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CRÍTICA TODO MENINO BAIANO TEM UM JEITO
REVERBERA Márcia Andrade
Crítica - MORTE: SONHO POSSÍVEL
CRÍTICA DA CRÍTICA -ECOLOGIA POR UMA CRÍTICA SOLIDÁRIA
RIZOMA - DECADANCE
ENCONTRO com Caio Rodrigo
ENSAIO ELOGIO AO HOBBY
SELFIE - CONFRONTAR PARA GARANTIR O RESPEITO
TRETA - Levantem das cadeiras e deem um passo atrás, brancos

julho #14

V.2 n.5 2017

Morte: Sonho Possível, por Bárbara Pessoa

Foto de Andrea Magnoni

EDITORIAL

: A atriz Márcia Andrade reverbera o espetáculo "Ponto e Vírgula: pequena pausa antes do fim”.

Bárbara Pessoa encontra o ator Caio Rodrigo.

Todo menino baiano tem um jeito, por Isabela Silveira

Ecologia por uma crítica solidária, por Giltanei Amorim

Decadance, por Daniel Guerra

Bárbara Pessoa encontra Caio Rodrigo

Elogio ao Hobby, por Igor de Albuquerque

Confrontar para garantir o respeito, por Alex Simões

Márcia Andrade reverbera Ponto e Vírgula

Levantem das cadeiras e deem um passo para trás, brancos, por Laís Machado

Uma peça fundamentada numa tese: a homofobia é uma construção dos heterossexuais para subjugar e eliminar os homossexuais e transexuais e só nos resta, aos LGBTQI, reagir com violência à violência. Em cena, dois atores, (suponho que sejam) gays, um branco (Taric Marins) e um negro (Bruno Roma); várias cadeiras espalhadas e jogadas pelo chão, uma mesa de bar com duas cadeiras, outra mesa de sala de aula, luz, projeção de cenas na parede ao fundo. As cenas projetadas remetem a um caso de homofobia fictício que vai sendo construído ao longo da encenação, e a outros eventos viralizados na Internet, como o caso emblemático de uma bicha preta que reage escandalosamente a uma prática homofóbica em uma estação de trem e mais uma ou duas cenas que não consigo identificar. Nós, os da plateia, somos 60 pessoas espalhadas sobre o palco, entre o proscênio e as laterais, além dos da plateia extra, cerca de 20 pessoas, que toparam assistir de longe, na plateia “tradicional” do Xisto.

Era a terceira vez que eu ia ao Xisto ver Condenados, sendo duas bem sucedidas. Sempre lotando, na segunda vez não tinha mais ingressos uma hora antes de iniciar. Um espetáculo que estreou em 2011, com uma temática aparentemente não muito popular, tem um público que me chama atenção por ser em parte familiar em ambientes LGBTQI, mas em sua maioria caras que não costumo encontrar nos equipamentos culturais do Centro de Salvador. Nem todos são gays e lésbicas, desconfio que os héteros sejam metade ou maioria. Duas das vezes em que fui ao Xisto identifiquei pelo menos uma pessoa trans, e sempre a plateia era em sua maioria negra. Há um frisson de chegar cedo, pegar um bom lugar, por conta da limitação do espaço, o que dá aquela sensação de que a peça começa antes, nos preparando para uma situação em que nossos corpos precisam estar dispostos, preparados.

Entramos, nos acomodamos. Um ou outro parece perdido porque, sabe como é, precisamos de companhia no teatro. Raramente as pessoas vão sozinhas, e nesse caso em especial são muitas as duplas de homens e de mulheres que querem sentar juntos. O diretor vai buscar uma cadeira extra na coxia e é dado o último sinal. Blecaute. Estou acomodado na lateral direita alta, porque quero ver as reações do público e porque sei que atrás de mim estão os atores concentrados antes de começar.

E começam. O tom é alto, gritado, nervoso. A tensão se instala entre nós. Dois irmãos que brigam porque um deles é gay. Temos em menos de cinco minutos de peça um confronto físico em nossa frente. Eles lutam e caem no chão. Dizem coisas horríveis um pro outro. Descobrimos que um dos personagens, o vivido pelo ator negro, é um filho bastardo, da empregada, que foi criado pela mãe-madrasta, e assim começamos com o filho-gay-negro-problema. A homofobia só não basta. Temos de entendê-la em suas intersecções.

Dessa primeira cena, segue a projeção já mencionada de uma sequência em stop motion do que será um caso bárbaro de homofobia que vai sendo construído ao longo da peça. Na ânsia de dar conta da complexidade do tema, o diretor-autor recorre a uma sequência de narrativas, representações, flashes que são muito pertinentes quase todos, e que são apresentados sem subestimar a plateia, pedindo que nós façamos as concatenações, que, a partir de nossos horizontes, recortemos o que nos interessa recortar. Nesse sentido, a escolha é acertada, porque se propõe a narrar não uma história, mas muitas: são quase 25 personagens vividos por 2 atores em pouco mais de uma hora. Dois atores que se esforçam dignamente em dar conta de tantas possibilidades de existências e conflitos.

Quanto a nós que assistimos, cada um que cate seus caquinhos de percepção, cole com sua experiência individual com o tema e vá refletir sobre o assunto depois que acabar a peça. Contudo, o problema é o tempo, que não temos, para concatenar. São raríssimas as pausas, os blecautes são um piscar de olhos, e a sequência frenética de histórias que são costuradas em cena compromete as transições, as nuances para que os atores nos sinalizem para além do tom da voz e de um casaco ou óculos que estão mudando de personagem e de cena. As marcações ajudam, claro; há uma preocupação quase didática em distribuir as cenas em diferentes espaços do palco, mas o fluxo das narrativas é intenso demais para a complexidade do que se quer apresentar ali.

Por Alex Simões

CONFRONTAR PARA GARANTIR O RESPEITO

Sobre a peça Condenados, da Companhia SouDessa

Foto de Bob Nunes

Não é o tipo de peça que a gente vá para se sentir confortável, ou não deveria ser. Homofobia não é abstração para um gay. Para mim, por exemplo, homofobia é uma cadeira que, depois de atirada em minha cabeça, ficou caída no chão, como estavam as cadeiras de Condenados. Homofobia para mim são alguns nomes próprios que sofreram muito antes de morrer. Talvez por isso tenha ficado uma ou outra vez constrangido de ouvir alguns risos da plateia. Talvez Marcelo Ricardo tenha razão em destacar que se trata de risos nervosos. Mas o fato é que na segunda vez que assisti a plateia era muito mais atenta e sensível ao que se passava em cena.

