas, encontrar defeitos necessários, inclusive, para a evolução do artista criticado. A partir daquele dia foram anos entrando no edifício teatral, e em outros lugares de performance, tentando observar tudo. Nada poderia fugir aos meus olhos sagazes... Dark times. O que a gente não faz para não parecer uma porta diante de nossos colegas de sala. Ser aluno de uma escola de teatro foi tão deprimente quanto ser adolescente. 

 

Entro na rinha d’O Galo e dou de cara com uma luz hospitalar dessas lâmpadas bastão (não sei ao certo o nome dessa lâmpada) e durante a minha caminhada já ergo meu olhar um pouco mais acima, percebo que, em algum momento da peça, a lâmpada irá subir ou descer. “Significa que o diretor não quer sujar demais aquela cena com aquele objeto central a perturbar nossa visão o tempo inteiro”. SE eu fosse Alonso, eu perturbava.

 

Olho os projetores em cada extremidade do retângulo minimal. Observo dois bandolzinhos (um em cada projetor) que será acionado por alguém fora de cena. Os bandolzinhos protegem os quadros brancos de serem atacados pela luz gelada dos projetores em hora indevida. “Significa que projeção que é projeção tem de entrar na hora certa.” SE eu fosse Alonso... faria o mesmo.     

Olho outros elementos cenográficos que estão fora de cena e que, logicamente, possuem rodinhas que favorecerão os atores em seus manuseios. “Significa que o diretor quer dar dinâmica para a peça.” SE eu fosse Alonso, esqueceria aquele galinheiro de metalon. 

 

As projeções, em hora cirúrgica, se apresentam em momentos de contação, de narrativa do caso do filho morto. “Significa que, a todo custo, apostando um pouco em algo mais sugestivo, a direção quer deixar claro do que se trata.” SE eu fosse Alonso... sei lá o que eu faria.

Por Diego Pinheiro

“Se” Mágico

Selfie de Diego Pinheiro vendo O Galo, direção de Luís Alonso

Foto de Dôra Almeida

Vejo que os figurinos estão dependurados em uma estrutura próxima à arena em extremos opostos (na verdade, ambos, um pouquinho longe do centro), e que, detalhe, além dos figurinos em si, outros elementos estão à disposição. “Significa que a intenção da direção asséptica e simétrica é de localizar aquelas personagens: de um lado, figurinos masculinos e chapéus, de outro, figurinos femininos e conchas de feijão – que, num átimo marfuziano, funcionarão como lanternas, luminárias, talvez, que provocarão uma lúdica contracena”. SE eu fosse Alonso, não localizaria tanto.

 

Observo o dedão da mão direita de Cláudia Di Moura dando três levíssimas batidinhas na mesa, no começo da peça. “Significa que ela espera. Logo, estamos localizados pelo verbo e pela ação.”. A angústia daquelas três leves batidas permeará a peça inteira. SE eu fosse Alonso, pediria para Cláudia sofrer menos. SE eu fosse Cláudia, tentaria parar de sofrer.

 

Ouço a “voz de ator” de Lúcio Tranchesi, espaçada, mais na região da cabeça e super bem articulada, sem aquela baguncinha. “Significa que eu tenho que entender o texto mesmo”. SE eu fosse Alonso, pediria para Lúcio apostar numa sujeirinha, contrapondo o espaço purificado da encenação.

 

A trilha possui um tema, um estribilho por boa parte da peça. Começa com a voz ancestral de Violeta Parra. “Significa que a encenação quer dizer que ‘estamos na América do Sul, do Chile à Colômbia’.” SE eu estivesse dirigindo... ???.

 

O galinheiro que estava fora de cena entra. “Significa, mais uma vez, que há a tentativa de localizar espacialmente. O coronel e sua esposa estão no galinheiro.” SE eu fosse Alonso, só deixava a mesa mesmo.

 

A encenação, além de limpa, não se preocupa, isso de modo intencional, em mostrar todos esses elementos fora e dentro de cena a partir da composição minimalista da arena. “Significa que........  

 

- Isso eu não peguei.

 

Mas, SE eu fosse Alonso, não apostaria nessa estratégia que me remete a todo um histórico de teatro na Bahia.

 

Bem, agora é só pensar no como eu posso contribuir para a evolução desses artistas.

 

Penso:

“Diego... melhore.”

C R Í T I C A

R E B A T E

R E V E R B E R A

C R Í T I C A

R E B A T E

C R Í T I C A  D A  C R Í T I C A

R I Z O M A

E N C O N T R O

E N S A I O

T R E T A 

S E L F I E

EDITORIAL

s e t e m b r o

V.1 n.8 2016

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