As referências locais são tantas e fico também pensando nelas. Sim, seria outra peça, se eu quiser que seja outra peça, eu que vá escrever. Mas pensei em como as balizas das fanfarras do Dois de Julho enfrentam dignamente qualquer churria, por exemplo. Pensei que Marcus Vinícius Rodrigues[1] e Jean Wyllys[2], dois escritores baianos, contemporâneos, escreveram contos em que homens homossexuais se vingam de homofóbicos. Tantos casos recentes e próximos que não aparecem para a gente. Mas depois fui dar uma olhada no blog da Cia SouDessa e percebi que mexeram no texto e que algumas referências locais foram retiradas, talvez para não ficarem datadas e incompreensíveis para o público não especializado e com menos de 30 anos.

No entanto, ainda que reconhecendo esse esforço pela interlocução com o público geral, não fica claro para quem se dirige esse “você” do texto. Aparentemente para os não LGBTQI, mas fico com  a sensação de que eles, os outros, não entenderam para quem é o recado. Talvez pela diluição provocada por tantas histórias e a escolha pelo ritmo intenso para apresentá-las.

Nos agradecimentos, Filipe Harpo reforça a colaboração de Gilmaro Nogueira, pesquisador ativista do campo LGBTQ, interessado em masculinidades, e mencionado não só no programa como numa personagem aludida em um dos momentos do texto. Menciona, com toda a razão, o sucesso de público e de repercussão nas redes sociais. Um desses textos foi assinado por Marcelo Ricardo, outra referência literária local e contemporânea de enfrentamento da homofobia, já mencionado aqui. O diretor encerra falando que a peça é panfletária, sim, porque é preciso falar dos “nossos”. E aí continuo em dúvida sobre para quem se está falando.

Um dos muitos dramas do encenador é lidar com as muitas convenções do teatro. Trazer-nos para o palco, mas tendo o cuidado de nos colocar em assuntos confortáveis faz parte do menu das convenções. Não deve mesmo ser fácil para qualquer um de nós escolher falar de um tema tão concreto para quem sofre, tão abstrato para quem pratica.

Talvez por isso, nós, em nossos assentos confortáveis, no inverno glacial do ar condicionado do Xisto, precisemos ver as cadeiras paulatinamente sendo arrumadas, enquanto desfilam diante assombros, tragédias, e algumas pistas para pensar não só sobre o fascismo, mas também em como acertá-lo na nuca.

Saí cheio de dúvidas e fui beber no bar de Espanha. Um amigo, negro e gay, perguntou o que eu tinha achado da peça. Respondi que ia escrever sobre e sempre que isso acontece fico sem saber o que dizer imediatamente depois da peça, porque penso enquanto escrevo. E ele disse que chorou algumas vezes e que achou o texto respeitoso apesar de tratar de temas tão delicadamente brutais. Lembrei da cadeirada de 89, da cadeira no chão. Peguei a cadeira e a pus de volta e o papo derivou para exemplos fictícios e reais de enfrentamento da homofobia. Nossos e alheios. A peça não acabou.

 

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[1] A paz que chega no depois. In: RODRIGUES, Marcus Vinícus. Eros Resoluto. Salvador: P55, 2010.

[2] Caça e caçador. In: WYLLYS, Jean. Aflitos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 2001.

Por Giltanei Amorim

Ao pensar sobre o texto que apresentaria à Barril, me senti tentado a tirar da gaveta algo já escrito da minha coleção particular. Mas, por fim, optei por sair do comodismo para propor reflexões capazes de dialogar com as características da revista. Pareceu-me coerente trazer à tona inquietações que habitam meus pensamentos acerca do fazer crítica. De antemão, é importante destacar que tais inquietações não se limitam ao papel daqueles que fazem da crítica o seu labor, mas incluem, também, aqueles que analisam processos e obras, como estudantes, artistas e também o público, já que este não deveria ser isentado de sua responsabilidade ao interagir com uma obra. É por essa razão que, para facilitar a compreensão do texto, me refiro aos críticos no plural, justo para abarcar a todos que se aventuram neste tipo de exercício.

Sabemos que a crítica adequada apresenta, para aquele que a elabora, a possibilidade de visibilidade e aquisição de poderes capazes de (des)legitimar uma criação. Não é ao acaso que os críticos são temidos e/ou bajulados por parte de artistas que, em muitas ocasiões, tornam-se o alvo central em direção ao qual flechas afiadas são lançadas. Em raras ocasiões a crítica viabiliza a interlocução com o próprio criticado ou, ao menos, é oferecida a este a possibilidade de respostas, configurando, assim, mais um produto do que um processo.  

Infelizmente, a escassez de ambientes de interlocução tende a caracterizar a crítica enquanto um instrumento de julgamento unidirecional. É relevante considerar, entretanto, que a (des)legitimação de uma obra ou artista por uma crítica depende dos contextos onde esta circula, daqueles que a consomem, e do grau de autoridade que o crítico detém nestes contextos. Segundo Foucault, a autoridade constrói-se numa complexa trama que determina a ordem dos discursos, onde devem ser reconhecidos os interesses políticos implícitos. Se consideramos que o poder e a autoridade da crítica só são construídos através da apropriação da obra do outro – já que não existiriam críticos sem artistas e obras – podemos abandonar a crença de que tais produções estão famintas por cabeças a serem linchadas e assumi-las enquanto um tipo de ecologia solidária. Mas o que proponho com esta noção?

O senso comum considera a ecologia como o cuidado à natureza e ao meio ambiente. No entanto, num entendimento mais complexo, ela é definida como as análises/reflexões/processos/produtos das relações humanas, onde incluem-se, além das questões ambientais, aspectos econômicos, psicológicos, sociais e culturais. Este texto foca na ecologia enquanto um tipo de economia, no sentido mesmo de evitar o desperdício, neste caso, o desperdício da fala na crítica. Quanto à solidariedade, esta é aqui abordada enquanto uma prática que nada tem a ver com ensejos politicamente corretos, diplomáticos ou apaziguadores que tendem a agradar o outro, mas como o comprometimento de reconhecer que a ação está indissociada do pensamento-fala-discurso responsáveis. Deste modo, a ecologia por uma crítica solidária pode implicar em dissensos e, porque não dizer, numa dose de dor. No entanto, quando opera, objetiva a construção mais do que a destruição ou a destruição para reconstruir/co-construir.

Apresentados tais entendimentos, tensiono, aqui, as noções de egocríticas e altercríticas, e busco explicitar algumas relações de poder e autoridade implícitas em tais práticas. Numa primeira definição, as egocríticas são formulações analíticas respaldadas pela supervalorização do ego; já as altercríticas são aquelas que consideram a alteridade como condição de existência.

Defendo que a feitura de uma crítica exige a morte do egocentrismo. Digo isso porque, corriqueiramente, deparo-me com situações em que supostas análises e reflexões acerca de uma obra parecem já ter sido elaboradas antes mesmo que um processo ou produto artístico sejam compartilhados com o público. Paradoxal quando se trata da crítica, por certo, já que estas formas de produzir apresentam-se mais como replicações de manuais e fórmulas prontas do que reflexões capazes de colaborar com uma criação. É o limiar entre a crítica e a opinião. A egocrítica é vício automatizado do copy and paste, o plágio do discurso já pronto, seja este produzido por outros (como na desenfreada utilização de referências teóricas reescritas “com as próprias palavras”) ou o auto-plágio (quando a própria fala é replicada em todo e qualquer contexto

ECOLOGIA POR UMA CRÍTICA SOLIDÁRIA

Reflexões sobre poder, autoridade, egocentrismo e alteridade

Uma coisa é confrontar e questionar modos diferenciados de fazer, outra coisa é achar que o próprio modo de fazer deve ser imposto por ser o mais adequado e verdadeiro.

sem considerar suas especificidades). É o tirar daqui e colocar ali, o elemento postiço que não considera se as certezas egocêntricas daquele que critica são, efetivamente, capazes de dialogar com o que está na obra: o sintoma esquizofrênico que aborda a crítica sob o entendimento comum de que ela é sinônimo de depreciação. Quando elaborada por um artista, a egocrítica é ainda mais perigosa, já que é preciso reconhecer que as escolhas, discursos, estéticas e estilos do outro não deveriam ser enclausurados no universo umbilical daquele que critica, sob o risco de transformar a arte num entediante mar de hegemonia.

Considero equivocado que um artista analise, julgue e (des)legitime a obra do outro a partir de suas próprias convicções estéticas, mesmo que saibamos que confluências e tensões entre abordagens na arte contribuem para complexificar o fazer artístico. Uma coisa é confrontar e questionar modos diferenciados de fazer, outra coisa é achar que o próprio modo de fazer deve ser imposto por ser o mais adequado e verdadeiro. A verdade absoluta está velha, enferrujada e gagá. Por isso, devemos atentar que a egocrítica pode ser, perigosamente, a sobremesa no prato do sádico, sobretudo em tempos onde o protagonismo tende a ser a pílula para sanar frustrações; onde as redes sociais parecem autorizar todos a julgarem os demais; onde se confunde a diferença entre análises, produção de informação e opiniões e, por fim, em tempos onde as máximas instâncias de poder assumem seu lugar de ação a partir de golpes e autoritarismos.

A egocrítica opera no sentido contrário a uma ecologia solidária, já que o uso desenfreado da palavra produz desperdícios por ser incapaz de tecer diálogos contextualizados. Mas como é possível criticar considerando a ecologia solidária?

Recentemente a alteridade tem assumido o topo na hierarquia das palavras da moda e, de alguma maneira, apresenta uma dose de esperança de como ser-viver-estar em relação, inclusive na arte. Oriundo da filosofia, tal conceito implica na capacidade do sujeito de se colocar no lugar do outro, de traduzir este outro considerando e valorizando as diferenças e dissensos existentes. Entretanto, não podemos estar cegos para reconhecer que ainda existe um deserto separando os campos das ideias e das práticas, o que dificulta que tal conceito seja uma prática encarnada. A produção de altercríticas operam, então, no sentido de anular esse deserto para transformar a alteridade num estado de corpo, numa prática que permita refletir e analisar uma obra considerando o contexto e o processo do outro, que contribua para que o crítico migre de seus territórios cômodos e familiares para habitar universos estranhos/estrangeiros. A altercrítica repulsa o julgamento unidirecional e assume a criação conjunta, o confronto construtivo, o processo inacabado da interlocução capaz de minimizar os sintomas colaterais dos poderes opressores, centralizadores e excludentes que têm, como única função, garantir protagonismos, autoritarismos e poderes no mercado da arte. A altercrítica - respaldada pela ecologia solidária - implica na necessidade de ampliarmos nossa capacidade sensível de sermos afetados pelo outro, na repulsa ao anseio desgovernado de atropelar e amputar a subjetividade de uma obra, e na necessidade de abandonar a caverna platônica para compreender aspectos do mundo sem o vício do  Ctrl+c and Ctrl+v.

 

Interlocutores: Laura Pacheco, Lêda Muhana, Mab Cardoso e Rubén Tejedor.

Por Isabela Silveira

TODO MENINO BAIANO TEM UM JEITO

Sobre o espetáculo Com o rei na barriga, do TECA Teatro

A construção da baianidade não data de muito longe. Ainda que seja “terra mãe do Brasil”, como gosta de nos lembrar o slogan, por alguns séculos ser baiano não era considerado lá grande coisa. A mudança da capital para o Rio de Janeiro e outros acontecimentos históricos nos tiraram o destaque como cidade moderna e avançada mas, em meados dos anos 1950, Jorge Amado, Carybé, Verger e outros começaram a desenhar uma Bahia mítica e especial que ajudou a reconstruir o orgulho local.

E o que seria essa baianidade, afinal?

 

Em ótimo artigo, Edevard Pinto França Junior circunscreve o conceito com muita clareza: “A baianidade, como é conhecida a identidade cultural dos baianos, é um conjunto de regras, práticas, rituais, associados aos moradores da cidade do Salvador e do território circunvizinho, porém generalizados para todos os habitantes do estado da Bahia. (...) O discurso da baianidade é a síntese da ligação entre povo, tradição e cultura, sendo estes elementos ideologicamente construídos (...). Este discurso foi utilizado como expressão máxima de um povo alegre, valente, trabalhador, místico, religioso, sensual.” E eis que, em pouco menos de meio século, ser baiano passou de algo menor e vergonhoso a honraria levada no peito. E a se exibir em qualquer lugar, em alto e bom som, não importa o contexto. Mas, como dizem os populares: tudo que é demais, é sobra.

 

Foi com essa reflexão que saí da estreia do espetáculo Com o rei na barriga, do TECA Teatro, companhia de teatro infantil capitaneada por Marconi Araponga e Luciana Comin. Fui positivamente surpreendida quando notei que se tratava de uma adaptação do clássico da comédia O burguês ridículo, de Molière, para crianças a partir de 05 anos. O texto, assinado pela própria Luciana juntamente com Lando Augusto, é preciso ao traçar um paralelo entre os desmandos cometidos em nome de status pelo endinheirado Sr. Jourdain com os caprichos de crianças das classes abastadas do nosso país. Em sua agenda repleta de aulas de dança, esgrima, música e recitação, esse sinhozinho mimado emenda uma desfaçatez na outra, destratando empregados, subestimando o conhecimento dos profissionais e exigindo virar, logo e sem demora, um nobre de verdade. Crítico mordaz aos novos ricos de hoje e de outrora, Molière vai ao ponto ao demonstrar que essas pessoas não sustentam sua nobreza senão pelo dinheiro, já que não têm qualquer talento para a reflexão e os bons modos – e sequer disposição para adquiri-los. Cena após cena fica claro que o desejo do jovem Jourdain, representado na montagem por Marconi Araponga, é apenas parecer refinado e não de fato tornar-se assim.

Afeitos que somos à ironia e à pilhéria, por aqui se tem piada pronta para tudo. Mas quando tal humor gira em torno de comentários pueris sobre aparência, evoca referências como o “quadradinho de 8” ou adota gírias locais para despertar o riso, acaba fazendo como o protagonista: toma um atalho que o precipita no erro.

O original de 1670 foi trazido para o tempo presente com uma qualidade nem sempre vista no teatro para crianças. As situações originais são mantidas e se concentram na difícil tarefa dos professores de tornar o patrãozinho alguém requintado. Mesmo com todos investimentos, o ridículo burguesinho não consegue aprender nada, tamanha a sua arrogância e preguiça para qualquer coisa que demande esforço mínimo. Mimado pela mãe superprotetora - que se esforça para suprir a ausência do pai, sempre viajando a trabalho-, o garoto não tem qualquer tolerância à frustração e responde agressivamente a cada crítica daqueles que estão ali justamente para orientá-lo. O estopim é o conflito com o pretendente da sua irmã mais nova que, ao ser enxotado por “não ser nobre o bastante”, decide se vingar do pequeno déspota ridicularizando-o diante de outras pessoas por meio de um rocambolesco golpe.

 

Em cena, atores convidados e da companhia, composta por jovens alunos egressos de cursos livres de teatro do grupo. Ao todo são cerca de 10 pessoas compondo o elenco, sendo que Luciana Comin demonstra mais uma vez, tal como em outros momentos de sua carreira, inteligência cênica particular. A cenografia é bastante simples, mantendo apenas o que tem função cênica efetiva, com elementos específicos e ao fundo, uma projeção remonta aos panneaux tão usuais nos antigos ballets. Já o visual dos personagens é particularmente bem-cuidado, com um conceito completo de cada um daqueles supostos sujeitos. Digo supostos porque, como é natural da farsa, não há um aprofundamento no interior dos personagens; excetuando-se um ou outro aspecto da mãe e da empregada, em geral os personagens são superficiais. Isso em nada constitui um demérito e sim reitera a escolha pelo universo de Molière e remete à era do selfie após selfie que estamos vivendo.

O ritmo é compatível com o público, com destaque para os entremezzos onde personagens infantis da cultura pop contemporânea surgem como uma gag contínua, invadindo o palco a qualquer pausa da ação dramática para tentarem levar a cabo suas próprias histórias. Essa crítica é tão sutil quanto efetiva e nos lembra o quão nociva pode ser a pasteurização dos conteúdos para infância, com Peppas, Galinhas e Piu-pius se proliferando como ervas-daninhas em cada mínimo canteiro criativo que se oferte para crianças.

Acompanhei o espetáculo com muita satisfação pelo que via, e dei boas risadas com as piadas de repetição e o humor mais corporal. Marconi demonstra propriedade nessa abordagem e é um deleite à parte observar as crianças garga-

-lhando com o ridículo rapazote. As instruções para a tão esperada reverência que será feita para sua pretendente são lembradas incontáveis vezes: “Um, dois, três, joelho!” sintetiza ali a força das estratégias cômicas que remontam aos mambembes da idade média. Então, com elementos tão azeitados, eu poderia ter saído do teatro Molière com a sensação de ter visto uma obra única para crianças. Mas isso não ocorreu por um único motivo: excesso de baianidade.

Falo de excesso porque parece uma má escolha trocar a sólida estrutura de Molière, tão bem adaptada pela dupla de dramaturgos, por gracejos que remontam à camada mais superficial de nossa identidade. Afeitos que somos à ironia e à pilhéria, por aqui se tem piada pronta para tudo. Mas quando tal humor gira em torno de comentários pueris sobre aparência, evoca referências como o “quadradinho de 8” ou adota gírias locais para despertar o riso, acaba fazendo como o protagonista: toma um atalho que o precipita no erro. Algumas pessoas até rirão, certamente, porque ali estão combinados justamente os elementos reconhecíveis de outros espaços como a televisão e a Internet. E se por um lado as gargalhadas e aplausos chegam, por outro se joga fora a chance de estender o limite da fruição estética daqueles espectadores para além do terreno já pisado. Com tudo em cena se afinando para um resultado coeso, não há qualquer necessidade de esgarçar o humor para além dos limites da própria montagem. Talvez ter diretor e ator principal na mesma pessoa não tenha permitido que essa reflexão fosse feita com o necessário tempo. Talvez tenha sido justo o contrário e provenha de uma decisão deliberada de trazer Molière para “mais perto” do público... Não saberia dizer.

O que afirmo, enfim, é que o TECA Teatro ensaia em Com o rei na barriga um êxito espetacular na adaptação de clássicos para o público em formação mas, em certa medida, desperdiça essa potência cedendo-a ao retorno imediato que só o riso pode oferecer a uma comédia. Ainda assim, entre franceses e baianos, salvaram-se quase todos, e a montagem segue sendo um suspiro de agradável alívio para os apaixonados pelas Artes para a Infância.

Salvador sofre as consequências do inverno mais rigoroso desta década. As temperaturas que beiram os vinte graus têm endurecido as juntas de nossos diletos escritores. Por quanto tempo ainda resistiremos? Nesta décima quarta edição treme um tom saturnino.

O mês de julho foi uma folha de calendário bem estimulante para a colheita das cênicas. Se em junho penamos para conseguir assistir coisas, agora nos últimos trinta dias tivemos opção de sobra. Esperamos que a fartura perdure e que as guerreiras das artes continuem a montar e desmontar nos mais variados espaços desta terra devastada.

A CRÍTICA de Bárbara Pessoa tem a morte como tema. Foi ver o espetáculo Ponto e Vírgula e voltou desdobrando para nós o diálogo dos dois personagens da peça. A segunda CRÍTICA fica por conta de uma das colaboradoras do mês. Isabela Silveira inaugura sua presença na revista direcionando o olhar a um

No ENSAIO, Igor de Albuquerque extravasa o tema das artes cênicas em  direção à uma ética do hobby. Enquanto isso, num ENCONTRO intimista e convidativo, Bárbara Pessoa entrevista o ator Caio Rodrigo, onde discorrem sobre a relação de trabalho e existência, tempo e dinheiro, morte e consciência e muito mais, em tom de chá das cinco regado a vinho.

Daniel Guerra preparou um RIZOMA imagético a partir da performance Intempestivamente, do coreógrafo norte-americano Adam Kinner, participante do novo programa de residências do Goethe Institut.

Alex Simões foi ver a peça Condenados e nos expõe em palavras vivas a sua relação direta com o universo dos criadores, além, é claro, de pontuar as dissonâncias presentes em qualquer diálogo minimamente aprofundado.

Bem-vindos a mais uma Barril!

fenômeno pouco explorado pela crítica em geral: o teatro infantil. Teceu suas considerações a partir de uma adaptação infantil do clássico O Burguês Ridículo, de Moliére.

Outro colaborador do mês, Giltanei Amorim escreve uma CRÍTICA DA CRÍTICA articulando temas da contemporaneidade de forma inusitada. Em estilo ensaístico, propõe uma ecologia crítica em oposição ao que denomina egocrítica.

No REVERBERA a D. Morte volta a nos assombrar, agora incorporada na atriz Márcia Andrade, que passeia pelo cemitério enquanto faz ressoar as vibrações do fim inevitável. Não por acaso, Márcia também foi conferir o espetáculo Ponto e Vírgula.

Laís Machado esteve entre a multidão que foi à reitoria da UFBA escutar as palavras da ex-pantera negra Angela Davis, e voltou com uma TRETA direcionada ao estado de coisas mundial, isso sem esquecer é claro de distribuir farpas ao nosso próprio mundinho sotero-cultural.

DECADANCE

Por uma dança sem corpo

A partir de Intempestivamente, performance de Adam Kinner apresentada na Escola de Dança da UFBA.

Por Daniel Guerra

Engana-se quem pensa que metáfora, metonímia, perífrase – para não citar termos mais estranhos como a prosopopeia – só servem para compor o vocabulário de estudiosos, ou para passar em concursos públicos. Se na Antiguidade as figuras de linguagem eram o assunto preferido dos mal-afamados retóricos, hoje elas reaparecem com frequência nos estudos filosóficos em que se propõe a investigação das projeções da realidade que fazemos através da linguagem. Um exemplo rápido: “Tempo é dinheiro”. Esse mote já batido da sociedade capitalista é uma metáfora que implica em uma série de desdobramentos. Dela vêm expressões como “gastar tempo”, “economizar tempo” e “investir tempo”. Uma variação aparece quando se inclui a própria interação humana na conta; tem-se, então, o perverso “investir tempo no relacionamento”. Diante desses automatismos em comunicação, surge uma boa oportunidade para se lembrar o conselho do professor Antônio Cândido: “Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida”.

Não são poucos os pensadores que têm analisado metáforas encrustadas na fala cotidiana com o objetivo de reconfigurar as compreensões de mundo operada através delas. O vaso, a propriedade privada e a esponja[1], por exemplo, não seriam dispositivos adequados para conceber a relação entre o saber e o indivíduo; afinal, não vivemos para conter o conhecimento, nem para dele sermos donos ou locatários; tampouco o absorvemos e expulsamos. Em contramão espiralada, surgem outras concepções para os vínculos que vibram entre o mundo e as ideias, pois há o diálogo, a prática e o movimento. O tempo do saber é o da conversa travada entre dois corpos incapazes de suportar a imobilidade.

 

Assim também é a vida, que estala em centelhas arredias a qualquer instância de contenção. Não há vaso, urna ou caixa que possam encerrá-la, ou representá-la como contentor. No entanto, fala-se com frequência nestes termos: “minha vida está vazia”, “fulano tem a vida plena”, “Santa X guardou a vida para Deus”. Acontece que, diferentemente do dinheiro/tempo, a metáfora da vida enquanto recipiente é mais natural, quase tentadora, pois a percepção de vazio/plenitude nos acompanha com insistência. Quando nutrimos um grande amor, uma amizade sólida ou um trabalho ideal, nem sequer pensamos na sensação de vazio que o peito nos impõe no momento da perda. Então, na experiência do luto, vivemos nosso interior como uma nave de catedral gótica e dentro dela sentimos a brasa ou gelo do ar que outrora respirávamos fresco. Na continuidade da espiral, após delícia e dor, isto é, no período de consciência do vaso meio cheio, dizemos que nos sentimos... vivos.

 

Toda essa concepção é um resíduo cristalizado por camadas acumuladas umas sobre as outras durante a experiência humana da linguagem – poesia gasta. Só é possível estabilizar os pulsos errantes da vida em contentores mediante um estreitamento conceitual que serve a interesses imediatos: o consolo para a carência, a segurança do homem médio, o afago no ego de sucesso. As narrativas que servem a tais interesses podem ser as mais frequentes na história, mas de modo algum são as únicas. Viver para além do contentor sempre foi uma alternativa, e essa alternativa envolve uma grande parcela de desinteresse. É aqui que sugiro o hobby como forte operação metafórica em favor da vida.

 

A palavra hobby chega através do inglês médio hobi, que significava cavalo pequeno, pônei, sendo mais tarde registrada na forma hobbyhorse referindo-se ao cavalinho de pau das crianças e a atividades que não levam a lugar algum. É interessante notar que o sentido moderno da palavra como “assuntos, objetos, ou tópicos favoritos” apareça justamente na era sagrada do pragmatismo, o século XIX. Preferimos aqui o sentido que alude ao gozo da criança cavalgando com as próprias pernas um terreno que obedece às regras de sua imaginação[2]. É a sensação de alegria que deveria ser compartilhada pelos adultos que cultivam hobbies na clave da paixão.

 

Seria escusado dizer que uma vida baseada apenas em sono, alimentação, trabalho e sexo constitui um fracasso em mi maior, mas há quem viva assim. São os que chamaremos de pessoas desinteressantes. E não pense que elas são casos de exceção. Uma alta executiva pode ir a festas, fazer ginástica ou ir a exposições de arte com o único interesse de fortalecer sua network e fechar novos negócios. De modo semelhante, imagine o emprego mais incrível do mundo, o viajante profissional que escreve ou tem um programa sobre turismo;

ELOGIO AO HOBBY

Por Igor de Albuquerque

ele recebe para viajar. Esse ser humano pode ser infinitamente desagradável se suas atividades e seu papo sempre girarem em torno dos incríveis lugares que visitou e dos próximos incríveis destinos.

Mas há os que dormem, comem, trabalham, transam e cultivam hobbies. Quanta diferença nesses seres! Essas são as pessoas desinteressadas, portanto as mais interessantes. Não que sejam totalmente desinteressadas, pelo contrário. São presidentes cinéfilos, funcionários públicos maratonistas ou vagabundos imbatíveis no xadrez. Para um hobby constituir-se enquanto tal é preciso entendê-lo como um desvio, uma alternativa. Como uma tarde besta na frente de um videogame.

 

Vejamos o caso de Chico Buarque e Pelé; assim com para o primeiro a música não pode ser um hobby, tampouco o futebol pode sê-lo para o segundo. Quando é esse o assunto, pensa-se logo em esportes, jardinagem, leitura, costura, desenho, jogos, mas não há limites para fazer de algo uma paixão capaz de abrir novas dimensões regidas pelas ordens do gratuito e do acaso. Catherine Millet e o Marquês de Sade, por exemplo, fizeram do sexo seu grande hobby. Ambos acharam um contraponto digno para a famosa solidão dos escritores.

 

Nem toda atividade de entretenimento exercida a esmo está compreendida nesse âmbito. Um hobby requer constância, um método construído sobre as bases do prazer. Prova disso é que a sua interrupção sempre vem acompanhada de sofrimento. Senhores de nossos narizes, na vida adulta associamos a dor à perda de pessoas e coisas, mas basta lembrar os castigos paternos para evocarmos a sombria inclemência dos confiscos.

 

Quando praticamos nossos hobbies saímos de nós mesmos, sentimos a realidade e as pessoas que nos cercam de um modo diferente. Numa partida de tênis, pouco importa se você está satisfeito com seu trabalho no escritório ou se seu adversário ainda chora a morte da mãe, pois o pacto estabelecido na quadra está fundado na força dos saques e na eficiência dos forehands. Algo semelhante acontece quando dois fanáticos por música se encontram numa mesa de bar; suas vidas, sejam elas bem sucedidas ou desgraçadas, são secundárias diante dos discos que apreciam. Em dissonância com a mesmice da subsistência, esses exercícios compartilhados reforçam uma perspectiva desinteressada da existência.          

 

Outro caso intrigante que guarda mistérios envolve mais um francês. Quão mágica terá sido a chegada das tintas e das telas no quarto do convalescente Henri Matisse[3]? Como ele terá se sentido naqueles primeiros dias de liberdade acamada? Despojado de ambição e de vigor físico, mas por dentro radioso como cauda a de um pavão. Não me refiro ao despertar do pintor profissional, à descoberta de seu talento irrefutável. Intriga-me justamente o período em que as tintas fundavam mundos cuja atmosfera e gravidade nada tinham a ver com a dos salões de arte parisienses. Nesse breve interstício brilha uma das maravilhas da matéria em questão.

 

O hobby estende um tempo de conhecimento entre pessoas vulneráveis ao arrebatamento. Ao exercê-lo, liberamos metáforas e outras figuras reveladoras. Não se trata de preencher o vazio da vida, mas de propor uma temporalidade capaz de contaminar o cotidiano. Para além do dinheiro e dos contentores, o hobby mostra que a vida – universal – palpita e canta.

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[1]    São muito comuns construções verbais constituídas por esses três eixos, em expressões como “guardar um conhecimento”, “deter/perder um grande saber” e “absorver uma matéria”.

[2]   A cena remete à crueza de Machado de Assis quando ele derrama sua tinta acre até mesmo sobre essa atividade pueril. O cavalo de brinquedo de Brás Cubas era Prudêncio, um escravo da família: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia...” Por ora, não sejamos tão sombrios quanto o bruxo.

[3]    Em 1889, o jovem aspirante a advogado se curava de uma crise de apendicite. Para aplacar o tédio do rapaz, sua mãe lhe leva uma caixa com tintas e algumas telas. O resto se sabe.

Foto de Divulgação

Por Bárbara Pessoa

MORTE: SONHO POSSÍVEL

Sobre o espetáculo Ponto e Vírgula: pequena pausa antes do fim

Um dos maiores obstáculos na criação é conseguir se desenvolver recorrendo o mínimo possível a expressões ou ideias já desgastadas de tão repetidas. Falo daqueles chavões que, quando direcionados a nossa atenção, funcionam apenas como confirmação de algo que já sabíamos ou defendíamos e que nos faz levianamente pensar “estou certo”. Desconfio do que já é sabido e que, ainda que não careça, recebe ampla e repisada defesa. Quem precisa, por exemplo, gritar seu orgulho por ser heterossexual? Haverá quem argumente e é a essa argumentação que dirijo minha desconfiança, pra dizer o mínimo.

Quando o objeto criado não precisa se valer desses amuletos ou consegue afirmar o que é necessário por um caminho imprevisto, ficamos deslumbrados com tal encontro. No campo da arte, tocamos naquilo que foi a ideia do artista, compartilhamos com ele seu desejo.

Se a palavra carrega em si o potencial de revelar, alcançar, sentir e compreender uma realidade, usá-la desmedidamente pode equivaler àquilo que, de tão descartável e operado a um só tempo, virou motivo de piada: a tal conversa de elevador. Acontece que, muitas vezes, não estamos em um elevador, mas num espaço como o teatro, por exemplo. Investir, numa peça, no uso da palavra como principal mecanismo de comunicação pode ser bastante arriscado.

O que encontramos, quando adentramos o universo do espetáculo Ponto e Vírgula: pequena pausa antes do fim, são dois homens desconhecidos entre si que, “entediados com a demora em uma sala de espera, começam um papo despretensioso.” E disso se valerá a obra do início ao final. Como dito, uma eleição perigosa. Com vinte minutos de peça, deciframos que a situação se passa numa funerária e conhecemos mais uma escolha corajosa dos criadores: falar sobre a morte.

O texto, centro da encenação, assinado por Wanderley Meira, lança diferentes olhares sobre o assunto e imprime neles um tom diferente daquele que estamos acostumados a

A maior das utopias talvez esteja posta na peça na especulação de que o fim trará esclarecimentos de pronto, de que haveráalgum aprendizado assim que a morte se consume. Não estaria o aprendizado num horizonte distante e jamais de acordo com o calendário dos sentimentos?

usar quando tratamos da questão: o da cotidianidade somado à uma alguma des-romantização. Nisso reside o seu fascínio: afastar as ideias preconcebidas sobre como nos relacionamos com a morte para abordá-la no lugar da complexidade, esquivando-se assim dos lugares comuns.

Logo no início, uma das personagens demonstra certa indignação por ter de dar conta da burocracia que é enterrar alguém, sobretudo por esse alguém ser uma mãe que, de tão ausente, já está morta há muito tempo. E se a outra personagem argumenta que mãe é mãe ou algo nesse sentido, a primeira replica: “Não tem família nenhuma, não”, recusando qualquer normatização dos sentimentos.

A ausência dessa figura nos apresenta a perspectiva de um filho que teve de se tornar órfão quando desistiu de almejar aquilo que aprendemos sermos todos merecedores: o amor materno. Essa reflexão é sobretudo sobre a solidão, sobre novas maneiras de se enxergar e de se colocar no mundo. Passada a lamúria, entender-se órfão pode ser a oportunidade de ultrapassar, de exercer a  cobiçada liberdade.

Ponto e Vírgula, por versar sobre a morte, é também um espetáculo sobre utopias, sobre sonhos irrealizáveis.

O primeiro deles vem a partir desse mesmo filho, confesso da satisfação em poder experimentar o papel de rebento em algum momento, de poder zelar, ainda que nas condições postas.

O seguinte é exposto quando a outra personagem recorda tudo o que disse a seu ente quando este estava à beira da morte; todas as verdades, tudo que gostaria de ter dito antes.

O diálogo é colocado como artifício que tudo esclarece, que tudo resolve. E, por isso, também um sonho irrealizável, inatingível em função do próprio abismo que a palavra nos impõe quando praticada excessivamente.

A maior das utopias talvez esteja posta na peça na especulação de que o fim trará esclareci-

-mentos de pronto, de que haverá algum aprendizado assim que a morte se consume. Não estaria o aprendizado num horizonte distante e jamais de acordo com o calendário dos sentimentos?

O espetáculo condensa em sua composição várias etapas de um longo processo e, se a morte é definida por muitos como o fim, ela própria tem seu início, seu meio e seu fim, diz-nos uma das personagens. Mas terá fim? Como identificá-lo? Quiçá o fim esteja naquele instante fortuito em que a vida deixa de nos parecer injusta, quando deixamos de levar a morte pro lado pessoal. E, assim como se dá no processo de tornar-se órfão, podemos enxergar nesse indesejado encontro também o ensejo para extrapolar de um eu para um outro.

Duas verdades das quais Ponto e Vírgula me lembrou é que “a morte não nos pede um dia livre” e que “o fim está no início, no entanto, continua-se”, ambas afirmações de Beckett; prova de que, por mais absurdo que possa parecer, o perecimento, como lembra uma das personagens, quando começa a ganhar suas primeiras formas, é um espetáculo dos mais tradicionais: aquele diante do qual e ao qual só podemos sentar e assistir.

No dia 25 de julho do ano de 1992 foi criado o dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Essa data é um marco de resistência e de aproximação das mulheres negras do continente latino-americano, uma vez que nossas histórias e memórias são moldadas pela mesma estrutura que resiste em abandonar hábitos escravocratas. Entretanto, a data só foi inserida no calendário nacional no ano de 2014, durante o governo da Presidenta Dilma Rousseff.
 

Neste ano, no qual a data completa 25 anos, Salvador foi presenteada com uma conferência da militante e ativista Angela Davis, a pantera negra que se tornou mundialmente conhecida após a campanha pela sua libertação “Libertem Angela Davis” nos anos 70.
 

A iniciativa do Instituto Odara de trazê-la para a reitoria da UFBA rapidamente ganhou reverberação e era unânime: “Vai lotar”.

 

Às 15h o auditório foi liberado, pois a aglomeração em frente à reitoria já era tão grande que não encontrávamos mais abrigos da chuva. A partir daí, uma nova ética foi estabelecida na reitoria da UFBA. Aquela reitoria tornou-se, como nos diria Beatriz Nascimento, um grande Quilombo. Uma grande fuga.
 

Eu não tenho nem condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade (Davis, Angela)[1].
 

Eu estava entre a parcela que chegou cedo e conseguiu se acomodar numa cadeira. Mas, pouco tempo depois de nos acomodarmos, iniciou-se uma briga de quem estava dentro pela liberação da entrada dos que estavam fora, mesmo significando que teríamos menos conforto. Aos poucos as sacadas foram liberadas; em seguida, as laterais, o corredor, o chão do palco, os vãos entre as cadeiras e por aí vai.

 

Um dos momentos mais simbólicos, durante a distribuição dos lugares, foi quando os espaços reservados para as autoridades políticas foram tomados, reestruturando em ato a ideia da representação: não faz sentido a entrada em um espaço de poder se não vier acompanhada de iniciativas que insiram mais pessoas nesse mesmo espaço. Essa era a ética que regia aquelas relações.
 

A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva (Davis, Angela)[2].
 

Enquanto as pessoas se organizavam em seus espaços, em uma das sacadas uma mulher puxou um coro para que os homens brancos liberassem espaço das cadeiras. Aos poucos as mulheres brancas começaram a levantar também, constrangidas com a movimentação.
 

Esse momento pode ter soado para as pessoas brancas como um “revanchismo desnecessário, considerando que se estavam ali era porque se solidarizavam com a causa”, como li nas redes sociais. Exatamente por concordar com a última parte dessa afirmação que pacientemente explico: ter chegado cedo e dessa forma ter conseguido um bom lugar na fila não poderia ser o critério para que uma mulher negra não conseguisse entrar e você permanecesse em seu assento. Existem inúmeras circunstâncias estruturais que nos impedem de chegar mais cedo nos lugares. Não podíamos permitir, enquanto pudéssemos não permitir, que alguma mulher preta não escutasse uma pantera negra falar.

 

Queremos brancos aliados. Como disse Grada Kilomba[3] meses antes no Instituto Alemão, “o racismo é uma problemática branca”. Mas é preciso entender que ao longo da história fomos traídas por muitas de nossas companheiras brancas de luta apenas por resistirem em nos escutar, como conta a própria Angela Davis em Mulheres Raça e Classe, ao traçar um panorama norte-americano que passa pela luta abolicionista, sufrágio feminino, inserção da mulher no mercado de trabalho, planejamento familiar e direito à vida.

 

Se faz necessário repensar a atuação das pessoas brancas simpáticas à causa negra. Muitas vezes, agir como uma aliada na luta antirracista é dar um passo para trás, tornando mais equânime essa corrida tão desleal que é viver num mundo capitalista, racista, patriarcal e cis-normativo.

 

Mas também estamos conscientes que não focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos. [...] As mulheres negras estão entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste planeta (Davis, Angela)[4].

Ainda aguardando Angela Davis, enquanto improvisávamos um fumódromo subversivo nas dependências da reitoria, duas mulheres discutiam: “Não é todo dia que Salvador recebe um evento como esse” , disse a primeira. “Não é todo dia que Salvador recebe Angela Davis, porque eu estou cansada de ir para eventos como esse vazios”, respondeu a segunda. Enquanto a treta entre elas se desenvolvia, passando pelos espaços escolhidos para os eventos até meios de divulgação e público-alvo, me vi concordando com a segunda mulher: temos uma produção intelectual e artística bastante intensa, mas sempre nos colocamos mais disponíveis ao que vêm de fora.

Lembrei-me de três eventos recentes na cidade: I Fórum Negro de Artes Cênicas, Fuxicos Futuros e Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras. Todos eles, apesar de terem sido realizados no centro e com um recorte acadêmico, alcançaram seus públicos. Mas não me lembro de nenhum desses eventos ter citado o outro, mesmo que todos se propusessem resistir ao modo colonial de pensamento. E, como alguém que assistiu aos três e participa da organização dos Fuxicos Futuros, me pergunto se não poderíamos ter triplicado o alcance de cada um desses eventos se tivéssemos agido em rede.

 

No auditório, antes da abertura da mesa, O Slam das Minas se apresentou. Intenso como tudo que acontecia na reitoria. A multidão se calou para ouvi-las. Nesse momento Regina Casé tenta e consegue tirar uma foto com Angela Davis. Mas as mina tinham a multidão.

Por Laís Machado

Levantem das cadeiras  e deem um passo atrás, brancos:

sobre a conferência de Angela Davis e outros eventos menos badalados e igualmente relevantes

É necessário propor outras estruturas que comportem novas narrativas, como aconteceu na reitoria no dia 25 de julho.

Foto de Juh Almeida

Uma amiga me disse após a apresentação do Slam: “Será que Angela Davis vai conseguir falar alguma coisa que seja mais intensa do que isso?” O que me fez pensar sobre uma discussão que tenho elaborado ao lado de uma grande companheira de luta e de vida, Sanara Rocha[5], sobre a resistência da militância em reconhecer a produção artística cênica como produção de pensamento. Não que este tenha sido o caso das Minas.

“Apresenta tal pedaço de sua performance nesse evento x?” “No fim do evento teremos a performance de x...”. Essa é uma forma bastante desrespeitosa de lidar com uma obra que muitas vezes necessita de um espaço e éticas específicas para a sua realização. É como se a obra precisasse se valer de uma linguagem anterior para ser validada nesses espaços, ignorando sua autonomia nos modos de criar e gerir linguagens.

 

Por isso faço um apelo: assistam às produções de pessoas negras. Estamos vivendo uma época de intensas produções negras, seja no cenário conservador, contemporâneo ou underground. Assistam às produções de pessoas negras. Estamos resistindo num espaço bastante hostil e seguimos propondo a construção de outros imaginários e preenchimento para as lacunas históricas. Assistam às produções de pessoas negras.

 

Depois de muita espera, Angela Davis começou a falar. Usando de um discurso muito coerente, internacionalista e mobilizador, falou de nós. Trouxe inúmeras referências brasileiras e tocou nos inúmeros modos de resistência encontrados pelas mulheres brasileiras, além de traçar paralelos mundiais sobre a guinada conservadora.

 

Ao falar sobre a indústria do encarceramento, citou o trabalho da professora Denise Carrascosa ,“Mentes livres, corpos indóceis”, com o teatro e as mulheres encarceradas e sua recente interrupção, e nos chamou para a ação.

Em função da professora Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição[6] exigindo que esse projeto seja reincorporado (Davis, Angela)[7].

Ao finalizar sua fala, Angela Davis tocou num ponto muito importante a ser incorporado em toda discussão sobre representatividade que temos vivido na cidade. A apropriação do capitalismo das pautas minoritárias.

No Brasil, agora que o mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado. Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista [...] (Davis, Angela)[8].
 

Trazendo para o campo da arte, esse foi um ponto de vista no qual exaustivamente insisti durante a minha interlocução no Fuxicos Futuros, no que se refere à assimilação das pautas minoritárias pelo capitalismo e sua subsequente transformação em produto. É necessário propor outras estruturas que comportem novas narrativas, como aconteceu na reitoria no dia 25 de julho. Que demandam consequentemente outros modos de relação e fruição. Por sua vez, em termos mercadológicos, é necessária a criação, afirmação e visibilização das redes para que seja possível escapar da lógica competitiva na qual estamos inseridas.

 

No final do evento, percebi que, apesar de ter sido indescritível a oportunidade de ouvi-la falar ao vivo, o que menos importava era Angela Davis em si, mas o espaço e as trocas de intensidades que sua presença agenciou. Eu queria sair e comer o mundo. Eu queria o contato de todas as mulheres negras que estavam ao meu lado. Eu queria sair e marchar.

 

Então, se formou uma fila para que ela pudesse autografar os livros e uma multidão avançou. Cheguei a pegar meu livro e olhar para a aglomeração. Mas não dava. Eu precisava sair e olhar o mundo usando o filtro da sensação de invencibilidade que me mobilizava naquele momento.

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[1] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na integra no link http://www.revistaforum.com.br/2017/07/28/leia-transcricao-na-integra-da-fala-de-angela-davis-na-universidade-federal-da-bahia/

[2] Idem.

[3] Escritora, poeta e filósofa negra.

[4] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na íintegra no link http://www.revistaforum.com.br/2017/07/28/leia-transcricao-na-integra-da-fala-de-angela-davis-na-universidade-federal-da-bahia/.

[5] Pesquisadora, afrofuturista, musicista diretora teatral e performer.

[6] A petição foi criada e está disponível no link: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR100995 .

[7] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na íntegra no link http://www.revistaforum.com.br/2017/07/28/leia-transcricao-na-integra-da-fala-de-angela-davis-na-universidade-federal-da-bahia/ .

[8] Idem.

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